E os mais pobres?

Longe das abstrações conceptuais sobre a pobreza e a promoção da justiça, estas pessoas concretas mostram-nos a autenticidade do trabalho social dos jesuítas.

“A Educação, a Cultura, os Exercícios Espirituais… mas… e os mais pobres? Os jesuítas fazem mesmo trabalho social?”

A Companhia de Jesus procurou, desde S. Inácio, ter sempre no centro da sua missão a Justiça Social, concretizando-a na proximidade aos mais vulneráveis. Uma das quatro preferências apostólicas universais dos jesuítas para os próximos 10 anos é “caminhar com os excluídos”, com os mais pobres, vulneráveis e marginalizados. Os mais pobres são, portanto, preferenciais na vida e missão da Companhia! Por isso, “sim, os jesuítas têm muita obra feita ao lado dos mais pobres”. Trata-se de um trabalho vivido nas periferias, em humildade e silêncio, habitando a pobreza dos mais vulneráveis. Não dá nas vistas, não está na moda, raramente aparece, porque é discreto e sem fogo de artifício. Por isso, a maior parte das pessoas desconhece o imenso trabalho que é feito na área social pela Companhia de Jesus.

Uma das quatro preferências apostólicas universais dos jesuítas para os próximos 10 anos é “caminhar com os excluídos”.

O Centro Comunitário São Cirilo, no Porto – que pertence à Comissão do Apostolado Social da Companhia de Jesus – é uma das obras sociais inacianas onde, 24 horas por dia, os mais pobres são preferenciais e as periferias tornam-se o centro da missão. O Centro São Cirilo apoia pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade social, sobretudo migrantes, com vista à sua capacitação e (re)integração social e profissional. Para isso, é construído com os utentes um Projeto de Vida: alojamento, refeições, cabazes alimentares, gabinetes especializados, ensino, formações e atividades, banco de roupa, balneários… constituem um caminho que visa progredir na sua autonomização. Todos os dias trazem histórias de sucesso apesar das dificuldades, histórias de força apesar da debilidade, histórias de recomeços apesar da incerteza.

Num momento inicial, por se encontrar emocionalmente ainda muito instável, não lhe foi atribuído nenhum trabalho. Com a intervenção psicológica e as atividades de capacitação (desocultação de competências, formações, tai-chi) foi recuperando alguma estabilidade emocional e foram trabalhadas competências pessoais e profissionais, para poder ser, por fim, encaminhada ao trabalho.

É o caso da M. A M. tem 34 anos, é de nacionalidade brasileira, tem o 6.º ano de escolaridade e adora pintar. No momento em que pediu apoio no alojamento do Centro São Cirilo, encontrava-se a residir no Hospital Psiquiátrico Magalhães Lemos, com diagnóstico de Perturbação Delirante Persistente. Tinha alta clínica, mas não tinha alta social, não tinha onde viver por se encontrar sem qualquer retaguarda familiar e social em Portugal. Estava completamente sozinha! Em termos jurídicos, tinha a documentação caducada, o que a deixava em situação irregular no país. Encontrava-se em processo de divórcio do marido, de nacionalidade portuguesa, com quem tinha um filho pequeno em comum. A guarda tinha sido entregue ao pai.

Durante o tempo que esteve no Centro São Cirilo foi acompanhada pelos diferentes gabinetes de intervenção: Psicologia, Jurídico e Emprego. Num momento inicial, por se encontrar emocionalmente ainda muito instável, não lhe foi atribuído nenhum trabalho. Com a intervenção psicológica e as atividades de capacitação (desocultação de competências, formações, tai-chi) foi recuperando alguma estabilidade emocional e foram trabalhadas competências pessoais e profissionais, para poder ser, por fim, encaminhada ao trabalho. Chegou a fazer uma exposição de pintura no Centro São Cirilo e a vender alguns quadros. O Gabinete Jurídico do Centro São Cirilo apoiou a M. na renovação da documentação e na regularização da sua situação no país. Acompanhou-a no processo de divórcio e na regulação do poder parental, tendo conseguido a reativação das visitas do filho. Estas visitas decorriam semanalmente no Centro São Cirilo, sendo sempre supervisionadas. No início, a M. não tinha competências para brincar com o filho e foi adquirindo competências parentais, até se tornar responsável e autónoma no cuidado do filho. Acabou por conseguir um emprego como empregada doméstica externa em casa particular, com contrato de trabalho. E, assim, após um período de estabilização económica, pôde autonomizar-se do apoio no alojamento do Centro São Cirilo. Atualmente, a M. vive numa casa partilhada com mais três pessoas. Mantém visitas ao filho que permanece cada vez mais tempo com a mãe. Mantém o trabalho como empregada externa em casa particular. Mantém consultas externas em Psiquiatria no hospital, para monitorização. Agora, um dos seus objetivos é poder passar cada vez mais tempo com o filho e solicitar a nacionalidade portuguesa, pois aqui encontrou um país que a ajudou a recomeçar e a voltar a ser feliz.

O W. tem 40 anos. É de nacionalidade venezuelana. Concluiu a Licenciatura em Educação física. Trabalhava como professor na Faculdade de Ciências da Educação na Venezuela e realizava trabalhos pontuais como informático. O W. recorreu ao Centro São Cirilo para pedir apoio em cabaz de alimentos semanal. O W. é casado com a A. de 33 anos, venezuelana e licenciada em Educação de Infância. Têm dois filhos, o J. com três anos, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista, e o A. com um ano de idade. Todos se encontravam em situação irregular no país.

O acompanhamento do agregado no Centro São Cirilo passou por diferentes gabinetes de intervenção: Social, Jurídico e Emprego, bem como por um processo de capacitação pessoal e profissional do casal, com aulas de português e formações. O W. foi integrado em trabalho como monitor numa IPSS de jovens, responsável por um projeto informático. A A. foi integrada em trabalho como empregada doméstica, em regime de part-time, para que pudesse continuar a acompanhar os filhos. Os filhos, com o apoio do Gabinete Social, puderam ser integrados na escola e ser acompanhados em terapias e atividades extracurriculares, direcionadas para as suas necessidades. O Gabinete Jurídico apoiou na regularização da documentação de todo o agregado. Após a integração laboral do casal, e passado um período de estabilização económica de dois meses, o agregado autonomizou-se do apoio em cabaz de alimentos do Centro São Cirilo. Atualmente, mantêm os dois os trabalhos nos quais foram integrados, e os filhos permanecem no infantário com as terapias e as atividades extra-curriculares. Todo o agregado recebeu ‘Autorização de Residência’, encontrando-se agora em situação regular no país. Neste momento, o objetivo do agregado é permanecer em Portugal, pois aqui encontraram paz, felicidade e melhores condições de vida, sobretudo para as necessidades dos filhos.

Longe das abstrações conceptuais sobre a pobreza e a promoção da justiça, estas pessoas concretas mostram-nos a autenticidade do trabalho social dos jesuítas. Mais do que uma IPSS,  o Centro São Cirilo é uma casa onde procuramos cumprir, diariamente, a missão da Igreja: acolher, proteger, promover e integrar (cf. Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 2019). Queremos continuar a derrubar fronteiras e fazer do Mundo uma só Casa, onde todos têm lugar, porque também nós fomos “estrangeiros na terra do Egito”. (Lv 19, 34)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.