Deparamo-nos regularmente com exigências de demissão de algum ministro ou secretário de Estado. Trata-se de uma prática com longo histórico na nossa sociedade, tanto da parte dos vários partidos políticos como na esfera do comentário televisivo e da coluna de jornal. A premissa partilhada pelos diversos atores parece ser a seguinte: quando os governantes cometem erros ou gafes, quando os resultados são inferiores aos exigíveis ou, enfim, quando as coisas não funcionam no nosso país, é desejável demitir os governantes. Mas será assim? O que deverá constituir razão para a demissão de um ministro?
Neste texto, gostaria de apresentar quatro critérios que me parecem justificar a demissão de um governante. São eles: (1) manifesta incompetência técnica para o exercício das funções; (2) falta de capacidade política para executar o programa de Governo; (3) falha grave a nível ético; (4) episódio que mine decisivamente a credibilidade do titular de cargo público. Tal como proporei, a aplicação adequada destes critérios exige tanto coragem como prudência política.
Comecemos por analisar a premissa a que inicialmente me referi, segundo a qual a saída de cena dos ministros geralmente ajuda a resolver os problemas. Ora, não é preciso recuar muito no tempo para perceber que esta máxima nem sempre se aplica. Para mencionar um exemplo da ordem do dia, veja-se o caso dos incêndios, sob tutela do Ministério da Administração Interna. Com efeito, o evento da demissão pode revelar-se muito útil no conflito político, seja como vitória da oposição ou como balão de oxigénio para o Governo, mas raras vezes traz consigo benefícios de monta para o país. Desde logo porque os custos de arranque de um gabinete ministerial são muito elevados. Por exemplo, se um novo ministro tomar posse a meio da legislatura, entre a formação da sua equipa, a familiarização com os dossierse uma posterior entrada em modo de pré-campanha eleitoral, não sobrará muito tempo para fazer algo de verdadeiramente significativo. Assim, a demissão muitas vezes mais não faz do que desviar a atenção de problemas estruturais. É uma maneira aparatosa de mostrar ação sem que nada seja realmente feito.
Com efeito, o evento da demissão pode revelar-se muito útil no conflito político, seja como vitória da oposição ou como balão de oxigénio para o Governo, mas raras vezes traz consigo benefícios de monta para o país.
Voltemo-nos então para os critérios propostos. Em primeiro lugar, competência técnica. É certo que um bom ministro não tem necessariamente de ser um especialista na sua pasta. Às vezes vale mais um gestor competente ou um mediador capaz do que um conhecedor inábil. Mas esta constatação requer alguns limites. Um ministro tem de ser capaz de dominar a complexidade das matérias que tutela para que sobre elas possa falar com autoridade. Além disso, o perfil do gestor competente não se pode aplicar a todas as pastas. Por exemplo, a Justiça e as Finanças são áreas onde são imprescindíveis conhecimentos técnicos especializados. Qualquer ministro deve assim demostrar competência técnica satisfatória para que possa ser útil ao Governo.
Em segundo lugar, há que demonstrar capacidade política para pôr reformas em marcha. Um bom ministro deve ser capaz de escutar vários atores e de procurar soluções de compromisso. Deve descobrir maneiras criativas de vencer as barreiras à mudança. Deve escolher o momento certo para intervir. Deve ser capaz de produzir mensagens políticas que funcionem junto da opinião pública. Deve explicar as suas opções políticas numa linguagem que vá para além de preferências pessoais. Enfim, tem de conseguir mobilizar os recursos necessários à execução dos objetivos a que o Governo se propôs no seu programa.
Em terceiro lugar, os membros do Governo devem manter um comportamento eticamente compatível com as funções que desempenham. O debate em torno de alguns episódios recentes – uns graves, outros irrelevantes – deverá constituir um apelo ao bom senso na avaliação de ações potencialmente reprováveis. Julgo que uma falha conducente à demissão deverá implicar pelo menos um de três requisitos: (1) originar dano ao Estado ou aos cidadãos; (2) pôr em causa a independência do titular no exercício das funções governativas; (3) constituir uma profunda incoerência entre aquilo que o governante advoga enquanto político e aquilo que faz na sua vida privada.
Muitos dos clamores de demissão no nosso país não vão ao encontro de nenhum destes critérios. Assentam antes em perspetivas de ganho político fácil, a expensas de um debate mais profundo sobre ideias.
Por fim, certos episódios avulsos, porventura impensados, todavia assumindo grande gravidade, poderão danificar irremediavelmente a autoridade e credibilidade do governante, valores essenciais na prossecução de uma governação eficaz. Uma tirada demasiado infeliz ou um gesto obsceno, que podem por vezes surgir como corolário de uma grande pressão e desgaste, tornam a demissão tão oportuna quanto inevitável.
Muitos dos clamores de demissão no nosso país não vão ao encontro de nenhum destes critérios. Assentam antes em perspetivas de ganho político fácil, a expensas de um debate mais profundo sobre ideias. Outras vezes, tratam-se de meros ataques pessoais orquestrados por interesses que se sentem de alguma forma ameaçados. Repare-se que, em algumas pastas, a exigência de demissão é crónica – casos da Saúde e da Educação. Sucedem-se os ministros mas muitos dos problemas fundamentais mantêm-se à vista de todos.
Com efeito, o resultado desta maneira de fazer política é perverso. Aqueles governantes mais modestos no capítulo das reformas feitas mas que vão agindo segundo o livro do politicamente correto mantêm os seus postos e são bem vistos aos olhos de todos. Ninguém se lembraria de pedir a demissão de um ministro bem-falante, ainda que inútil. Ao mesmo tempo, vários dos ministros que arriscam fazer mudanças exigentes mas necessárias são ridicularizados e rapidamente ficam politicamente isolados. Pior, são sujeitos a uma política de tolerância zero à mais singela gafe ou erro de análise que acaba por tornar a demissão num desfecho inevitável.
Repare-se que, em algumas pastas, a exigência de demissão é crónica – casos da Saúde e da Educação. Sucedem-se os ministros mas muitos dos problemas fundamentais mantêm-se à vista de todos.
Com efeito, o resultado desta maneira de fazer política é perverso.
O abandono da demissão enquanto receita para o alívio rápido da dor em prol de terapias mais eficazes exige um sério compromisso por parte dos partidos políticos e da sociedade civil para que discutamos mais sobre propostas e menos sobre os seus proponentes. Da parte dos nossos líderes, exige-se um exercício de prudência política, ajuizando com sabedoria quando segurar e quando deixar cair este ou aquele governante, e também uma boa dose coragem política, solidarizando-se com os promotores de reformas ambiciosas e aceitando repartir os custos políticos das mesmas. É fácil pedir a demissão de um ministro. Difícil, isso sim, é ter boas ideias.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.