Quando o povo de Israel já não estava muito longe da Terra Prometida, Moisés enviou à frente 12 homens para fazerem uma prospecção desse tão esperado destino. A jornada do povo estava a aproximar-se do fim. Para trás tinha ficado a escravidão do Egipto, a passagem do Mar Vermelho e a penosa travessia do deserto. Mas, a pouca distância, esperava-os finalmente o paraíso prometido por Deus, “uma terra onde corre leite e mel”. O relato dos exploradores que Moisés enviara era pois esperado com a maior ansiedade. O momento era solene.

Passados 40 dias chegaram finalmente os homens e com eles duas notícias, uma boa e uma má. A boa notícia: a terra de Canaã era, de facto, muito boa. Como prova, os exploradores traziam até consigo alguns dos excelentes frutos dessa terra: romãs, figos e um cacho de uvas. A má notícia: a terra já estava ocupada. Nela viviam povos bem armados: hititas, jebuseus, amorreus, cananeus…

A notícia caiu que nem uma bomba e as pessoas começaram a revoltar-se contra Moisés. No meio da confusão, alguém ainda tentou acalmar os ânimos e ser prático: deviam então lutar por essa Terra Prometida “pois, sem dúvida, havemos de conquistá-la”. Mas os exploradores desenganaram toda a gente:

«A terra que atravessámos para a explorar é terra que devora os seus habitantes e todo o povo que nela vimos é gente de grande estatura. Até lá vimos os gigantes, filhos de Anac, da raça dos gigantes; parecíamos gafanhotos diante deles e eles assim nos consideravam.» (Num 13, 32-33)

O povo desatou a gritar contra Moisés e Aarão e choraram toda a noite. A desilusão era agora total. Falavam já em escolher uma liderança alternativa à de Moisés para os conduzir de volta ao Egipto. Afinal a “Terra Prometida” era uma miragem, um engano.

No entanto, no grupo dos doze exploradores, nem todos sentiam da mesma maneira. Dois deles tinham uma conversa muito diferente:

«A terra que atravessámos para a explorar é uma terra muito, muito boa. Se a boa vontade do Senhor está connosco e nos fez sair para esta terra, Ele nos dará a terra onde corre leite e mel! Somente, não vos revolteis contra o Senhor e não temais o povo daquela terra, porque ele será o nosso pão. A sombra protectora afastou-se deles, mas o Senhor está connosco. Não temais!» (Num 14, 7-9)

A história continuou e, como sabemos, o povo de Israel veio, de facto, a ocupar a Terra Prometida e a prosperar muito nela. Deu trabalho mas, com a ajuda de Deus, tudo foi possível.

O que falhou então no início, ao ponto de quase terem voltado para o Egipto? Não estavam mentalizados para ter de lutar. Pensavam provavelmente que, se Deus tinha para eles uma Terra Prometida, um futuro feliz, Ele a daria de mão beijada. Imaginavam a vontade de Deus como a oferta de um apartamento, “chaves na mão”. Se assim não era – se a terra estava já ocupada por povos fortes e grandes – então isso significava que não havia nenhuma “Terra Prometida”, que se tinham enganado. (Ou pior: que Deus os tinha enganado).

Também nós imaginamos muitas vezes que, quando as coisas estão certas e vêm de Deus, elas não vão exigir muita luta da nossa parte. E, assim, quando a vida nos traz situações duras (aquelas dificuldades do tamanho de gigantes que nos fazem sentir insignificantes e impotentes insectos), é difícil não concluirmos que algo está errado e que Deus tem – noutro lado qualquer – um sonho diferente para nós. Ou então achamos que não há mesmo nenhuma Terra Prometida, que a felicidade é uma miragem, e caimos no desânimo e no sem-sentido, troçando dos que crêem e eutanasiando as dificuldades quando elas são mesmo grandes.

É assim nos casamentos, nas amizades, na vida profissional, na vida espiritual… Aqui vão alguns exemplos:

Várias vezes me assustei, em conversas com estudantes universitários católicos, pelo modo como falavam da vontade de Deus para os seus futuros. Parecia que a única questão, seria encontrarem a vocação certa e que, a partir daí, a vida fluiria sem grandes dificuldades. Cheguei mesmo a ouvir de um deles algo como: “Sei que a vontade de Deus corresponde à minha felicidade plena”. Precisaria de acrescentar: “através de muitas lutas…”

Tenho também visto jovens casais duvidarem da sua vocação por causa das dificuldades de entendimento que experimentam no casamento. Então afinal não somos a “pessoa certa” um do outro? Provavelmente sim mas “através de muitas lutas” para se acertarem como casal…

Na vida espiritual, por vezes, depois de um tempo inicial de descobertas fascinantes e de surpreendentes consolações vêm tempos em que custa ser fiel pois as práticas espirituais começam a ser mais difíceis. Então este caminho espiritual afinal não está certo? Sim, mas “através de muitas lutas”…

Nunca estamos preparados para ter de lutar e pagar o preço da vida na Terra Prometida. Quando Jesus explicou aos Apóstolos como seria o caminho de cruz que O levaria à ressurreição, Pedro não hesitou em repreendê-lo em particular: “Deus te livre de tal, Senhor!”. E a resposta de Jesus, neste caso, foi particularmente dura: “Afasta-te de Mim, Satanás. Não tens em mente os pensamentos de Deus mas os dos homens” (Mc 8, 33).Talvez nos falte perceber isto: ao convidar-nos a segui-lo, Jesus não diz que nunca mais vamos ter de lutar mas dá-nos metas grandes, a força de que precisamos e a garantia da Sua companhia em todos os momentos das nossas lutas. Não elimina as lutas: transfigura-as e luta connosco.

Penso que – na nossa visão da vida – não damos à luta a importância que ela realmente tem. Este facto faz com que vamos abaixo com alguma facilidade. Até lutamos, mas sempre a achar que algo está errado. Scott Peck, na sua obra “O Caminho Menos Percorrido”, começa assim o seu livro: “A vida é difícil”. E explica logo de entrada que a vida será tanto mais difícil quanto mais pressupusermos que ela deveria ser fácil. Creio que tem razão.

Mas também podemos cair no perigo contrário: habituarmo-nos tanto à luta que perdemos o sentido positivo da vida e a capacidade de a desfrutar. Porque o facto da vida por vezes ser difícil não quer dizer que ela não seja maravilhosa. E a vida não é boa “apesar de” termos de lutar mas pelo sentido da luta ao lado de Cristo e por tantas coisas boas que a vida já nos dá a saborear.

A visão cristã da vida combina assim dois aspectos: o esforço e o entusiasmo, lutar e saborear, a ascética e a mística. O pólo principal é sempre o do entusiasmo, que vem do sentido positivo do que já nos é dado viver no presente (“E Deus viu que era tudo muito bom”) e de tudo aquilo que nos é prometido para o futuro. Ou seja: sabemos que fomos criados para a felicidade e que tudo, ultimamente, se encaminha para o Bem. Fomos criados para a Terra Prometida do Céu e já aqui na terra provamos muitos dos seus frutos. Se perdemos um destes dois pólos (o entusiasmo ou a predisposição para lutar quando é preciso), já não estamos a viver a vida cristãmente. Ou caímos no desânimo, na tristeza, na amargura, ou caímos num optimismo naif, balofo, divorciado da realidade.

Apetece dizer, parafraseando o discurso dos dois exploradores:

A terra que atravessamos é uma terra muito, muito boa. Se a boa vontade do Senhor está connosco e nos fez sair para esta terra, Ele nos dará tudo o que precisamos! O Senhor está connosco. Não temas!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.