A (In)Estabilidade da Lei

Quando existe a expetativa de que uma determinada lei deixará de o ser em algum momento, abre-se caminho a comportamentos oportunistas que minam a coesão social.

Gravar as leis na pedra era prática comum entre os povos antigos. Se é certo que tanto o papel como os formatos digitais se encontravam ainda a séculos de distância, esta prática estava também carregada de valor simbólico. A lei era entendida como uma realidade estável, destinada a perdurar no tempo. Tal orientação encontra-se em clara dissonância com a realidade dos nossos dias, onde as leis do trabalho, o código da insolvência e as regras fiscais – só para mencionar alguns exemplos – estão em permanente mudança. Quem quiser esculpir na pedra as regras da nossa sociedade, correrá sérios riscos de concluir a tarefa demasiado tarde. Será que as regras devem ser permeáveis às preferências e aos interesses de cada momento? Ou será que os antigos tinham razão ao pressupor que a lei deve assumir um caráter duradouro?

Vale a pena começar por constatar que regras estáveis conferem uma previsibilidade às relações sociais que é fundamental para a vida em sociedade. Para ilustrar esta afirmação, imaginemos uma sociedade onde as regras se alteram diariamente. Neste país imaginário, qualquer indivíduo atravessaria a estrada a medo porque não saberia em que sentido os carros circulam. Cada vez que se dirigisse a uma loja, desconheceria o prazo de troca e de garantia dos bens que quisesse adquirir, o IVA que iria pagar e as comissões que seriam cobradas no seu cartão de crédito. Quando fosse para o trabalho, não saberia quantas horas teria de trabalhar nem quantos os dias de férias a que teria direito. Se quisesse lançar um projeto de investimento, não faria ideia das condições a reunir para que os bancos se disponibilizassem a financiá-lo. Numa tal sociedade seria impossível fazer planos de longo-prazo, tais como construir uma família, uma empresa ou uma casa. Ao mesmo tempo, os custos de disseminação e adaptação às novas regras afigurar-se-iam incomportáveis. A vida em sociedade tornar-se-ia assim inviável.

Sendo certo que se trata de um exemplo extremo, poderemos ainda assim transpor a lógica que lhe está subjacente para casos bem próximos de nós, onde a constante alteração das regras lança uma enorme incerteza sobre o futuro. Permitam-me referir alguns exemplos de regras que sofrem alterações frequentes, com grande impacto sobre as escolhas dos indivíduos e as empresas: (a) as taxas de IVA e IRC, bem como as regras para as deduções ao IRS; (b) os programas de ensino das escolas; (c) as regras para a constituição e dissolução de empresas; (d) as condições de acesso aos diversos benefícios sociais; (e) o número de vagas de acesso ao ensino superior nas universidades públicas; e (f) as condições de aposentação. Em todos estes casos, a instabilidade das regras lança escolhas cruciais no âmbito da família, da carreira profissional e do investimento numa verdadeira anarquia. É impossível decidir bem quando os pressupostos da decisão são constantemente alterados.

Paralelamente, a instabilidade regulamentar corrói tanto a credibilidade do Estado como a confiança que os cidadãos depositam uns nos outros. O caso do sistema nacional de pensões dá testemunho desse défice de credibilidade. Com efeito, muitos dos cidadãos mais jovens que atualmente contribuem para a segurança social estão convencidos de que não terão direito a uma pensão de velhice. O principal fundamento dessa suspeita – que surge apesar da promessa de uma pensão futura – reside precisamente no facto de as regras mudarem constantemente e sem aviso prévio. Ora, quem desejará contribuir para um seguro do qual julga não poder beneficiar? Por sua vez, a confiança mútua dos cidadãos sai prejudicada dos sucessivos regimes extraordinários, que vão desde a regularização de dívidas fiscais até ao licenciamento de construções ilegais, e que traduzem uma outra face da instabilidade regulatória. Quando existe a expetativa de que uma determinada lei deixará de o ser em algum momento, abre-se caminho a comportamentos oportunistas que minam a coesão social. Uma vez que qualquer sistema de cooperação social funciona à base da confiança, este enquadramento subverte seriamente os incentivos ao cumprimento da lei.

Habituámo-nos a encarar o ativismo legislativo como algo natural, porventura até sinónimo de obra feita. No entanto, as mudanças constantes nas regras por que nos regemos são muitas vezes injustificadas e prejudiciais no longo-prazo. É certo que, em sociedades tão complexas e dinâmicas como as nossas, a lei já não pode ser escrita sobre a pedra – à exceção de alguns princípios fundamentais a que chamamos Constituição. As regras têm de estar prontas a se adaptarem aos novos riscos e desafios gerados pelo desenvolvimento tecnológico, pela evolução das mentalidades, pelas alterações estruturais do trabalho e dos sistemas financeiros. Porém, julgo ser urgente promover um compromisso político que reconheça a importância do valor da estabilidade jurídica. Uma estabilidade que permita que os cidadãos conheçam as suas leis e que o Estado as possa efetivamente fazer cumprir.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.