Visitar o Museu Nogueira da Silva

Neste sábado a sugestão cultural da Brotéria passa por Braga, sugerindo uma ida ao Museu Nogueira da Silva. Um tempo que será certamente bem passado. Um texto escrito por uma profunda conhecedora do museu.

Neste sábado a sugestão cultural da Brotéria passa por Braga, sugerindo uma ida ao Museu Nogueira da Silva. Um tempo que será certamente bem passado. Um texto escrito por uma profunda conhecedora do museu.

Quem foi António Nogueira da Silva ?

António Nogueira da Silva, comerciante da cidade de Braga, fundou a Casa da Sorte, em 1933, a partir de uma pequena secção de tabacos, lotarias, valores selados, comissões e consignações instalada na loja de seu pai, a cervejaria Cruz, alcançando um enorme sucesso e um pequeno império na distribuição de jogos de sorte e azar.

O seu espírito empreendedor, aliado às suas preocupações e intervenções sociais, tornaram-no um benemérito respeitado pela cidade e pelo poder do Estado e da Igreja.

Foram inúmeras as obras que contribuíram para melhorar as condições de vida na cidade, principalmente de grupos carenciados, através, por exemplo, da construção de um bairro social com cem habitações e uma escola, ou do apoio a instituições com crianças desprotegidas.Integrou também organismos como o Ateneu e a Associação Comerciais e apoiou lares e instituições de ensino como a Universidade Católica.

A cidade de Braga também reconheceu o seu contributo cívico atribuindo-lhe o título de Cidadão Honorário e a Medalha de Ouro da Cidade, para além de inúmeras homenagens prestadas pelas pequenas associações, confrarias, juntas de freguesia e outras entidades que integrou ou apoiou.

Foi distinguido com as comendas de Cavaleiro da Papal Ordem de S. Silvestre (1957), de Cavaleiro da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém (1959), e de Cavaleiro de Graça Magistral da Ordem Soberana e Militar de Malta (1966). Recebeu várias medalhas da Legião Portuguesa e os títulos de Camareiro de Honra dos Papas João XXIII (1960), e Paulo VI (1963), e de Grande Oficial da Ordem de Benemerência (1964).

A cidade de Braga também reconheceu o seu contributo cívico atribuindo-lhe o título de Cidadão Honorário e a Medalha de Ouro da Cidade, para além de inúmeras homenagens prestadas pelas pequenas associações, confrarias, juntas de freguesia e outras entidades que integrou ou apoiou.

Reconhecimento justo já que, sem descendência, viria a adotar a cidade como uma das suas principais herdeiras, legando a sua casa e as coleções de objetos e obras de arte que foi adquirindo, com o objetivo de enriquecer o património local, como nos confidencia no próprio testamento.

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Interior do Museu - Imagem do site do Património Cultural

As coleções

As coleções, integradas na decoração da casa, abrilhantavam os ambientes para receber com dignidade as figuras da Igreja e do Estado que visitavam a cidade, nas mais diversas ocasiões, entre os finais dos anos cinquenta e os primeiros anos de setenta do século passado.

O próprio edifício respondia a essas exigências de representação que António Nogueira da Silva convocaria para si.

Construído em duas fases,sacrificando as velhas casas que foi adquirindo, uma delas por herança de uma tia materna, possui as marcas com que Raúl Rodrigues Lima (1909-1979), arquiteto que projetou várias obras públicas do Estado Novo, respeitou essa necessidade de aparato quer através da nobreza dos materiais e da robustez estética adotada na época, quer por um certo toque de Artdéco tardia no interior, quer pelos artistas escolhidos para decorar a casa e o jardim.

Jorge Barradas[1] por exemplo, à encomenda de temas alusivos à História do país e da cidade respondeu com o seu traço modernista, nas esculturas e nos painéis de azulejos representando as populares festas do S. João e figuras ligadas à História do país e da cidade como o Conde D. Henrique, Pedro Hispano ou S. Geraldo[2].

Também António Lino[3], artista escolhido para conceber o mosaico na entrada principal, usou o seu cunho modernista, na representação de figuras como S. Frutuoso, D. Pedro, D. Teresa e D. Henrique,imprimindo-lhe laivos arcaizantes para salientar a antiguidade da cidade.[4]

Outra escolha caiu sobre Fred Kradolfer[5], da mesma geração dos artistas anteriores, convidado a decorar a fachada com rosáceas de granito que inspiraram também os detalhes decorativos das portas no interior e a inserir os brasões dos concelhos do distrito de Braga no teto do salão principal, reforçando a intenção de António Nogueira da Silva de oferecer a sua casa à cidade.

Os objetos e obras de arte, que adquiriu em leilões e antiquários em Inglaterra e em Portugal, preenchiam abundantemente os espaços e enquadravam os cenários das festas e recepções. Os serviços de louça chinesa de encomenda e as colchas de seda do séc. XVIII, hoje conservadas nas vitrinas ou nas reservas, saíam dos armários e dos baús e abrilhantavam as cenas.

Três linhas de força que atribuem uma certa coerência ao conjunto

Nas coleções adquiridas por António Nogueira da Silva,muito variadas nas suas naturezas, proveniências, épocas e qualidade,assinalamos três linhas de força que atribuem uma certa coerência ao conjunto.

Por um lado, notamos um apreço especial do coleccionador pela cerâmica, em particular pela porcelana, essa matéria alquímica inventada na China e tão cobiçada na Europa. A quantidade e a qualidade das porcelanas da China de Encomenda e das porcelanas europeias de Sevres, Limoges e da Vista Alegre, são disso reveladoras.

Os objetos e obras de arte, que adquiriu em leilões e antiquários em Inglaterra e em Portugal, preenchiam abundantemente os espaços e enquadravam os cenários das festas e recepções. Os serviços de louça chinesa de encomenda e as colchas de seda do séc. XVIII, hoje conservadas nas vitrinas ou nas reservas, saíam dos armários e dos baús e abrilhantavam as cenas.

Por outro lado, temos uma presença variada de objetos híbridos, sinais da passagem de Portugal pelo mundo e da riqueza que resulta do contacto entre povos e culturas diferentes, com as mais diversas motivações, nem sempre pacíficas, como observa Maria Augusta Lima Cruz[6], investigadora da Universidade do Minho, sobre esses “testemunhos mudos”,– “Não falam mas expressivamente testemunham dos sentidos cruzados de uma variedade de viagens: de saberes, de palavras, de formas, de plantas, de animais, de sabores, de cheiros…Testemunham também permutas, incorporações e contaminações recíprocas entre mundos culturais diferentes. É certo, não o podemos ignorar, que subjacente a esta circulação não esteve só o gosto pelo exótico, a desinteressada curiosidade pelo novo, pelo diferente; teve também o objectivo (quantas vezes inconfessado!), de conhecer para dominar ou, se se quiser, para enquadrar por caminhos mais ou menos violentos, a diversidade dos outros nos padrões culturais europeus”.

E por último, a abundância dos temas religiosos na escultura e na pintura, explicada, por um lado, pela devoção com que António Nogueira da Silva pautava a sua vida, mas também pela profusão destas temáticas nas produções artísticas ao longo dos séculos, tendo a Igreja como principal mecenas.

Três objetos em destaque

Destacaremos neste texto apenas um objeto de cada um desses três conjuntos, cujas características, em alguns casos, convivem na mesma peça.

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Prato "Jesuíta"

Da porcelana relevamos um prato que costuma designar-se por “jesuíta”, com cenas religiosas executadas a partir de gravuras enviadas da Europa e pintura em “grisaille”. Quanto à referida designação, César Valença[7], diretor do MNS entre 1988 e 2002, esclarece – “Tradicionalmente a sua encomenda era atribuída à Companhia de Jesus, sabe-se, no entanto que os temas religiosos e a pintura, em tons cinzentos, não eram no séc. XVIII encomenda da Ordem de St. Inácio. Sem se desmentir que a Companhia de Jesus tenha feito compras de porcelana em épocas anteriores, dada a sua importância na missionação do Oriente, da estima muito especial de que gozaram junto dos imperadores chineses e da empatia, fascínio e respeito que a Civilização Oriental exerceu sobre estes religiosos. A provável origem deste tipo de louça deve-se às encomendas feitas por comerciantes, baseadas em gravuras com motivos religiosos e enviadas para China onde os temas eram pintados sem ideias preconcebidas”.

Quanto aos traços culturais distintos que convivem nos objetos híbridos, surgem neste acervo no mobiliário,num contador indo-português e na “chinoiserie” de uma secretária;na porcelana da China exportada para a Europa onde o olhar rasgado dos personagens convive com a decoração ao gosto do Ocidente e na escultura, com o cunho dos artesãos orientais no marfim das pequenas imaginárias cristãs.

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A Virgem e o Menino

Destas, destacamos a placa luso-mogol de meados do séc. XVII, representando a Virgem e o Menino, peça muitas vezes solicitada para grandes exposições sobre a Expansão portuguesa.Não faltou na “Europália” em Bruxelas (1991), na “Encompassing  the Globe” em Washington (2007) e, mais recentemente, na mostra “As Flores do Imperador” no Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa (2018), como um exemplo revelador da arte luso-mogol.

Segundo Teresa Morna[8], diretora do Museu de São Roque, teria sido a terceira missão Jesuíta para a corte Mogol, liderada pelo Padre Jerome Xavier, “a mais próxima, em data, da origem da placa de marfim aqui ilustrada –terá transportado na sua bagagem novas gravuras com temas religiosos, as quais foram tomadas com tão elevada estima que serviram de modelo para artistas na corte Mogol. Esta placa deve ser a reprodução de uma dessas gravuras.” É especialmente no tipo de vegetação representada no bordo que indica a marca, o gosto, dos artistas dessas paragens.

Acrescenta ainda que “o Imperador Akbar (reinado entre 1556-1605 [do Império Mogol]) se interessava pela arte Ocidental contemporânea, e uma das razões para convidar os Jesuítas para a sua corte era precisamente porque poderiam servir como veículo para a importação de obras de arte Europeias.”Quanto aos traços culturais distintos que convivem nos objetos híbridos, surgem neste acervo no mobiliário,num contador indo-português e na “chinoiserie” de uma secretária;na porcelana da China exportada para a Europa onde o olhar rasgado dos personagens convive com a decoração ao gosto do Ocidente e na escultura, com o cunho dos artesãos orientais no marfim das pequenas imaginárias cristãs.

Quanto aos traços culturais distintos que convivem nos objetos híbridos, surgem neste acervono mobiliário,num contador indo-português e na “chinoiserie” de uma secretária;na porcelana da China exportada para a Europa onde o olhar rasgado dos personagens convive com a decoração ao gosto do Ocidente e na escultura, com o cunho dos artesãos orientaisno marfim das pequenas imaginárias cristãs.

Na coleção de pintura nomes como Bento Coelho da Silveira, Pedro Alexandrino, Simão Rodrigues e André Gonçalves destacam-se no conjunto de inúmeras pinturas anónimas, cuja autoria os especialistas não arriscam atribuir, ficando apenas pela indicação das influências sofridas e pelo seu enquadramento numa época ou numa escola.Luís de Moura Sobral[9], especialista que analisou parte desta coleção, reconhece no seu estudo um “desafio aliciante”, com “gratas surpresas” e a descoberta de “peças com relativa importância para a história da pintura europeia”, como um pequeno tríptico da oficina de Dirck de Quade van Ravesteyn de cerca de 1600, representando a Virgem com o Menino e S. João Batista.

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Última ceia de André Gonçalves

Destacamos,nesta curta apresentação do Museu Nogueira da Silva, a “Última Ceia” de André Gonçalves (1685-1762), um pintor régio na corte de D. João V, muito conceituado na sua época, representado num importante núcleo na igreja da Madre de Deus em Lisboa. César Valença[10], no seu estudo de 1995 elucida – “Na Ceia de André Gonçalves do Museu Nogueira da Silva os apóstolos têm em geral a anatomia bem desenhada, assim como um agradável colorido, formado por verde, vermelho, azul, rosa e castanho. As cores usadas por André Gonçalves marcam na pintura portuguesa uma rutura com a pintura anterior, de influência sevilhana, ao gosto do barroco tenebrista (…), foi aluno de Giulio CesareTemine (1659-1734), um dos artistas italianos que vieram para Portugal inseridos na política cultural do Rei Magnânimo. (…) acusa igualmente a influência de outros italianos do classicismo barroco como Agostino Masucci(1691 – 1758)e Carlo Maratta (1625 – 1713) com cujas obras se familiarizara em Mafra. Por sua vez Gonçalves irá marcar Pedro Alexandrino e Vieira Lusitano(…).”

Toda esta valiosa herança foi entregue à cidade através da Universidade do Minho, por testamento, em setembro de 1975, assumindo a jovem instituição o compromisso de instalar o museu que receberia o nome do doador – Museu Nogueira da Silva.

Toda esta valiosa herança foi entregue à cidade através da Universidade do Minho, por testamento, em setembro de 1975, assumindo a jovem instituição o compromisso de instalar o museu que receberia o nome do doador – Museu Nogueira da Silva.

Realizados os procedimentos iniciais de organização museológica, criaram-se as condições para acolher o público e para dinamizar os espaços com exposições, concertos, oficinas, palestras que se mantiveram, num ritmo constante, ao longo destes mais de quarenta anos.

As garagens transformaram-se numa galeria de exposições temporárias pioneira nos anos oitenta, recebendo artistas como Álvaro Lapa, Julião Sarmento, Vítor Pomar ou Pedro Sousa Vieira, entre muitos outros e exposições temáticas relacionadas com as coleções. Formou-se um Centro de Documentação Fotográfica para acolher as memórias guardadas em papel, esquecidas nos baús e nas gavetas das famílias e das instituições. Criou-se uma biblioteca sobre arte para apoiar as investigações e os estudos sobre as coleções e um serviço educativo para acolher os mais novos.

Tomando as próprias coleções de pintura, escultura e artes decorativas, como impulsionadoras desta dinâmica, sempre houve a preocupação, por parte das diferentes direções,em promover e divulgar todas as formas artísticas, de todas as épocas, de todas as áreas, estimulando reflexões e debate de ideias,numa janela da Universidade aberta para a cidade.

Ir ao Museu

Av. Central, 6 4710-228 Braga | Mapa Google
Das 10h às 12h – das 14h às 17:30h

Galerias
Das 10h às 12:30h – das 14h às 18:30h
Encerram Sábados de manhã, Domingos, Segundas e Feriados

Marcação de Visitas
Pelo telefone – 253 601275,
por fax – 253 264036
ou por email – [email protected]

 

Imagem de capa – https://alumni.uminho.pt/

[1]Jorge Barradas (1894-1971), pintor, ceramista, ilustrador e caricaturistaportuguês.
[2] Legendas das esculturas de Jorge Barradas: “PEDRO HISPANO, ARCEDIAGO DA SÉ DE BRAGA. ARCEBISPO ELEITO PARA A MESMA SÉ. SUMO PONTÍFICE JOÃO XXI. MCCVI/MCCLXXV”; “REQUIÁRIO DE BRAGA/ PRIMEIRO REI CRISTÃO DA EUROPA/ CDXLVIII/CDLVI”; “CONDE D. HENRIQUE SENHOR DE BRAGA/ PRIMEIRO SOBERANO DE PORTUGAL /MXCVI.MCXII”; “S. GERALDO PRIMEIRO METROPOLITA BRACARENSE/ INTITULADO ARCEBISPO PADROEIRO DE BRAGA/MXCVI.MCVIII”.
[3] António Lino (1914-1996), artista plástico português que integrou o Movimento de Renovação da Arte Religiosa.
[4] Legendas do mosaico de António Lino”: “:BRACARA: :AUGUSTA”; “NO SEC. VII: O:ARCEB.DE:BRAGA:S.FRUTUO-SO:CRIA MOSTEIROS E: FUNDA:INSTITUI-ÇÕES:MONÁSTICAS”; “NO:SEC XI:D.PEDRO SAGRA: A ACTUAL:SE METROPO-LITA; CIVITAS:ARCHIEPISC/”; “D.TERESA: E:D.HENRIQUE:DO-AM:BRAGA:AOS:ARCEB (S.XII)”:
[5]Fred Kradolfer(1903-1968), de origem suíça, foi pintor, ilustrador, artista gráfico e decorador.
[6] CRUZ, Maria Augusta Lima, 1998, ”Rota do Cabo Ligação de Mundos”, catálogo da exposição com o mesmo nome, realizada no Museu Nogueira da Silva/Universidade do Minho, Braga, MNS/UM, pp.9,10.
[7] Valença, César, 1994, “Porcelanas da China e Marfins de Arte Missionária do Museu Nogueira da Silva/Universidade do Minho”, participação no “IV Encontro de Museus de Países e Comunidades de Língua Portuguesa”, Macau, Comissão Portuguesa do ICOM, pp. 53,54.
[8] MORNA, Teresa Freitas, 2007, in Catálogo da Exposição “Encompassing the Globe Portugal and the World in the 16th e 17th Centuries”, Washington, Jay A. Levenson Ed., p.120 (tradução)
[9] SOBRAL, Luís de Moura Sobral, 1995, “Pintura Estrangeira dos Séculos XVI, XVII e XVIII da coleção Nogueira da Silva, Braga, Museu Nogueira da Silva/Universidade do Minho, p.4
[10]VALENÇA, César, 1995, “Considerações a partir da Última Ceia” do Museu Nogueira da Silva”, in revista “Forum”, n.º 18, Braga, Conselho Cultural da Universidade do Minho, pp. 83,84.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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