João Manuel foi durante algum tempo o sobrinho do pároco de Nogueiró, que era também o seu padrinho. E no contexto desta paróquia de Braga, desde cedo foi interpelado por outros com a ideia de ser padre, pois na brincadeira os miúdos diziam-lhe: “se és afilhado do padre, também vais ser padre”. Mas apesar de ter crescido num ambiente profundamente católico e de se ter destacado, entre os jovens da sua idade, por ser muito empenhado na vida da Igreja e extremamente religioso, o desejo de seguir a vida sacerdotal surgiu já numa idade adulta, quase no fim da faculdade, quando conheceu os jesuítas. Até lá, esta era uma ideia que rejeitava até com alguma convicção.
“Quando me diziam isso, até levava a mal, ficava chateado. Pois nunca me via a ser padre, tinha até algum preconceito”, confessa ao Ponto SJ, João Manuel Silva, hoje diácono na Companhia de Jesus. Mas a verdade é que desde pequenino que rezava muito e sentia que Deus era importante na sua vida. Nascido em 1984 numa família devota de Braga, uma cidade muito tradicionalista, João cresceu muito à volta da Igreja, num ambiente familiar e comunitário forte. Com os pais e a avó aprendeu a rezar à noite, os valores cristãos, e também a participar ativamente na vida da paróquia. “O Evangelho era uma coisa muito prática na vida da minha família”, recorda, pelo que fazer o percurso religioso da catequese, primeira comunhão, escuteiros, etc, foi encarado como algo perfeitamente natural.
Aos 15 anos, o jovem João Manuel decidiu ler o Novo Testamento todo e com as cartas de São Paulo foi percebendo que a fé era uma coisa mais séria do que parecia. “Além da parte devocional e da catequese, e de participar nas coisas da Igreja, comecei a perceber que a fé era uma coisa mais profunda”, confessa. Quando o padre de Nogueiró mudou e começou a insistir muito na questão vocacional, na necessidade de rezar pelas vocações, João começou a sentir alguma pressão, ainda que indireta, das pessoas da sua comunidade. “Ele dizia que não havia um padre há mais de um século na paróquia e acrescentava: ‘Como podem exigir aqui alguém se não contribuem?’ E aí toda a gente, a começar na minha avó, olhava para mim na Igreja… E eu fingia que não era nada comigo. Não me sentia nada chamado.”
Quando o pároco pedia orações pelas vocações, João sentia alguma pressão, ainda que indireta, da sua comunidade. “Dizia que não havia um padre há mais de um século e acrescentava: ‘Como podem exigir aqui alguém se não contribuem?’ Toda a gente olhava para mim… eu fingia que não era nada comigo”.
Contudo, num sábado específico do qual bem se recorda, essa questão tocou-lhe mais fundo e até comentou com um amigo: “Hoje o padre disse aquilo e eu fiquei a pensar: será que ele está a falar para mim?” Neste desfiar de memórias, João recorda outro ponto importante, ao qual não deu, na altura, a devida importância: uma reportagem publicada no Público sobre o noviciado dos jesuítas. “Entusiasmou-me, mas depois pensei como seria ter de sair de Braga e ir para Coimbra…”, confessa, sublinhando que recortou o jornal e guardou-o na mesa de cabeceira.
A primeira inquietação vocacional séria surgiu já em jovem adulto. Cada vez mais empenhado na Igreja, onde era catequista, ligado ao grupo coral e à liturgia, João era também um rapaz que adorava sair à noite, estar no café a conversar com os amigos, e passear. E que apesar de estar envolvido na vida académica, saía das reuniões da comissão de praxes para ir à missa, diariamente. “Ainda hoje estar no café com os amigos é das coisas que mais gosto me dá. E fazia-o com amigos crentes, mas também outros muito críticos da Igreja e da fé. Foi nesta normalidade da vida, na universidade, que a minha fé se foi fortalecendo e a minha vocação foi aparecendo”.
Foi também nessa relação com a vida do dia a dia, e com as dúvidas e questões dos amigos – algumas eram também as suas – que João foi questionando uma ideia de Igreja que já não correspondia àquilo a que aspirava. “Fui pondo em causa a fé moralista, de cumprir regras, que deixou de bater certo com a minha vida, não fazia sentido. Hoje vejo que fui guiado pelo Espírito, mas na altura não percebia estas coisas. Comecei a perceber a fé mais a fundo, porque aquela que me tinha sido transmitida já não me bastava”, partilha João Manuel, acrescentando: “Há muita gente dessa idade que, com isso, se afasta. Eu procurei saber mais. Foi a graça de Deus que trabalhou em mim. As dúvidas dos meus amigos ajudaram-me a procurar saber mais, a crescer na relação com Deus.”
“Há muita gente dessa idade que, com isso, se afasta. Eu procurei saber mais. Foi a graça de Deus que trabalhou em mim. As dúvidas dos meus amigos ajudaram-me a procurar saber mais, a crescer na relação com Deus.”
Foi neste contexto, em que estava difícil de dar um salto na fé, pois “não encontrava nenhuma forma de estar na Igreja com que se identificasse”, que João conheceu alguns jesuítas que estudavam filosofia em Braga. Foi a propósito da missa de finalistas do curso, e da participação nos ensaios do coro da celebração. “Quando conheci estes rapazes, disse para mim: ‘Alto lá!! Isto parece-me muito aquilo que eu idealizava’. Não sei de onde tirei a ideia, pois nem sabia que eles existiam”. João confessa que ficou admirado porque estes jovens que estavam a estudar para ser padres, mas também iam ao café, beber uma cerveja, e respondiam de forma diferente a questões que tinha dentro de si. Convidado para visitar a sua comunidade, ficou impressionado por viverem num apartamento, onde os padres serviam à mesa. “Foi uma revolução para mim. Só pensava: mas existe isto na Igreja Católica?”
João diz que foi como que encontrar, na prática, um esquema com o qual tinha sonhado. “O meu pai costumava dizer que eu queria criar uma religião à minha maneira. Mas a verdade é que a forma de estar na Igreja que eu idealizava estava ali. Foram assim como mil luzes que se acenderam ao mesmo tempo.” O jovem João começou a frequentar o Centro Académico de Braga, a cargo dos jesuítas, onde havia “missas com gente nova e mais informais”, e no verão participou num campo de férias. “Foi uma experiência muito forte e aí, pela primeira vez, resolvi dizer a um padre que estava a sentir o desejo de ser padre e que nunca tinha encontrado o modo de concretizar esse desejo.”
“O meu pai costumava dizer que eu queria criar uma religião à minha maneira. Mas a verdade é que a forma de estar na Igreja que eu idealizava estava ali. Foram assim como mil luzes que se acenderam ao mesmo tempo.”
Começou então o verdadeiro processo de discernimento vocacional, acompanhado por um sacerdote jesuíta através de encontros regulares. “Para mim era uma novidade, rezar de forma diferente. Participei também noutras atividades organizadas pelos jesuítas que me marcaram muito, como a Páscoa Inaciana”.
Acabado o curso e tomada a decisão de não fazer o exame à Ordem dos Advogados, João passou um ano mais introspetivo, com muitos tempos de passeio e oração, ao mesmo tempo que fazia voluntariado numa câmara. Quando surgiu a oportunidade de fazer um estágio profissional, sentiu que tinha que se decidir, sob pena de começar algo e ter de interromper depois. “Fui fazer exercícios vocacionais. Foi um tempo de dúvidas, mas também de decidir entrar na Companhia”, recorda, acrescentando que a notícia de sair de casa, e de forma “tão radical”, não foi acolhida com muita surpresa pela família e amigos, apesar de terem sofrido bastante com a sua saída.
O dia 28 de setembro de 2008, quando entrou no noviciado em Coimbra, foi muito emotivo, numa mistura de alegria e entusiasmo pelo passo dado e de tristeza por estar a “cortar o cordão umbilical”. Os primeiros tempos foram um “cortar com tudo” – deixar de estar com os amigos do costume, de ter carro, de sair à noite e ir para o café, de ter autonomia para fazer o que quisesse – mas “era tudo novidade e isso entusiasmava-me muito”. Depois vieram as experiências marcantes, como o trabalho no hospital psiquiátrico ou os exercícios espirituais de um mês, que confirmavam sempre a decisão que tinha tomado.
No dia 3 de abril, quase dez anos depois de ter entrado para a Companhia de Jesus, João Manuel teve a sua ordenação diaconal, estando já bastante perto de se tornar sacerdote. Um caminho bonito e de grande alegria, mas não isento de dúvidas e dificuldades. “Às vezes distraio-me com vidas que não tenho e gostaria de ter. Mas com toda a verdade, ao longo destes anos, no mais fundo de mim mesmo, sempre soube que era este o meu caminho”, assegura.
Atualmente a estudar em Roma, o jesuíta diz que ainda sente muito a falta da família, e que sofre por não poder acompanhar os momentos importantes da vida dos amigos e familiares. “Mas sinto que estou a fazer a vontade de Deus e a vontade de Deus é que sejamos felizes. Não é uma felicidade egoísta e de bem-estar porque muitas vezes não estamos bem, há tantas contrariedades, é aquela paz profunda que tenho de saber que estou no lugar certo”.
Para saber mais sobre vocação e discernimento, consultar a página Ser Jesuíta.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.