The Queen’s Gambit conta-nos a história do prodígio de xadrez Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) e da sua ascensão no mundo dos Grandes Mestres durante os anos 60 do século XX. Esta minissérie, inspirada pelo livro de ficção com o mesmo título (Walter Trevis, 1983), mostra-nos uma história que revela as sombras que acompanham a nossa existência, às quais a genialidade não só não resiste, como muitas vezes sucumbe.
Beth é introduzida no mundo do xadrez aos 8 anos, pela mão de Mr. Shaibel (Bill Camp), o encarregado de manutenção do orfanato onde ela vive. Aquele apaixonado amador do jogo abre-lhe as portas do mundo do xadrez, um mundo em que a intuição lógica e impulsividade de Beth se revelam eficazes e implacáveis, num caminho que se transforma em carreira quando Alma Wheatley (Marielle Heller), a sua mãe adotiva, ganha consciência do seu potencial.
O que atrai Beth ao xadrez é a possibilidade de habitar um mundo inteiro composto de 64 quadrados; um mundo previsível, que se pode controlar, dominar, um mundo onde ela pode sentir-se segura e onde, em caso de fracasso, a culpa é absoluta e exclusivamente sua. Esta aguda consciência de responsabilidade pelo seu rumo, temperada pela convicção de que somos seres condenados à solidão, faz de Beth uma força vibrante e autónoma, para quem a intimidade é permanentemente um desafio.
Talvez a incapacidade de se reconhecer dependente de outros – algo com o qual todos nos debatemos no momento ocidental atual – seja um dos fatores que a levam a encontrar nos tranquilizantes e no álcool um santuário. Contudo, uma compreensão justificada da sua dependência de substâncias é difícil, pois esta dimensão da vida de Beth é-nos mostrada sem profundidade, faltando a coragem – ou a perícia – aos responsáveis da série para nos levar a habitá-la.
The Queen’s Gambit tem a virtude de nos confrontar com um dos equívocos hodiernos mais comuns: a vida como equação, numa sucessão encadeada de acontecimentos, ao qual se pode encontrar uma resposta lógica num contexto limitado de possibilidades. Esta mundivisão está inelutavelmente condenada ao fracasso, pois não está equipada para lidar com o paradoxo, com a co-incidência de opostos, com o vazio no reconhecimento, a frustração no êxito, a alegria na pobreza, a dor que subsiste no amor, a liberdade experimentada na dependência. A busca contínua de afirmação e de lugares seguros leva-nos a querer silenciar os indicadores que apontam o único óbvio: nem o mundo, nem os outros, nem mesmo os nossos sentimentos ou estados de alma, estão sob o nosso controlo; nenhum destes elementos nos pertence.
Todos temos de aprender a caminhar na vida como sobre a água, por vezes calma como um mar, outras vezes tormentosa como o oceano, e só a confiança, nutrida em relações, pode evitar a submersão. O tecido da realidade é o paradoxo, e é esta a perceção em que a “Rainha” Beth terá de crescer, uma perceção que põe em causa o seu “jogo”.
https://www.youtube.com/watch?v=CDrieqwSdgI
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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