Uma consagração para pôr fim à “guerra sagrada”

Alargando a perspectiva, percebemos que o que se passa no panorama religioso na Ucrânia não é apenas um conflito local entre duas igrejas, mas tem a ver com uma luta por poder e influência dentro da ortodoxia global.

Alargando a perspectiva, percebemos que o que se passa no panorama religioso na Ucrânia não é apenas um conflito local entre duas igrejas, mas tem a ver com uma luta por poder e influência dentro da ortodoxia global.

Dias antes da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, quando a situação estava já muito tensa, escrevi um artigo no meu blog pessoal sobre as dimensões religiosas do conflito. Publiquei o artigo sem grande expectativa. Enganei-me. Nunca esperei que houvesse tanto interesse mediático pela vertente religiosa desta guerra.

Infelizmente, a religião tornou-se um factor central desta guerra pelas piores razões. A principal é o papel desempenhado por Cirilo, cujo título completo é Patriarca de Moscovo e de toda a Rus’. Não é uma gralha, é mesmo assim, Rus’. E porque não Rússia? Porque Rússia é o nome de um Estado, com fronteiras, a sua própria bandeira, o seu próprio hino e o seu próprio ditador. Já Rus’ é um conceito. Na mitologia alimentada por Moscovo, Rus’ é o nome dado ao território que é hoje composto pela Rússia, Bielorrússia e Ucrânia. Povos que, nas palavras de Cirilo, nasceram da mesma fonte baptismal, isto é, que partilham uma só herança cristã. Mas a própria da fonte baptismal a que ele tanto se refere localiza-se em Kiev, onde o príncipe Vladimiro ordenou que todo o povo fosse baptizado no ano 988.

A Ucrânia está para a Ortodoxia Russa, por isso, como Guimarães para a nacionalidade portuguesa, pelo que Cirilo e os seus seguidores ideológicos não toleram a ideia da separação, fazendo desta uma guerra sagrada. Isto serve às mil maravilhas a Putin, que tem aproveitado a propaganda.

O problema é que desde esse baptismo nas águas do Dniepr passou-se muita coisa, incluindo a União Soviética, que de Moscovo oprimiu e esmagou a vontade de liberdade dos ucranianos, orquestrando uma das piores tragédias humanitárias do Século XX, a grande fome do Holodomor. Não é de espantar que depois da queda da União Soviética muitos dos ortodoxos ucranianos já não quisessem nada com Moscovo, nem com os seus políticos nem com os seus patriarcas e bispos que já tinham sido colegas na antiga KGB. Seguindo o princípio do Cristianismo Oriental de “um estado, uma Igreja” os ucranianos formaram uma Igreja Ortodoxa independente. Trinta anos mais tarde essa independência – ou autocefalia, para usar o termo próprio – foi finalmente reconhecida pelo Patriarca de Constantinopla, que detém a primazia de honra na comunhão ortodoxa.

É o reconhecer que a intervenção puramente humana, nesta situação, não só não consegue resolver, como ainda pode piorar a situação

Alargando a perspectiva, percebemos que o que se passa no panorama religioso na Ucrânia não é apenas um conflito local entre duas igrejas, mas tem a ver com uma luta por poder e influência dentro da ortodoxia global.

De um lado temos Constantinopla, chefiada pelo Patriarca Bartolomeu com a minúscula comunidade que as purgas e os massacres turcos lhe deixaram, e do outro temos Moscovo, que com os seus 90 milhões de fiéis é, de longe, a maior Igreja Ortodoxa do mundo. Moscovo confunde dimensão com primazia e tem feito os possíveis para se posicionar como a força dominante da Ortodoxia. O reconhecimento da autocefalia da Igreja ucraniana foi apenas mais uma jogada neste tabuleiro de xadrez e a Rússia ripostou imediatamente, criando missões no território das Igrejas que a reconheceram. O Kremlin garante que a Igreja russa tem dinheiro e influência para o fazer, o que por sua vez mantém os patriarcas de outras igrejas ortodoxas em sentido.

Ou pelo menos assim era. Ainda há muito caminho para fazer, mas começa a parecer que com esta “operação militar para tomar Kiev em dois dias”, que fez ontem um mês, a Rússia deu um passo maior que as pernas. Pouco faltará para se formar aqui uma tempestade perfeita que deixa a Rússia derrotada no campo de batalha, com a reputação militar posta em causa, e totalmente falida. Se isso acontecer, poderá significar o fim da era Putin e, nesse caso, o possível enfraquecimento drástico de uma Igreja que meteu todas as fichas no ditador e que, por causa da sua postura nesta guerra, está cada vez mais isolada das restantes igrejas ortodoxas. Que fique claro que tudo isto terá consequências que vão muito para além da Ucrânia e da Rússia, alterando – possivelmente para pior – o equilíbrio de forças no Médio Oriente e no Cáucaso, por exemplo.

Claro que tudo isto é conjectura, mas já vemos vários sinais neste sentido. Dioceses inteiras na diáspora russa deixaram de reconhecer Cirilo e os patriarcas de mais de um país elevaram a voz contra o seu papel na legitimação da guerra que tem matado indiscriminadamente civis.

Onde entra a consagração que hoje se faz em Roma e em Fátima? A explicação mais simples de uma consagração é que é o acto de confiar algo a Deus, neste caso por intercessão de Nossa Senhora. É o reconhecer que a intervenção puramente humana, neste caso, não só não consegue resolver, como ainda pode piorar a situação. E é claramente isso que temos neste momento com a guerra na Ucrânia. Os homens começaram a guerra, os “homens de Deus” agravaram-na. Talvez a solução passe mesmo por retirar os homens da equação e deixar Deus fazer o que faz melhor: salvar.

O autor escreve de acordo com anterior norma ortográfica. 

Fotografia de DDP – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.