1. Um vazio desolador
“Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.” (Papa Francisco)
Sim. Reconhecemos o vazio: nas ruas e nos gestos. Sentimos um sobressalto ao imaginá-lo nas casas de quem vive isolado, nos lares em que idosos permanecem fechados nos quartos com medo do contágio, no cansaço de mães e pais desdobrados em trabalhos sem tempo de parar, na angústia e incerteza dos que já perderam o emprego ou ansiosamente antecipam esse momento. Nos lugares abandonados em que já não se ouvem nem vozes nem gargalhadas, nem se sente o calor da presença humana de tantas pessoas que amamos.
Será neste vazio que nasce o “meio de nós” em que habita o reino de Deus?
2. E, neste barco, estamos todos
“ E, neste barco, estamos todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer» (cf. 4, 38), assim também nós nos apercebemos de que não podemos continuar estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.” (Papa Francisco)
O Evangelho escolhido é a palavra exata para o tempo e o momento que vivemos. E assim percebemos: não somos nós que lemos a Palavra de Deus é a Palavra de Deus que nos lê a nós, que entra na nossa história. E então entendemos o que nos parecia tão estranho e impenetrável: “O Verbo se faz carne e habitou no meio de nós.”. Ao repartir a Palavra Francisco lê a nossa vida, desce ao nosso coração para nos convocar: “só conseguiremos juntos.”
Somos um. Não nas ideias ou nas doutrinas, mas na vulnerabilidade que em Jesus une a nossa humanidade a Deus, para sempre. Sem divisão, nem confusão.
É agora que descobrimos o que significa ser um com Jesus?
3. Abandonámos aquilo que nos alimenta
“A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade.“ (Papa Francisco)
Talvez sintamos pudor ou a impossibilidade de tirar proveito espiritual deste tempo. Pudor ao ver tal proveito como um luxo diante da dor de tantos. A impossibilidade a que somos sujeitos pela frustração de nos sentirmos perdidos ou bloqueados em tarefas e trabalhos redobrados, em tensões e ansiedades. Mas podemos redescobrir o que nos alimenta.
Onde está para nós a árvore de Zaqueu para que subamos, para que Jesus nos chame e nos devolva aos outros?
Será esta a altura de nos reconciliarmos com a nossa pequenez?
E assim percebemos: não somos nós que lemos a Palavra de Deus é a Palavra de Deus que nos lê a nós, que entra na nossa história.
4. O tempo do nosso juízo
“Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros.” (Papa Francisco)
Não é o tempo do juízo de Deus. O que esperamos, nesta espera incerta e imposta, talvez seja o eco de uma pergunta primordial: Onde está o teu irmão? Ainda que tantas coisas estejam interrompidas e paralisadas o tempo não é um absoluto, nem está parado. Há passado (e presente) a agradecer, há futuro a esperar em gestos concretos que realizam a promessa: “ninguém se salva sozinho.”
O que fizeres a um dos mais pequeninos… Sim, Jesus está aqui presente, vivo e atuante, no meio de nós, como no pão e no vinho, na presença daqueles com quem vivemos, na presença daqueles a quem telefonamos ou que nos telefonam. Na Palavra de Deus que pode circular gratuitamente no meio de nós.
É agora que descobrimos o Sacramento do irmão?
5. Abraçados à cruz
“Abraçar a sua cruz significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Significa encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade.” (Papa Francisco)
Abandonado a ânsia da omnipotência e possessão, recordando que somos pó, cinza ungida pelo espírito para que o lume se insinue em espaços de hospitalidade. Abraçados à cruz não como quem foge, mas como quem estende os seus braços como uma porta para que todos saibam que há lugar na casa do Pai.
Quem são os sem-abrigo que o espírito nos revela para que lhes dêmos tecto e calor? É neste abraço aos mais esquecidos que acolhemos a salvação oferecida gratuitamente na entrega que a cruz revela.
Será este o tempo oportuno para aprender que a salvação não é um prémio?
6. A Palavra proclamada no rosto e nos gestos
A Palavra de Deus também foi proclamada e repartida nos traços carregados do rosto de Francisco. Como se as suas rugas e os seus gestos fossem as nossas vidas reunidas diante de Deus. A voz e os passos (débeis e decididos) do Papa foram os nossos, a nossa fragilidade comum levada até à cruz de Jesus. A praça estava vazia. Nós sentimos o vazio. Mas estávamos juntos, congregados numa só assembleia. O Reino de Deus está no meio de nós.
É agora que a Igreja se faz hospital de campanha sem que ninguém fique de fora?
Homilia do Papa Francisco – completa
Bênção Urbi et Orbi – Completa
https://www.youtube.com/watch?v=r0KvvQwDvVE
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.