Um coração frágil mas inteiramente dedicado à missão

P. José Alves Martins foi missionário em Timor quase 50 anos. Apesar de nunca ter sonhado lá ficar, a guerra e a dedicação ao povo timorense fizeram-no permanecer ao lado dos que mais sofriam, a lutar pela independência. Morreu aos 80 anos

P. José Alves Martins foi missionário em Timor quase 50 anos. Apesar de nunca ter sonhado lá ficar, a guerra e a dedicação ao povo timorense fizeram-no permanecer ao lado dos que mais sofriam, a lutar pela independência. Morreu aos 80 anos

O estranho pedido chegou de uma senhora timorense com quem se encontrou em Jacarta, na Indonésia, quando aí se deslocou para tratar de alguns assuntos: “O padre não poderia levar, de regresso para Timor, um rádio de transmissões para ajudar a guerrilha, nas montanhas, a comunicar com o exterior?” No ano de 1982, aquele era um pedido perigoso. Timor estava sob ocupação indonésia há sete anos e ser cúmplice dos timorenses que resistiam às investidas dos militares, escondidos nas montanhas e sob comando de Xanana Gusmão, poderia resultar na morte. Ainda assim, o P. José Alves Martins arriscou. Levou as peças do aparelho escondidas na mala e arranjou uma forma insuspeita de as fazer chegar a Baucau sem chamar a atenção dos militares indonésios, aproveitando, para esse efeito, uma mala com livros que o bispo de Díli, de visita à região, tinha de transportar. O rádio chegou ao destino através dos elementos da guerrilha que pela calada da noite desciam à cidade, e foi um elemento essencial para garantir as comunicações entre as montanhas e o exterior.

Este é apenas um dos episódios da vida do P. José Alves Martins, falecido esta segunda-feira, dia 14 de março, aos 80 anos, em Portugal, que ilustra bem o apoio que o sacerdote jesuíta foi dando à resistência timorense e que se tornou fundamental para que o povo de Timor alcançasse a sua independência. No livro “Da cruz ao Sol Nascente”, onde narra a sua própria experiência em Timor Leste desde 1974 até 2012, são muitos os exemplos que testemunham a dedicação e a entrega do jesuíta português ao povo timorense, que fizeram dele uma espécie de herói nacional. Apesar de nunca ter desejado ir para as Missões, e de ter chegado ao território timorense, aos 33 anos, em 1974, com o intuito de aí permanecer apenas dois anos, a verdade é que esteve sempre do lado do povo durante a invasão indonésia, recusando-se a abandonar os que mais sofriam no momento de provação. “Quando estava em Timor, senti que era cobardia abandonar o povo que estava em sofrimento e lutei pela sua libertação”, confessava em 2016 à Agência Ecclesia. Nessa entrevista recordava ainda muitos dos episódios vividos, como o ataque ao seminário de Dare, ao lado do seu grande companheiro de vida, o P. João Felgueiras, também jesuíta e ainda em terras timorenses, já com 100 anos de idade.

No livro “Da cruz ao Sol Nascente”, onde narra a sua própria experiência em Timor Leste desde 1974 até 2012, são muitos os exemplos que testemunham a dedicação e a entrega do jesuíta português ao povo timorense, que fizeram dele uma espécie de herói nacional.

Não é de estranhar, pois, a enorme consternação que a notícia da sua morte causou entre os seus irmãos jesuítas, mas principalmente em Timor e na comunidade timorense que se encontra em Portugal. Ainda a notícia estava a chegar à Cúria Provincial, da parte do Hospital de Vila Franca de Xira onde o jesuíta estava internado para ser submetido a uma cirurgia ao colo do fémur, fraturado na sequência de uma queda, e já ao telefone alguém perguntava pelas exéquias fúnebres. O governo timorense foi célere a manifestar “a enorme consternação e pesar” pela morte do padre jesuíta que viveu em Timor mais de 50 anos. Também em pouco tempo, chegou ao superior jesuíta em Timor, P. Joaquim Sarmento, uma carta de Francisco Guterres Lo Olo, onde o próprio Presidente da República descrevia o impacto da vida do “filho desta Pátria”: “foi sempre uma voz ativa na denúncia do ocupante e na defesa das posições sagradas do povo”. Nessa missiva, o Presidente da República de Timor Leste destacava ainda a importância cultural da missão do P. Martins: “Como pedagogo acabou por formar, em língua portuguesa, uma geração de timorenses. Iniciou essa condição de pedagogo no Seminário de Nossa Senhora de Fátima, em Dare, e continuou no Externato de São José. Esta escola tornou-se um baluarte cultural da resistência”.

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P. José Alves Martins com a comunidade timorense.

Em Portugal, a Presidência da República também lamentou a morte do P. José Alves Martins, num comunicado onde refere a “figura marcante da Companhia de Jesus que dedicou quase meio século da sua vida da servir a população de Timor Leste.
Este reconhecimento oficial por parte dos dois países já tinha sido expresso em várias condecorações entregues em vida ao sacerdote jesuíta: em 2012, recebeu a Medalha da Ordem de Dom Martinho Lopes e em 2016 a Medalha da Ordem de Timor-Leste. Da Santa Sé recebeu, das mãos do bispo de Díli, na presença do Secretário da Nunciatura Apostólica, no dia 27 de março de 2019 a medalha Pro Ecclesia et Pontifice, atribuída pelo Papa Francisco, pelos méritos da sua ação apostólica em Timor Leste.
Mas foi na vida concreta de muitos que o “Padre Espiritual ou Amo Martins”, como era conhecido em Timor, deixou as principais marcas. Joaquim Sarmento, superior dos Jesuítas em Timor, recorda o quanto era amado e respeitado, a marca jesuíta que deixou e o seu contributo, juntamente com o P. João Felgueiras para “a educação dos jovens, a formação do clero e religiosos/as, acompanhamento espiritual, e a assistência ao povo na sua luta pela liberdade.” Durante 48 anos, acrescenta, “viveu intensamente as palavras do Senhor, que (o Padre) tinha escolhido como o lema do seu ministério sacerdotal: ‘Eu estou entre vós como aquele que serve’, e nos conflitos mais violentos de 1975 decidiu (juntamente com o P. João Felgueiras e o Irmão Daniel Coelho de Ornelas) dar ouvidos ao velho sábio: ‘neste tipo de situação, os Jesuítas são os últimos a partir’. E permaneceram. E ele experimentou a dor de Timor desde o mais íntimo.

“Viveu intensamente as palavras do Senhor, que (o Padre) tinha escolhido como o lema do seu ministério sacerdotal: ‘Eu estou entre vós como aquele que serve’, e nos conflitos mais violentos de 1975 decidiu (juntamente com o P. João Felgueiras e o Irmão Daniel Coelho de Ornelas) dar ouvidos ao velho sábio: ‘neste tipo de situação, os Jesuítas são os últimos a partir’. E permaneceram. E ele experimentou a dor de Timor desde o mais íntimo.”

Do P. João Inocêncio Piedade, jesuíta timorense, chegam outras palavras sentidas e sofridas pela partida do companheiro que foi seu mestre e formador no Seminário Menor de Nossa Senhora de Fátima em Dare-Díli, antes da invasão da Indonésia, e mais tarde irmão e amigo na Companhia de Jesus: “Não tenho palavras para expressar a minha dor e pesar pelo falecimento do nosso irmão e amigo, grande jesuíta português e timorense”, afirma numa mensagem enviada ao Ponto SJ. O jesuíta destaca a “profundidade do seu pensamento, a lógica do seu raciocínio, a clareza e lucidez na exposição do conteúdo das disciplinas que ensinava e sobretudo o grande amor ao Senhor e à Companhia de Jesus”. Sobre a sua dedicação ao povo timorense, a mesma gratidão de tantos:“ Após ter vivido na própria carne toda aquela tragédia nas primeiras semanas da invasão por todo o território de Timor e especialmente em Dare em que o edifício do Seminário foi bombardeado pelas tropas indonésias, e, o próprio Zé foi atingido por um estilhaço, continuou a acompanhar alguns dos seus estudantes dispersos, de modo particular a mim e mais outro meu companheiro também jesuíta e ambos residentes em Díli, propondo-nos de fazer sob a sua direção os Exercícios Espirituais na vida quotidiana.”

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P. João Felgueiras e P. José Alves Martins em Timor.

Contudo, não foi isto que o P. José Alves Martins desejou quando respondeu ao apelo do Provincial para que fosse para Timor, onde era necessário um sacerdote para exercer o ministério de formador espiritual e ser professor dos seminaristas. Nascido no Lugar de Aldeia de Baixo, freguesia de S. Romão de Neiva, em Viana do Castelo, a 17 de julho de 1941, fez os estudos secundários na Escola Apostólica de Macieira de Cambra de 1953 a 1958, entrando para a Companhia de Jesus uns meses depois, na Torre, Soutelo, Vila Verde. Depois do Noviciado estudou Humanidades e em 1963 foi para a Faculdade de Filosofia de Braga, onde se licenciou em Filosofia, em 1966. Fez a etapa do Magistério no Colégio da Imaculada Conceição, Cernache, Coimbra, onde foi Prefeito e Professos durante três anos. Em 1969 ingressou na Faculdade de Teologia da Universidade Católica, em Lisboa, onde fez o primeiro ano de Teologia. Foi então para Roma em 1970 e licenciou-se em Teologia Espiritual na Universidade Gregoriana, em 1974. Foi ordenado sacerdote no dia 9 de julho de 1972, na Apúlia, Esposende, Braga

De facto, nunca foi seu desejo ir para as Missões. Quando aí aterrou em 1974, esperava apenas passar dois anos no Seminário de Nossa Senhora de Fátima, em Timor e não assistir a conflitos violentos, como aconteceu ainda não estava em solo timorense há ano. A 11 de agosto, começaram as primeiras investidas indonésias e o P. José Alves Martins, afastado do seu companheiro João Felgueiras que tinha saído numa peregrinação a Nossa Senhora de Aitara, sentiu-se “só e perdido numa ilha do Pacífico”.

Nesse momento de enorme tensão, ainda deu o seu nome para uma lista de pessoas que pretendiam sair do país, mas depois, rezou, e sentindo-se angustiado com essa decisão, mudou de ideias. “Quando decidi ficar senti uma paz tranquila, libertadora e comecei a sentir-me feliz: encontrei a minha verdadeira vocação, a vontade de Deus a meu respeito.”

Três meses depois, a 6 de dezembro de 1975, viveu dos momentos mais tensos e difíceis: a baía de Díli encheu-se de barcos indonésios, do céu surgiram paraquedistas e os obuses começaram a cair perto do seminário. Começado o massacre, fugiram para as montanhas, refugiando-se onde e como podiam, e procurando atender os feridos e os aflitos. Ele próprio foi ferido pelos estilhaços de um morteiro. No seu livro de memórias, ressalva um momento vivido nessa altura: “Passei a noite de Natal sozinho, sem comer nada, sentado num tronco, contemplando o céu estrelado. Foi o Natal mais belo da minha vida. Jesus fizeste-me compreender o teu verdadeiro nascimento.”

A partir desse momento foram 24 anos de resistência, difícil de explicar, como afirmou no seu livro, pois por cada timorense havia 4 indonésios. “Foi a fé do povo, a oração do povo, o martírio do povo que levaram Deus a intervir, dando força, coragem, heroicidade e esperança a um povo martirizado e espezinhado.” Apesar de estar sempre do lado do povo, acolhendo os que fugiam da guerra, orientando e animando espiritualmente os que com ele se iam cruzando, a sua vida pastoral era seguida de perto pelas autoridades. “Nas homilias não podia tocar em assuntos como direitos humanos, dignidade humana, justiça. Era tudo gravado”. Contudo, considerava nas suas memórias, “o papel da Igreja foi fundamental no processo da independência de Timor. Se não fosse o papel da Igreja e um certo jogo, certamente que nunca seria independente”.

Em 1986 teve autorização para sair do país e foi para Roma fazer os seus exercícios espirituais de mês e a terceira provação, etapa decisiva na vida de um jesuíta que já tinha sido adiada há anos, por autorização do Padre Geral, devido à situação complicada em que se encontrava. Mais tarde, sofreu um enfarte e a sua saúde foi-se debilitando, tendo necessidade de vir a Portugal com regularidade tratar os problemas cardíacos. Mas apesar de ter um “coração frágil, tinha um coração onde cabia o mundo inteiro”, como comentava o P. Provincial dos Jesuítas, na homilia da missa de corpo presente que decorreu esta manhã, na Igreja do Colégio São João de Brito em Lisboa. “Com ele aprendemos que a vida é para ser vivida como uma missão”, e apesar de não ter sonhado ser missionário, “fez-se ao sonho, acolheu e foi percebendo o seu lugar junto do povo sofrido”.

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P. João Felgueiras, já com 100 anos, a acompanhar, em direto, através da internet, a missa exequial do seu companheiro de vida e missão

Os jesuítas portugueses que com ele estudaram e viveram de perto, subscrevem a entrega à missão e a generosidade: “Era um missionário de alma e coração, inteiramente dedicado à causa da boa nova de Cristo”, afirmou ontem o P. Manuel Morujão que com ele chegou a estar em Timor. Também o P. João Caniço, seu colega de curso e amigo de longa vida, recorda que “para muitos (tantos!) foi um pai, em momentos bem difíceis da vida”.

Com ele aprendemos que a vida é para ser vivida como uma missão”, e apesar de não ter sonhado ser missionário, “fez-se ao sonho, acolheu e foi percebendo o seu lugar junto do povo sofrido”. – P. Provincial

Também os que com ele trabalharam testemunham a mesma entrega. Francisca Assis Teixeira que, juntamente com o marido, Rui Marques, trabalhou com o jesuíta, contou ao Ponto SJ: “Com o Padre Martins, com quem trabalhámos intensamente durante os anos seguintes, comprámos um terreno, construímos o Centro Juvenil Padre António Vieira, criámos um programa de formação, cívica, cultural e espiritual que marcou aquele tempo e que permanece vivo, 20 anos passados.”

O P. José Alves Martins estava em Lisboa desde agosto do ano passado. Tinha vindo para tratar da sua saúde e há uma semana estava aparentemente bem. Contudo, na sequência de uma queda durante um período de isolamento devido à Covid, foi internado no Hospital de Vila Franca de Xira na quinta-feira, tendo o seu estado de saúde agravado rapidamente. Faleceu ao início da tarde de segunda-feira. O funeral será realizado na sua terra natal, em Viana do Castelo onde tinha pedido para ser sepultado.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.