Tu és Pedro – A “hora” de Francisco e o “parto” da Igreja

Quando a Igreja escolher e nos disser quem é o novo Pedro, saiba cada um de nós que Pedro não quer ir sozinho na barca da Igreja e conta com cada um para assegurar a Deus que a Igreja, para ser de Cristo, será sempre sinodal.

Quando a Igreja escolher e nos disser quem é o novo Pedro, saiba cada um de nós que Pedro não quer ir sozinho na barca da Igreja e conta com cada um para assegurar a Deus que a Igreja, para ser de Cristo, será sempre sinodal.

Na segunda madrugada desta Páscoa, foi Deus servido pela morte do Papa Francisco, servo bom e fiel, cheio de humor e de amor. Para uns, quase anunciada, para outros, apesar de toda a sua fragilidade, completamente inesperada, a morte de Francisco parou o mundo e fez-nos redescobrir a pequenez da nossa condição humana e, sobretudo, a grandeza da sua vida e missão, própria de quem se mostrava livre diante dos senhores do mundo e servo do Evangelho que jurou viver.

Ao contrário do mundo, Francisco estava disponível para viver a sua morte e encontrar-se definitivamente com Deus. A cadeira de Pedro ficou vazia, mas a porta do jubileu eterno abriu-se para sempre.

O Domingo da Ressurreição presenteou-nos  com a sua última “aparição” e o seu abraço. Quis Deus, dar-nos a graça de experimentarmos os efeitos da Ressurreição do seu Filho, com a presença de Francisco no meio de nós, nos sinais visíveis da sua fragilidade e incontida alegria.

Ao contrário do mundo, Francisco estava disponível para viver a sua morte e encontrar-se definitivamente com Deus. A cadeira de Pedro ficou vazia, mas a porta do jubileu eterno abriu-se para sempre.

Onde está agora Francisco? O seu corpo defunto, amortalhado com paramentos da cor do sangue dos apóstolos e dos mártires, foi venerado quase ininterruptamente em S. Pedro e sepultado, como tinha pedido, em Santa Maria Maior. Que alegria enorme será para Francisco saber que os que o procuram no sepulcro, tal como os discípulos na manhã de Páscoa, são interpelados a escutar a mensagem mais ousada da fé: Jesus não está aqui. Ressuscitou. Francisco também não está ali. Agora e para sempre, vive em Deus, a sua casa é o Pai. O céu é a sua última e definitiva vocação.

A sua vida, de jovem crente, religioso jesuíta, bispo e cardeal argentino, Romano Pontífice, sintetiza-se totalmente no instante da sua morte: ser todo de Deus e nada de si mesmo. Como bom “filho” de S. Inácio, passou a vida a aprender, na escola dos Exercícios Espirituais, a “morrer” ao seu “próprio amor e interesse” para ser humildemente “alcançado” pelo Amor e poder rezar, beatificamente, face a face, o seu ”Tomai Senhor e Recebei”.

Estou certo, que na morte, Francisco experimentou a alegria incomensurável do Evangelho que a todos nos propôs como fundamento do seu Pontificado e recebeu de Deus o abraço que o pacificou de todas as batalhas que travou para libertar a Igreja das formas impuras do poder e de glória, rebatizando-a na autenticidade de Jesus que convictamente “se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza” (2 Cor. 8,9).

A força do pontificado de Francisco, dos seus encontros, gestos, palavras, escritos e viagens, provinha de uma “sede” de Deus que não podia esconder, a sua “vida oculta”.  É impossível entender Francisco e o seu modo de governar a Igreja se separarmos a sua vida pública da profundidade da sua vida interior e espiritual. Sem “vida oculta”, a vida de Francisco correria o risco de ser espiritualmente mundana. Sem oração, silêncio e discernimento, Francisco nunca poderia ter sido um homem do Espírito.

Sem “vida oculta”, a vida de Francisco correria o risco de ser espiritualmente mundana. Sem oração, silêncio e discernimento, Francisco nunca poderia ter sido um homem do Espírito.

A Igreja deve ou não continuar o seu legado? Corremos o risco de usar as suas palavras e de imitar os seus gestos “só por fora” reduzindo o seu pontificado a um modo de gestão ou liderança, desconsiderando o que garantia a essência do seu pontificado: obedecer em tudo a Deus, reconstruir pacientemente a sua Igreja e trazer para o centro das atenções os mais esquecidos.

Que, à semelhança de Francisco, Deus não tarde a Sua eternidade em nenhum de nós e que a morte, por mais brutal que seja, não atraiçoe a confiança e o total abandono e deixe de ser tratada franciscanamente como irmã.

O “parto” que nos espera

Entretanto chegou a hora. O conclave está a acontecer e a chaminé da Capela Sistina responde, quase à hora marcada, às nossas ansiedades e expectativas. Quem será, como será o novo Papa? Será ainda hoje? Amanhã? Fumo preto ou fumo branco?

Não duvido que o Espírito Santo esteja comprometido até à medula com o momento que a Igreja está a viver e, sendo o mais recatado, é certamente o mais influenciador que ilumina a consciência de cada cardeal. Vejo o Espírito Santo, protagonista que baralha as nossas contas e estraga as certezas dos jornalistas, a trabalhar arduamente em cada um dos nossos irmãos cardeais. Muito provavelmente já todos conhecemos o seu estilo de atuar desde o Pentecostes, desmonta-lhe as certezas iniciais, tira-lhes os medos e enche cada um de novas possibilidades. Ao ver a diversidade dos cardeais presentes na procissão de entrada da Missa “Pro elegendo Romano Pontífice” e a chegada à Capela Sistina para dar início ao Conclave, confirma-se a universidade da Igreja. É bom ver e saber que ali vai, está, o meu próximo Papa.

Vejo o Espírito Santo, protagonista que baralha as nossas contas e estraga as certezas dos jornalistas, a trabalhar arduamente em cada um dos nossos irmãos cardeais. Muito provavelmente já todos conhecemos o seu estilo de atuar desde o Pentecostes, desmonta-lhe as certezas iniciais, tira-lhes os medos e enche cada um de novas possibilidades.

Entretanto, a Igreja espera, reza e confia e sabe que está em muito boas mãos.

Independentemente das saudáveis sensibilidades e diferenças, até mesmo opostas visões sobre a Igreja e sobre o mundo, sobre o pontificado do Papa Francisco e sobre o futuro que nos espera viver, sabemos que Deus que não prescinde da nossa condição humana, atravessa a nossa vontade, como fez com o apostolo Pedro e fará suscitar no coração dos nossos irmãos cardeais um pastor segundo a bondade do seu coração, “a fim de que seja eleito o Papa de que a Igreja e a humanidade precisam neste momento difícil e complexo da história” (Homilia, cardeal Battista Re, Missa “Pro Eligendo Romano Pontifice”).

Seja quem for, o escolhido facilmente ou fruto das artes negociais dos compromissos necessários, mais do que ser originário de uma determinada igreja local, de uma geografia, de ser partidário de alguma corrente teológica ou doutrinal, muito mais importante que o seu currículo ou historial, será sempre o que no momento da sua eleição começará a ser, neste seu novo nascimento, para bem de todos nós: Bispo de Roma, sucessor de Pedro, o Papa que Deus nos deu. E que alegria será conhecer o seu rosto, o seu novo nome e intuir o que através dele Deus quer suscitar na sua Igreja para servir amorosamente o mundo.

O Papa que Deus nos der será completamente original e não precisa de ser como outros papas foram, viveram e serviram. Nenhum Papa é contra os papas que o precederam e nenhum papa se pode eleger para ser só a continuidade de outros. Perdoem-me a comparação. O Papa (quando vive na versão mais pura da sua missão) é como o amor de Deus. Nunca se repete. O amor é mesmo, como dizia hoje o cardeal Battista Re, citando o Papa Paulo VI “ a única força capaz de transformar o mundo”.

A Igreja prepara-se para, ainda hoje ou nos próximos dias, pedir o “impossível” a um dos cardeais reunidos em conclave. Que aconteça connosco o que acontece com tantos pais antes do nascimento dos seus filhos: “Ainda não o vi e já o amo”.

A esperança que atravessa a vida da Igreja nestes dias de conclave é, certamente, um sinal inquebrável para todos os que não desistem de construir uma Igreja de portas abertas, testemunha da verdade do crucificado, próxima e curadora de todos os feridos do mundo, incentivadora de uma cultura que dá sentido e transcendência aos nossos limites e às causas que em nome do Evangelho e da boa vontade suscitam uma nova civilização que não deixa ninguém de fora da comunhão de Deus com cada um.

Cada um de nós, cada católico, tem legitimidade para alimentar o sonho de uma Igreja profundamente espiritual, erudita e humilde, despojada e integradora, fiel e profética, evangelizadora e livre, que comunga toda a humanidade, que se quer una na enorme diversidade dos batizados; santa na resistência contra o mal e o pecado; católica, na comunhão que traz para o seu centro de atenção todas as periferias; apostólica na tenacidade de anunciar a todos os povos o desassombro do Evangelho da misericórdia.

Depois do luto com a morte de Francisco, chegou o momento de a Igreja se recolher, de se calar, esvaziando-se dos interesses e das agendas mediáticas para se encontrar como comunidade que reza antes de discernir e decidir. Vive-se na Igreja e em particular no conclave um silêncio habitado por Deus, prometedor, profundo e carregado de esperança, pronto para explodir de alegria quando chegar o fumo branco que anuncia o novo timoneiro que guiará a barca que Pedro nos deixou.  Ate lá “Extra omnes”.

O conclave não é um jogo de poder ou de vaidades. É um momento de encontro espiritual, sem pressas, de escuta mútua e sincera. É, sobretudo, uma experiência que atravessa o deserto de todas as incertezas e capacitados pela nossa oração, e fechados e protegidos numa capela, obra prima do diálogo entre a fé e as artes, tendo “antenas“ só para Deus e uns para os outros, os senhores cardeais transfiguram as suas opiniões pessoais, na busca das condições para um discernimento livre, longe dos vícios e formas pecaminosas de poder, num nome concreto escrito solenemente num singelo boletim de voto, capaz de se assumir como “o último de todos” (Mc. 10, 44-45) e de viver e pontificar como servo.

Vivemos este trabalho de “parto” da igreja com o coração em suspenso. Quem será o 267º sucessor de Pedro?

Entre a morte de Francisco e a escolha do novo Papa, vivemos entre um já e um ainda não, que nos prefigura a vida, como peregrinos de um absoluto maior, entre a beleza da terra e transcendência do céu. E quando a Igreja escolher e nos disser quem é o novo Pedro, saiba cada um de nós que Pedro não quer ir sozinho na barca da Igreja e que conta com cada um de nós para assegurar a Deus que a Igreja, para ser Igreja de Cristo, será sempre sinodal. E enquanto o novo Pedro se veste de Papa na Sala das Lágrimas aguardemos na praça o anúncio mais esperado “Habemus Papam”. Aleluia !

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.