Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.
(Manoel de Barros)
É preciso começar como quem desaprende. Seguir a palavra do avesso, como Manoel de Barros. Esta despalavra perturba o nosso lugar na linguagem e no mundo. Fala de um outro modo de estar sobre a terra, sobre a água. É semelhante ao canto do pássaro, ou ao coaxar da rã, que nesta estação do ano obrigam a nossa atenção a um desvio.
Somos homens mal situados, quando permitimos que a língua se aproxime deste som que ainda não deu liga. Andamos um pouco acima do chão, um pouco acima dos pássaros, nos arredores do verbo, como a voz do poema de Daniel Faria.
Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo
Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito
Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo
Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema
Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe
Impossível sitiar o lugar a partir do qual esta voz nos fala. Onde estamos? Acima dos pássaros, ou dentro do sangue? Nos arredores do verbo, ou no meio dos incêndios? Acima da força, ou de coração esmagado? Fomos lançados no meio de um movimento incessante que não nos dá morada fixa, mas que, curiosamente, parece ser posto privilegiado de relação com as coisas. Daqui, vêem-se melhor as árvores com fruto, vê-se com outra pungência a palma da mão, ou a inclinação dos pássaros para o voo.
Talvez este lugar mal situado seja o único que permite um olhar verdadeiramente apocalíptico sobre a realidade: um olhar capaz de ver novas todas as coisas. Devemos desejá-lo. Mas como chegar a essa encosta onde a palavra é como pão, a esse degrau invisível sobre a terra? Como começar?
É preciso começar como quem desaprende. Esperar a palavra nascida para o canto, como os monges no começo do seu dia. Na oração das Laudes, pedem: Abre, Senhor, os meus lábios, e a minha boca proclamará o vosso louvor. Esperar o louvor – a palavra nascida para o canto – é abrir-se ao imprevisto do dia que começa; situar-se, desde a manhã, num lugar de trânsito e surpresa. Trago três poéticas do louvor que assumem esta condição.
FRANCISCO DE ASSIS
Abrir os lábios para o louvor passa, inevitavelmente, por entoar o Cântico das Criaturas de Francisco de Assis. Foi composto em condições terríveis. Diz-se que Francisco cantou este poema numa cela feita de esteiras, rodeado de ratos e cheio de febre.
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
a ti as honras, a glória e o louvor
e toda a bênção.
A ti somente, Altíssimo, competem
e ninguém é digno de te dizer o Nome.
Louvado sejas, meu Senhor, com tudo o que criaste,
especialmente o senhor irmão Sol
que dá o dia e por quem nos alumias.
É belo e radiante, com grande esplendor,
de ti, Altíssimo, nos dá o sinal.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas Estrelas;
no céu, as formaste, claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento
e pelo Ar e pelo cinzento, calmo ou qualquer tempo,
pelo qual às tuas criaturas dás sustentamento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água,
a qual é muito útil, preciosa, humilde e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo,
por quem dás luz à noite
e é belo e alegre, robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa mãe Terra,
que nos sustenta e nos governa
e dá diversos frutos com coloridas flores e erva.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti
e sofrem doenças e trabalhos;
benditos os que sofrerem em paz
porque Tu, Altíssimo, os coroarás.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa morte corporal
a que vivente algum pode escapar;
ai dos que morrerem em pecado mortal,
benditos os que forem achados na tua santíssima vontade
porque a segunda morte lhes não fará mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor, e dai-lhe graças,
e servi-o na máxima humildade.
Este Cântico é aparentemente simples. Não oferece, à primeira vista, resistências ao nosso olhar. No entanto, uma atenção demorada sobre o que canta mostra que nada aqui é óbvio. Uma palavra articula todo o dizer – «irmão/irmã» – e esboça os primeiros indícios de estranheza e desconforto. A palavra «irmão/irmã» abala uma determinada atitude perante as coisas, renunciando-se «a fazer da realidade um mero objecto de uso e domínio» (Papa Francisco, Laudato Si’, §11). Esta atitude depende «da língua que falamos»: «(…) se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos» (Laudato Si’, §11). Há uma relação directa entre o modo como se fala e o modo como se vive. O louvor dos irmãos e das irmãs fala uma outra língua, um outro modo de dizer as coisas, e, por isso, um outro modo de vivê-las. Reabilita o ritmo e a pressa dos nossos gestos.
O louvor coloca-nos num momento de antemanhã; convida a um movimento anterior à resolução operativa de um erro. Faz-nos perceber que o mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria (Laudato Si’, §12). Chamar mistério ao mundo – e não problema – é denotar a impossibilidade de o reter num só gesto, e de o aprisionar num conceito. Ao contrário do problema – que busca resolução – o mistério implica, por definição, a permanência no irredutível e no inacabado.
O louvor de Francisco de Assis promove, na sua assunção da realidade enquanto mistério, um uso mais humilde do mundo, habituado a abrir-se ao altíssimo (o mesmo é dizer: ao que não cabe na distância das mãos e do entendimento), consciente de que nenhum homem é digno de o nomear.
A palavra do louvor é frágil; não sabe como dizer o que procura (como o poema para Paul Celan, o louvor vai a caminho). É uma palavra que se quebra na garganta. Não é um fruto perfeito. Instala a fragilidade como destino. O louvor de Francisco de Assis é igual ao desses «Justos» do poema de Tolentino Mendonça que começam o dia a louvar o imperfeito / o tempo que se inclina para o lado partido / as escassas laranjas que se tornam / amarelas no meio da palha / as talhas sem vinho. / Olham por dentro a brancura da manhã / e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício / louvam o vulnerável e o inacabado.
Associamos, muitas vezes, o louvor a um canto celebrativo que exalta as maravilhas do mundo, num enlevo mais ou menos ingénuo, onde não cabem nem o tosco, nem o imperfeito. Por isso, não há nada mais desconcertante do que o louvor de Francisco de Assis, no qual encontram palavra os irmãos que perdoam e os irmãos que morrem, a glória e o golpe, o irmão corpo e a irmã doença. Não se trata aqui de tecer um pequeno elogio da realidade, nem uma simples contemplação de plantas, de animais e de homens. O louvor de Francisco de Assis não passa ao lado da ferida – atingido de esplendor, não ignora o que arde (nota3).
Todo o acto de louvor está aqui: Louvado sejas pela irmã morte corporal, da qual nenhum homem pode escapar. Haverá expressão mais desconcertante do que esta? Francisco de Assis não está certamente a elogiar a irmã morte, nem a entoar um hino de júbilo à sua existência. Trata-se, isso sim, de a observar com os sentidos no mais alto grau de atenção: atenção inconformada com a ameaça do vazio. Mesmo a mais difícil das realidades merece o nome de irmã – próxima e umbilical. Chamar à morte irmã é um gesto simultâneo de aceitação absoluta e de inconformação absoluta perante a desolação que invadiu a palavra, e, com ela, o nosso modo de a habitar. Gesto tenso como um arco – chamar à morte e a todas coisas irmã e irmão – do qual só depois de muito tempo conseguiremos medir as consequências. Falamos do caráter redentor da beleza, mas poucas vezes pesamos o que implica. A beleza do mundo é exigente; e, no entanto, assalta-nos gratuita numa imagem, num raio de luar sobre legumes, numa sombra na parede. É assim que ela chega no louvor cortado a lâmina de Adélia Prado, inspirado no Cântico de Francisco de Assis.
ADÉLIA PRADO
Louvado sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas, porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os
despojos,
— velho ao fim da guerra com uma cabra —
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvado sejas porque eu quero morrer
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas! (nota4)
Louvado sejas porque sou desgraçado. Louvado sejas porque a vida é horrível. Louvado sejas porque eu quero morrer. Louvor do avesso, o de Adélia Prado, mas total, porque acolhendo a desgraça e o horrível se abre ainda à lembrança de uma noite na roça, limpa os olhos e o muco do nariz, surpreende gestos e pequenas coisas, vindas não-sei-donde, capazes de salvação.
O louvor é uma forma de resistência. Tal como não se resigna à morte vazia, e insiste em chamar-lhe irmã, observa no ferro da forca o reflexo do luar nos legumes. Este louvor de Adélia Prado não sucumbe perante a vida horrível ou o desejo de morrer; oferece-se todo por um canteiro de grama, um grilo.
O louvor insiste em esperar o prometido. Tem em si uma radical intransigência. Não é só encanto com o facto de haver ser e não o nada. Tenta, a todo custo, louvar o mundo estropiado, como pede um poema de Adam Zagajewski. Quer ser consequente. Por isso, o louvor não é apenas constativo, mas activo; confronto físico com a realidade: tantas vezes amor, tantas vezes luta.
Como o agricultor com a terra, o louvor lavra a realidade, desejando que ela frutifique. Não se resigna à infertilidade de alguns solos – à falta de sentido de algumas coisas. O louvor trabalha pela fecundidade do real, que, tal como a da terra, é necessária à subsistência do homem. Mas este trabalho, à semelhança da lavoura agrícola, é tecido de compassos de espera em que nada acontece, e em que, em vez da colheita abundante, o tempo se passa recolhendo os destroços, velho ao fim da guerra com uma cabra. Como o agricultor, o trabalho daquele que louva não é feito apenas de força, mas sobretudo de submissão (porque a mão controla a poda, mas não o ritmo do ramo).
E formam-no também esses espaços de ninguém que preenchem uma infância inteira, instantes de absoluta graça, em que o menino abre a porta de noite, e acredita sem nenhum sofrimento. A mão que luta é a mesma que ama, que descansa, que abre a porta, os lábios, o sorriso, os olhos, a atenção, ao que à revelia de tudo se promete.
O louvor é um acto da carne. Conhece os avanços físicos do enamoramento, da angústia, da contenda, ou da espera. E encontramo-lo também de carne nesse gesto-menino que, diante do nada, decide brincar. Assim era o modo com que Manoel de Barros louvava: em brincadeira.
MANOEL DE BARROS
Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras tipo assim:
Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
e nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão
de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas
palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas
pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das águas
e dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.
São palavras escandalosas e heréticas, as da criança; desvirtuam a ordem natural das coisas, emendando nova criação. Parecem contradizer o respeito e o cuidado que deveriam nortear a tarefa ecológica, em princípio fiel às leis da natureza. Mas só dizemos isto porque o poema de Manoel de Barros lança um olhar novo sobre leis antigas, e descobre outras novas: a lei do ajoelhamento das formigas; a lei da solidão das pedras; a lei do olhar dos sapos; a lei da inocência das aves; a lei da voz das águas e dos caracóis; a lei dos absurdos.
O seu método de investigação é o acto de desver.
Desver: ver de outro modo, ver de outro ângulo; ou repetir a visão já feita, de tal modo que ela se torne diferente (repetir, repetir – até ficar diferente); ou desaprender o visto para aprendê-lo de novo; ou negar o acto mesmo de ver, pautado pela distância. A visão é, entre os cinco sentidos, aquele que implica menos proximidade com o seu objecto. O tacto quer tocar, o paladar quer comer, a audição quer que o ar vibre e trema no ouvido. A visão, pelo contrário, pede distância para ver melhor. Desver é reduzir essa distância. Desver a formiga, a manhã, o sapo, a árvore, o caracol significa aproximar-se, tomá-los por companheiros de brincadeira – mesmo se esta brincadeira se der apenas no reino da despalavra. Ver um sapo com olhar de árvore é, de certa maneira, tocar o sapo e não apenas descrevê-lo, ilustrá-lo, catalogá-lo. Ver um sapo com olhar de árvore é desvê-lo. Como na brincadeira, a palavra sai transformada pelo embate com o mundo, mas também o mundo sai transformado pelo embate com a palavra. O louvor de Manoel de Barros lança a palavra para dentro do mundo e o mundo para dentro da palavra; ver é lançar-se.
Para ver novas todas as coisas – para desvê-las – é necessário comer, tocar, brincar, torcer, apalpar. Sim, o louvor apalpa as intimidades do mundo. Ao mesmo tempo não domina, não absorve, não tritura, não destrói. A sua epistemologia conhece as coisas da forma hebraica (i.e., pela carne), mas as perguntas que coloca deixam o corpo amado do mundo respirar. Quer saber qual o rio que tem mais ternura, qual o lado da noite que umedece primeiro, como pegar na voz de um peixe. Estas perguntas são cochichos de amantes; secretas, sussurradas, elas desejam verdadeiramente o mundo sem porquê; conhecem-no de carne sem conhecê-lo de razão. A erótica do louvor faz amor como quem desaprende.
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas
têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
NOTA: Texto inicialmente publicado na revista Brotéria de julho.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.