Trégua olímpica ou sagrada

O Papa Francisco, ao recordar esta Trégua, fê-lo na esperança de que o desporto possa construir pontes, derrubar barreiras e promover relações de paz.

O Papa Francisco, ao recordar esta Trégua, fê-lo na esperança de que o desporto possa construir pontes, derrubar barreiras e promover relações de paz.

Em setembro de 2023, o cardeal Tolentino Mendonça inaugurou a sede da «Athletica Vaticana», uma organização desportiva do Vaticano, tendo referido o valor do desporto para a promoção da solidariedade e fraternidade.

O Vaticano possui campos de ténis e “uma inesperada avenida do Desporto” (Cf. Cidade do Vaticano. Cidade do Vaticano: Edizione Musei Vaticani, 2008, p. 196).

Não é de agora a exaltação do desporto enquanto veículo de paz. Ao longo do século XX foram vários Papas que aludiram ao desporto enquanto hipótese de construção de uma sociedade melhor. Provavelmente foi Pio X, em 1904, quem abriu as portas do Vaticano ao desporto. Pio XI (1922-1939), Pio XII (1939-1958), Paulo VI (1963-1978) e João Paulo II (1978-2005) mantiveram bem viva a chama desportiva na Igreja Católica (Cf. D. Armando Esteves Domingues. “Desporto e fraternidade universal”. In Desporto e diversidade religiosa. Caminhos para a Paz. Lisboa: Visão e Contextos, 2021, pp. 113-126).

No dia 13 de janeiro de 2024, numa audiência aos praticantes de atletismo da «Athletica Vaticana», o Papa Francisco referiu-se à Trégua Olímpica ou Sagrada, que ocorria na denominada Grécia Antiga por altura dos Jogos Olímpicos, manifestando o desejo que tal venha a ocorrer neste ano em que se celebra a XXXIII Olimpíada, que culmina com a realização dos Jogos de Paris.

A tradição desta Trégua remonta há cerca de 3000 anos, com a designada “Ekecheiria”, uma conduta virtuosa que determinava a cessação dos conflitos aquando da realização dos Jogos Olímpicos. Reza a lenda que foi um acordo assinado pelos reis de Elis, de Pisa e de Esparta que promovia a paz entre os povos no período olímpico.

Talvez na antiguidade a referida Trégua Olímpica não fosse tão extensa como um certo romantismo olímpico fez e faz ver. Provavelmente as guerras não cessavam, havendo, na terminologia de hoje, o estabelecimento de corredores humanitários por onde os intervenientes, atletas e artistas, seus familiares ou simples espectadores, rumavam ao Jogos, neles participavam e regressavam às suas cidades. Esta Trégua, que se iniciava uma semana antes e terminava uma semana após a realização dos Jogos, chegou a ser ampliada até um total de três meses para possibilitar aos participantes de cidades mais longínquas partirem e chegarem a suas casas em plena segurança.

Ao contrário de hoje, não há notícias relevantes de quebra desta Trégua, que era anunciada por três arautos, simbolicamente ornamentados com coroas de oliveira – símbolo da paz –, de cidade em cidade, enquanto anunciavam a realização dos Jogos.

Se inicialmente a Trégua ocorria em relação aos Jogos, mais tarde alargou-se a outros festivais sagrados, havendo ainda um convite para que os responsáveis pelas cidades em conflito tentassem estabelecer tratados de paz, o que aconteceu algumas vezes (Cf. Rita Amaral Nunes. “As tréguas sagradas. Dos jogos olímpicos da antiguidade à atualidade”. Op. Cit., pp.19-32).

O Papa Francisco, ao recordar esta Trégua, fê-lo na esperança de que o desporto possa construir pontes, derrubar barreiras e promover relações de paz. Diz-nos ainda que o desporto tem o poder de unir as pessoas para além das suas capacidades físicas ou outras. A imagem de 2016, Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em que estão abraçadas duas ginastas, sendo uma da Coreia do Norte e a outra da Coreia do Sul, dá sentido às palavras de Francisco.

Num outro registo, Mahatma Gandhi afirmava que não existe um caminho para a paz, sendo a paz o caminho. O desporto participa neste caminho, mas ainda estamos longe que seja o caminho hegemónico. Há ainda um longo percurso para se alcançar o verdadeiro caminho. As guerras sucedem-se ininterruptamente. Se há conflitos muito mediatizados, como os que ocorrem na Ucrânia e na Terra Santa, há outros que dizimam milhares de vidas quase sem que ninguém do Ocidente dê por isso.

Infelizmente temos sérias e fundadas dúvidas que possamos assistir ao ressurgir da “Ekecheiria” em 2024, receando pelo seu oposto, que um qualquer grupo aproveite a mediatização dos Jogos Olímpicos de Paris para ações de extrema violência, como aquela ocorrida em 1972 nos Jogos Olímpicos de Munique. O extremismo, seja ele qual for, não concebe a existência de Tréguas, sejam olímpicas ou outras.

O apelo do Santo Padre à Trégua Olímpica é um grito contra a barbárie e que se dê uma oportunidade à paz, tendo como cenário os Jogos Olímpicos, que são um hino à fraternidade e uma metáfora poderosa porque, refere, somos todos membros da mesma família humana.

 

Nota: as referências ao Santo Padre e ao cardeal Tolentino Mendonça foram retiradas de notícias veiculadas pela Agência Ecclesia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.