“The way to love anything is..
… is to realize that it may be lost.” Chesterton diria hoje o mesmo, vendo esse lado revelador da pandemia: quase tudo na vida pode ser perdido, e afinal é uma pena perdê-lo. O confinamento peneirou a farinha fina que vale, e deixou de lado os grumos supérfluos.
Entretanto, a nuvem irrequieta de certezas científicas contraditórias contamina-nos de incerteza. Há um site com “ferramentas jornalísticas para que não te deitem areia para os olhos” que fala de “553 mentiras, alertas falsos e desinformações sobre o COVID-19”. A somar vêm os receios da pobreza e o desemprego, e a ansiedade óbvia. Neste estado de espírito, as emoções são a lente para ler e compreender a realidade.
Neste exacto ambiente os cristãos viveram uma perda grande: a perda dos sacramentos, os gestos onde Deus actua, e que Ele deixou para a todos abrir ligação directa. Uma perda dura, ainda que perder os sacramentos não é perder Deus pois Deus está sempre ao alcance de quem se lhe dirige.
Foram os bispos, e não a autoridade civil, a decidir a suspensão das missas, e foram os bispos a decidir agora a sua retoma. Em geral, os cristãos compreenderam e aceitaram a decisão com suavidade. O 13 de maio foi o sinal maior dessa sintonia.
Também houve, mais circunscrito, debate e discórdia, com dúvidas diversas: sobre a (des)igualdade de critérios quanto à Igreja, sobre a autoridade da conferência episcopal e dos bispos, sobre a suspensão dos sacramentos, e outras. Um debate feito com calor e a adensar as emoções.
Entretanto, num nível mais profundo ganhou corpo a sensação de que o curso da história está fora do controlo dos homens, mesmo dos homens poderosos. Se não houvesse um Deus providente, a situação seria alarmante: um leme desgovernado, e um barco, gigante, à deriva.
A cultura que nos habituou a esperar tudo dos homens e quase nada de Deus provavelmente também nos atingiu, e não é à primeira que pensamos: não há problema, pois é Deus quem está ao leme. Ao leme do mundo, e da Igreja.
Os fiéis queriam sacramentos, mas não era possível. Os bispos o que mais gostariam era abrir o acesso aos sacramentos, mas não era possível. Muitas coisas não foram, e vão demorar, a ser possíveis. Mas a hora é de confiança: é Deus quem está ao leme, e sabe o que faz.
Neste estado de espírito, as emoções são a lente para ler e compreender a realidade.
Aliás, já fez muito neste confinamento. Fez acontecer a consagração ao Imaculado Coração de Maria e ao Sagrado Coração de Jesus no dia 25 de março. Ligou-nos todos à adoração a Deus que o Papa solitário fez a Deus na tarde chuvosa e chocante do dia 27 de março. Os nossos bispos rezaram juntos online a oração proposta por Francisco para intensificar a recitação do Rosário, no mês de maio. Todo o mundo rezou o terço, com o Papa, no sábado 30 de maio, e com santuários marianos do mundo inteiro. Falou-se da comunhão espiritual, e redescobriu-se Deus na Eucaristia. Falou-se de pedir perdão a Deus pelos nossos pecados, e do acto de contrição perfeita, com o desejo de nos confessarmos logo que possível. Famílias e famílias voltaram a rezar juntos. Terços rezados por correntes de amigos. Padres a rezar o terço juntos – e a oração dos sacerdotes, mediadores entre Deus e os homens, é especialmente poderosa. Tudo isto tem um grande potencial de transformar para o bem os corações e o mundo. É Deus no centro. Onde deve estar
É claro que há riscos vários trazidos por esta “abstinência sacramental” mas o realismo vê também um “romance escondido” que Deus vai escrevendo em cada um. Por isso, o regresso aos sacramentos é uma notícia ainda mais festiva. Mesmo com limitações, as que agradam e as que desagradam.
Se há lições que se podem tirar para o imediato, três destacam-se.
Primeira, a unidade, umas das quatro notas da Igreja: é um dom da parte de Deus que devemos ajudar a construir. Não há um amor à verdade separado do amor à unidade, a começar pela unidade com aqueles que são nela pastores por desejo de Cristo pois, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade.
Segunda, a veracidade: conhecer no original e na totalidade o que o Papa e o os bispos dizem, evitando confiar apenas em excertos ou leituras feitas por outros.
Terceira, a benevolência: a estima pelo outro é condição para o conhecer, ou, como pedia Joseph Ratzinger na introdução ao seu “Jesus de Nazaré”, “peço apenas aos leitores aquela pressuposição de simpatia, sem a qual não há qualquer compreensão”. O pluralismo da Igreja é uma riqueza quando se apoia na estima recíproca verdadeira, condição para o mútuo entendimento e para a conversa construtiva. Um diálogo que não aproxima as pessoas não é um diálogo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.