Phyliss Zagano é investigadora, na Universidade de Hofstra em Nova Iorque, e tem dedicado parte da sua investigação à história do diaconado feminino na tradição da Igreja. O P. Bernard Pottier, sj é membro docente no Institut d’Études Théologiques, em Bruxelas, membro da Comissão Teológica Internacional e colabora com uma paróquia portuguesa na capital belga. Ambos pertencem à Comissão Pontifícia para o Diaconado Feminino nomeada pelo Papa Francisco.
Estiveram em Portugal para o lançamento do livro: “Mulheres diáconos Passado – Presente – Futuro” de que Phyliss Zagano é uma das autoras. Lançado pela primeira vez em 2011, o livro foi agora traduzido para português.
O PONTO SJ falou com eles, procurando compreender as raízes deste ministério na história da Igreja e quais as formas que poderia assumir no futuro. Ambos acreditam que restaurar o diaconado feminino será uma questão de tempo, mas discordam quanto aos possíveis caminhos para lá chegar. Do que não têm dúvidas é do enriquecimento que isso traria à Igreja e de como seria um importante sinal dado ao mundo. Contudo, fazem questão de distinguir a questão da ordenação diaconal da questão da ordenação sacerdotal das mulheres, defendendo que são realidades distintas.
Para além do que cada um investigou, como é que a vossa experiência pessoal de Igreja, o vosso contacto com diferentes comunidades cristãs e realidades eclesiais concretas em diferentes partes do mundo influenciou o vosso modo de pensar sobre a questão do diaconado feminino?
Bernard Pottier (BP) – A minha experiência no que toca ao diaconado feminino parte do meu trabalho com religiosas portuguesas em Bruxelas. Trabalho que tenho tido ao longo de vinte anos. Essa experiência diz-me que as irmãs podem conduzir a comunidade portuguesa tão bem como eu. Ao contrário, eu não tenho muito tempo, apenas o tempo para celebrar as missas de sábado e domingo. Então, elas podiam liderar a paróquia. É verdade que as mulheres trabalham na Igreja como leigas e religiosas, mas não como pessoas do clero, como pessoas ordenadas. Mas a minha experiência é de que fazia muito pouco e elas faziam muito mais do que eu. E foi essa experiência pessoal que me levou a pensar na possibilidade do diaconado feminino. .
Phyllis Zagano (PZ) – O que eu tenho observado é que existe uma fome profunda, um enorme interesse neste assunto. O Povo de Deus procura, liderança seria uma palavra errada, mas ministérios exercidos por mulheres. O que, na prática, já acontece. No trabalho que é feito com diferentes comunidades, com reflexões baseadas no livro que viemos apresentar a Portugal, percebe-se que as pessoas se questionam sobre o diaconado feminino, querem saber mais sobre este assunto e ficam zangadas com o facto de a Igreja ter abandonado esta tradição. Há um guião em inglês e um em francês que podem orientar essas reflexões.
Durante dois anos e meio a Santa Sé pediu-me para não falar sobre este assunto [enquanto decorria o trabalho da comissão]. Só agora pude voltar a falar… Mas, há menos de um mês, estive em Los Angels e levaram-me ao Arena, como se fosse uma estrela de rock, e onde estavam mais de quatro mil pessoas que gritavam e gesticulavam entusiasticamente “sim, sim”. Numa conferência mais pequena, com 700 pessoas, quando o moderador introduziu o tema “Diaconado feminino, sim ou não?” Toda a assistência gritou: SIM!”. Por isso, no que toca a reação por parte do Povo de Deus a reação é muito, muito positiva.
Nas cinco viagens que fiz a Roma passei, no total, quatro meses e meio na Casa de Santa Marta, uma vez fiquei lá dois meses, e, ao jantar, encontrei-me com vários cardeais e bispos. Nenhum se opôs às minhas ideias, nenhum se incomodou com assunto. Excepto dois bispos africanos, um da África do Sul e outro de um país da África Central, que me disseram “nós não queremos as suas ideias americanas.” Respondi-lhes: Ninguém está a tentar impor nada a ninguém. Se a Santa Sé, o Papa disserem outra vez sim ao diaconado feminino, se for restaurada a tradição, cada conferência episcopal, cada bispo poderá tomar a sua decisão.
E um dos bispos disse-me “está a tentar enfiar-me as suas ideias americanas pela goela abaixo”. Não, não estou – respondi-lhe. De maneira nenhuma.
Outros bispos que estavam bastante preocupados eram os bispos do Sudoeste Asiático: Laos e Cambodja. Estive com cinco bispos de uma zona muito pobre que estavam em Roma para a visita Ad Limina que me disseram: ”Somos tão pobres. Nós nem sequer temos homens formados para serem diáconos, quanto mais mulheres. Não temos pessoas formadas em Laos e no Cambodja.“
Quando uma mulher é ordenada, quando um homem é ordenado seja um padre ou um diácono, fica ligado ao bispo, representa-o e essa ligação permite-lhe levar a bênção ao Povo de Deus.
O resto do mundo, absolutamente. O bispo de São Paulo mostrou-me no seu telemóvel imagens de uma visita a uma favela. Perguntei-lhe quantos padres há em São Paulo? Quatrocentos, respondeu ele, continuando a mostrar-me as imagens da sua ida à favela. E quantas pessoas? Cinco milhões. “Se preciso de mulheres diáconos?… ” Um bispo Francês, com fama de ser bastante conservador, depois de conversarmos perguntou-me: “Pode vir comigo esta tarde quando regressar a casa? Preciso da sua ajuda!”.
Não se trata de liderança, nem de poder, mas de ministérios, de haver quem acompanhe o Povo de Deus. Essa é a questão. E cada bispo, cada cardeal, o arcebispo do Quebéc, o cardeal Gérald Cyprien Lacroix, os cardeais da América do Sul, os bispos da Austrália e Nova Zelândia vão percebendo isso. É sobre o ministério. O ministério da Igreja para a Igreja. Quando uma mulher é ordenada, quando um homem é ordenado seja um padre ou um diácono, fica ligado ao bispo, representa-o e essa ligação permite-lhe levar a bênção ao Povo de Deus. É essa a questão. Ter uma mulher unida ao bispo e a toda a Igreja, esse é o ponto essencial da discussão. Porque era assim que costumava ser, foi assim que aconteceu no passado. Eu estive com o Patriarca Maronita de Damasco que me disse- “Mulheres diáconos? Nada de especial! Na Síria um padre não conseguiria visitar todos os lugares, todas as vilas e para acompanhar as mulheres doentes, um homem não pode entrar em casa de mulheres doentes, não pode ungi-las.”
Ou seja, para algumas comunidades é uma questão óbvia?
PZ – Sim, claro!
Como olham para o papel das mulheres na Igreja hoje em dia?
PZ – Depende, é uma questão cultural. Há culturas que aceitam a mulher e outras não. Nisso o cristianismo não se distingue do resto do mundo. Queres acrescentar alguma coisa? (virando-se para Bernard)
BP – Sim, também me parece uma questão cultural. As mulheres têm um envolvimento cada vez maior nas diferentes áreas da sociedade, e esse movimento também tem que ser seguido na Igreja. Mas, utilizando materiais como o guia de que a Phill falou, quero sublinhar a importância de que as pessoas percebam o que é realmente o diaconado feminino. Porque muitas pessoas, com uma mentalidade mais hierárquica pensam que por um lado ele não é necessário e, por outro, que ele nunca existiu. E isso simplesmente não é verdade. Podemos discutir se as mulheres eram instituídas através de uma bênção ou de uma verdadeira ordenação, mas é impossível negar que tenha havido diaconisas. E este guia ajuda a compreender toda a dimensão histórica.
Quais são as bases históricas que permitem afirmar que o diaconado feminino faz parte da tradição da Igreja?
PZ – O estudo de Gary Macy publicado no livro “Mulheres diáconos Passado – Presente – Futuro” não deixa dúvidas de que as mulheres eram ordenadas. Um professor do século XVII, chamado Jean Morin, examinou todas os ritos litúrgicos e descobriu que as mulheres recebiam a ordenação sacramental de acordo com os critérios do Concílio de Trento. Eram ordenadas durante um acto litúrgico, ao mesmo tempo que homens diáconos, o bispo impunha-lhes as mãos, fazia a evocação do espírito Santo (epiclese), colocava-lhes a estola, entregava-lhes o cálice para que comungassem, e muito importante, designava-as como diáconos. Se não fossem diáconos, ter-lhes-ia chamado outra coisa. E a questão diácono–diaconisa é só uma questão de linguagem. Sírio de Alexandria usava a expressão mulheres diácono. John Colins, especialista australiano na palavra diakonia, fez essa descoberta há pouco tempo e ficou muito entusiasmado. Porque eu digo sempre mulher diácono e quando ele descobriu isso quis-me logo contar. Na escritura, na Carta de São Paulo aos Romanos [cf Rm 16, 1] Febe é designada como diácono. [nota da redação: Não é assim em todas as traduções, mas Phyllis Zagano considera essa a melhor tradução]
BP – Ao estudar a patrística encontra-se muitas vezes a expressão diaconisas, mas a realidade que expressam as duas palavras é a mesma. João Crisóstomo, Gregório de Nisa, os Concílios de Niceia e a Calcedónia usam a expressão diaconisa. Há uma predominância desta expressão. É um facto histórico, o que isso possa significar é outra questão.
Um professor do Século XVII, chamado Jean Morin, que examinou todas os ritos litúrgicos descobriu que as mulheres recebiam a ordenação sacramental de acordo com os critérios do Concílio de Trento.
Para sermos mais precisos, que evidências existem da existência de mulheres diáconos?
BP – Há evidência dessa existência até ao século XII.
PZ – Há evidências litúrgicas, epigráficas, inscrições tumulares, evidências literárias, registos de que não–cristãos se referiam a membros da comunidade cristã como mulheres diáconos. Há evidências por todo o lado.
BP – Há mais de 60 túmulos com a inscrição diaconisa
PZ – Ou diak a abreviatura de diácono, no Ocidente e no Oriente.
BP – Moira Scimmi, uma especialista italiana tem um estudo muito profundo sobre isto.
PZ- Há vários autores, muitos estudos e há mais coisas a serem descobertas que reforçam esta evidências.
Numa altura em que o debate da igualdade de género atravessa toda a sociedade, haveria aqui um passo em frente no que respeita à representação das mulheres dentro da hierarquia da Igreja?
PZ – Está-me a fazer várias perguntas ao mesmo tempo: se é um avanço, o que significa para a Igreja e o que significa para a hierarquia. Pelo diaconado é-se chamado à proclamação da Palavra, à liturgia e à caridade. A maioria das pessoas foca-se na liturgia. Mas se pensamos na liturgia como o mais representativo da ação diaconal, já temos várias mulheres a fazer esse serviço. Já há mulheres envolvidas no trabalho da Palavra, mas não podem pregar, há mulheres envolvidas na caridade, mas não têm autoridade clerical.
E autoridade clerical é importante também por questões jurídicas. Por exemplo, no que respeita à possibilidade de alguém receber de um bispo a delegação para gerir um processo de nulidade matrimonial. Só um clérigo pode assinar esses processos. Ora, o Motu proprio do Papa Francisco sobre os processos de nulidade matrimonial exige apenas um juiz para julgar os processos. Assim, todas as mulheres ficam excluídas de poderem contribuir para esses juízos, porque não podem assinar.
Um bispo irlandês perguntou-me se devia contratar uma mulher como única canonista da sua diocese. Perguntei-lhe se ele era canonista e disse-me que não. Então disse-lhe que não a contratasse, porque uma vez que ela não podia assinar os documentos, quando ela lhos entregasse para ele assinar ele não saberia o que estaria a assinar. E isto para mim é envolvimento na caridade: que uma mulher diácono, especialista em Direito Canónico, possa estar envolvida em processos como estes. Ou, então, sendo chanceleres das dioceses. Há muitas mulheres chanceleres nos EUA, mas não podem assinar os documentos.
Muitas pessoas, com uma mentalidade mais hierárquica pensam que por um lado que o diaconado feminino não é necessário e, por outro, que ele nunca existiu. E isso simplesmente não é verdade.
Fala-se mais da liturgia, e a liturgia é Importante: Se uma mulher servisse como diácono na Basílica de São Pedro no Vaticano transportando o Evangeliário, proclamando o Evangelho, usando estola, pregando… bem, pregando não porque está lá o Papa, mas pelo menos proclamando o Evangelho, o que é que isso diria ao mundo sobre o valor da mulher, o seu estatuto? O mundo inteiro não vê a mulher como igual.
Não somos o mesmo e não queremos ser o mesmo. Mas há mulheres a morrer no Nepal porque são exiladas devido a menstruação, em África morrem devido à mutilação genital feminina. A violência doméstica sobre as mulheres afeta todo o mundo: se não fazem bem o jantar, se o arroz está frio. Isto é ridículo. Se a Santa Sé e se o Santo Padre querem dizer que as mulheres são criadas à imagem de Deus, então têm que dizê-lo.
O argumento sobre a ordenação é falso. Porque o único argumento seria dizer que as mulheres não são criadas à imagem de Cristo. E esse argumento foi-me dado por alguém com responsabilidades na Igreja. Foi isto que me foi dito. Mas o Catecismo de Baltimore (um documento Americano) diz no número 48: “todos são criados à imagem e semelhança de Deus”. É isto! (bate com punho na mesa) É isto que a Igreja tem que dizer. E se uma mulher estiver paramentada na Basílica de São Pedro, não apenas os 1,2 biliões de católicos, não apenas os 2 biliões de cristãos, mas todo o mundo compreende que o que a Igreja diz sobre a mulher é verdade. Não tem a ver com estatuto, liderança, poder ou dinheiro. Nada disso! Precisamos de dizer que as mulheres são iguais enquanto seres humanos. É a isso que temos que voltar, é essa a tradição que temos que recuperar. Insisto, não é uma questão de poder é uma questão de ministérios. E o ministério de toda a Igreja pode ser oferecido a todo o mundo simplesmente colocando ali uma mulher paramentada com uma estola. É tudo o que temos que fazer. (pausa)
Desculpem… exaltei-me um pouco. (Risos)
Há especificidades que distingam os homens diáconos das mulheres diáconos? O que nos podem dizer sobre isso.
PZ –Posso dizer muita coisa, ficaríamos aqui dois dias… As mulheres diáconos ungiam outras mulheres, os homens diáconos não o faziam. Sobretudo quando havia bispos e padres presentes.
BP – Havia coisas que as mulheres diáconos faziam que os homens diáconos não faziam.
Mas a unção feita por mulheres talvez não acontecesse, ainda que se restaurasse o diaconado feminino…
PZ –Não sabemos isso. Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Nos EUA, em alguns hospitais as mulheres que fazem serviço de capelania e que acompanham as mulheres que se aproximam da morte… os padres, como ministros, caem ali da para-quedas. Em alguns casos, o padre unge, garantindo a dimensão sacramental, mas a mulher também unge. Há duas pessoas a ungir nos hospitais. Não contamos isto aos bispos…. Mas é muito importante para as mulheres.
Tive um encontro com o Cardeal DiNardo, de Houston, no Texas, e perguntei-lhe: Eminência, se tivesse que me ungir, onde me tocaria? Sou uma mulher que estou sozinha num quarto de hospital. E ele disse: aqui, na mão. E eu respondi (elevando o tom de voz): “Afaste-se de mim. Não me toque aí. Quem é o senhor? Um homem estranho que entra no meu quarto e toca na minha mão?”
Ele ficou muito atrapalhado. “O que está a dizer?”. E eu expliquei-lhe: “Ou entra no meu quarto com uma mulher ou manda uma mulher para me ungir. Não entra no meu quarto, sozinho!” O cardeal corou e disse-me “Eu nunca tinha pensado nisso!”.
Isto é muito importante. É um contacto muito íntimo. Claro que ele depois disse: “Ok, eu unjo-a na testa”. E eu respondi: “Não, eu quero a unção nas minhas mãos!”. Não é uma questão simples…
Eu acho que isto é uma função jurídica, esta questão da remissão dos pecados. Acho que houve três ritos para a unção, e nem todos eles incluem a remissão dos pecados. Por isso, porque é que não se pode ter uma mulher diácono a fazer a unção?
BP – Creio que a questão é se as mulheres diácono também poderão estar no altar para a Eucaristia. Para mim, é muito óbvio que os homens sempre estiveram no altar na celebração da Eucaristia, mas em relação às mulheres, isso não é claro. Talvez tenha sido admitido por alguns padres e bispos, mas não há provas. Creio eu.
PZ: O que acontece muito é que vemos imagens de mulheres com uma estola e com a Bíblia na mão em frescos ou imagens antigas, e há quem diga “Ah, eu vi uma mulher padre”…não é bem assim. Primeiro, não era uma mulher padre. Porque as mulheres diácono usavam as estolas como os padres. O que pode ter acontecido é que tenha havido diáconos – homens ou mulheres – a presidir à Eucaristia. Essa possibilidade não me levanta problemas. Mas tenho problemas em que se usem essas imagens para defender que existiram mulheres sacerdotes. Esse é o meu argumento. Há uma semana o Gary Macey [um dos autores do livro] disse-me, na Califórnia, que não há ritos de ordenação que confirmem que houve mulheres ordenadas sacerdotes. Eu também nunca encontrei evidências.
A questão não é se houve mulheres presbíteros. É se houve mulheres diáconos que celebraram a Eucaristia. E isso eu admito. E sabemos dessa possibilidade porque até ao século XVI houve lutas e discussões sobre se os diáconos podiam ou não celebrar a Eucaristia.
Porque devemos distinguir a ordenação diaconal da ordenação sacerdotal?
PZ – No início da Igreja, tínhamos um bispo e depois, ao mesmo nível tínhamos padres e diáconos. Ou seja, tanto o padre como o diácono trabalhavam e respondiam ao bispo. Depois – o Bernard culpa o Gregório VII por isso (risos) – tivemos uma alteração no rumo da história, e quando o diaconado passou a ser um degrau para o sacerdócio, o diácono ficou abaixo do padre. Ou seja, depois disto, nenhuma mulher foi ordenada diácono, porque não podia seguir o caminho do sacerdócio…e portanto as mulheres diácono passaram a ficar nos mosteiros e os homens diáconos ficaram subordinados ao sacerdócio. O diaconado foi transformado num degrau para a ordenação sacerdotal.
BP- Resumidamente, o que aconteceu foi que uma vez que houve uma alteração no diaconado masculino, houve imediatamente uma alteração no diaconado feminino. Quando o diaconado passou a ser apenas um passo para chegar ao sacerdócio, a ordenação de mulheres desapareceu, porque elas nunca poderiam ser ordenadas sacerdotes. Essa foi a reforma Gregoriana, do século XI-XII. Quando o diaconado perde consistência por si próprio, deixa de haver ordenações de diáconos permanentes e, consequentemente, de mulheres.
PZ – Mas a diferença entre sacerdócio e diaconado fica também clara no cânone 1009, parágrafo 3 do Direito canónico que foi alterado pelo Papa Bento XVI em 2009: “Aqueles que são constituídos na ordem do episcopado ou do presbiterado recebem a missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça; os diáconos, ao contrário, sejam habilitados para servir o povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e da caridade”. O Catecismo da Igreja Católica de 1983 diz, também, claramente que o sacerdócio e o diaconado são coisas diferentes. Eu escrevi um artigo sobre isso no National Catholic Report. It’s not about women priests (A questão não é a ordenação sacerdotal das mulheres)
A distinção feita no Código de Direito Canónico é muito importante e clarificadora, não sei se seria a intenção de Ratzinger, mas ele é muito honesto nos seus argumentos teológicos.
Isto não é sobre hierarquia, sobre poder, Isto é sobre Jesus Cristo. É disso que estamos a falar! Como é que explicamos Jesus Cristo ao mundo, como vivemos como Cristãos, como é que nós somos cristãos se não defendemos que mulheres e homens, não são o mesmo mas são iguais em dignidade?
Quais seriam os principais desafios para a Igreja se o diaconado feminino voltasse a ser uma realidade?
Bom, teríamos coisas positivas e negativas. Uma mulher diácono tem que usar a estola de forma diferente, por exemplo. Bom, mas creio que o grande desafio é educacional. É explicar que o diaconado não implica o sacerdócio. Que são coisas diferentes.
BP – Acho que a mudança mais significativa seria o facto de passarmos a ter mulheres dentro da hierarquia da Igreja. Elas passariam a fazer parte das decisões, da autoridade da Igreja. Para mim, isto obriga a uma enorme mudança de mentalidades. Quando os homens estão a refletir entre eles, têm sempre a mesma perspetiva. O mesmo acontece dentro de grupos só de mulheres. Mas quando homens e mulheres trabalham juntos, seja nas suas profissões, em casa ou na Igreja, a diferença é muito grande. Os homens mudam e as mulheres mudam. Homens e mulheres passam a tomar melhores decisões, e isso provoca uma diferença real no mundo. Homens e mulheres trabalham melhores juntos, nas suas diferenças. Isto é uma questão antropológica. E hoje é possível mudar essa mentalidade e permitir esse trabalho conjunto.
Por exemplo, olhemos para os casos dos abusos sexuais dentro da Igreja. Talvez não tivessem acontecido, ou não tivessem tomado esta proporção, se as mulheres tivessem lá dentro, a olhar para o que estava a acontecer…
PZ – Havia uma religiosa, numa paróquia de New Jersey, que estava responsável por tomar conta dos serviços relacionados com o Altar, e que não tinha que trabalhar ao domingo. Mas todos os domingos ela estava lá, na sacristia, e não permitia que os acólitos estivessem sozinhos com o sacerdote que vinha celebrar, porque ela nunca sabia quem seria esse sacerdote. Não o conhecia. Se ela fosse diácono, estaria lá de qualquer forma. O Santo Padre defende também o que o Bernard acabou de dizer, a importância dos olhares diferentes dentro da Igreja – logo, de homens e mulheres. Mas vamos lá ver uma coisa. Isto não é sobre hierarquia, sobre poder, Isto é sobre Jesus Cristo. É disso que estamos a falar! Como é que explicamos Jesus Cristo ao mundo, como vivemos como Cristãos, como é que nós somos cristãos se não defendemos que mulheres e homens, não são o mesmo mas são iguais em dignidade? Como? Essa para mim é a grande questão!
Mas quando homens e mulheres trabalham juntos, seja nas suas profissões, em casa ou na Igreja, a diferença é muito grande. Os homens mudam e as mulheres mudam. Homens e mulheres passam a tomar melhores decisões, e isso provoca uma diferença real no mundo
Ou seja para dizermos quem é Deus precisamos de homens e mulheres…
Exactamente! Há uns 30 anos, eu disse ao Cardeal Ratzinger, em público, que o Deus da Filosofia não é homem nem mulher, mas que o Deus da Teologia são ambos. E ele concordou comigo! Temos que ensinar que as mulheres também são imagem de Cristo! É este o ponto, as mulheres podem representar Cristo. O argumento da autoridade, de Cristo cabeça para mim é diferente do argumento da mulher como podendo representar a imagem de Cristo, a sua pessoa. De qualquer forma, a Igreja diz que não podemos ter mulheres sacerdotes e eu não vou discutir isso, não é essa a minha questão. Além disso, não acredito que vão existir mulheres sacerdotes na Igreja Católica. Acho que é uma discussão que não podemos ter.
Qual o impacto que teve o reconhecimento de Maria Madalena como apóstolo?
O Papa Francisco é simplesmente incrível. É o homem mais simpático… é um homem perfeitamente normal, que poderia estar aqui sentado connosco e pedir um copo de água! (risos)
E ele vê uma lacuna na Igreja, nessa falta de reconhecimento das mulheres. Talvez por isso juntou Maria Madalena ao cânone como apóstola. Temos também uma frase dele na contracapa do nosso livro muito significativa: “Convidar uma mulher para falar sobre as feridas da Igreja é convidar a própria Igreja para falar de si mesma, das suas feridas. E creio que este seja o passo que devemos dar com muita força”. Ele fala muita articuladamente desta necessidade do olhar das mulheres e dos homens na Igreja. Se Maria Madalena é um apóstolo, então poderíamos dizer que as mulheres poderiam ser padres? Talvez! Mas acho que não era esse o objetivo dele. Aliás, ele já disse que não podem ser. E o cardeal Luís Ladaria, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou um documento, em junho do ano passado, contra essa possibilidade. Mas o que também não é historicamente sustentável é encarar o diaconado feminino como uma ordem menor, como o antigo sub-diaconado.
Mas acho que o Santo Padre sabe o que está a fazer.
BP – Como reação aos documentos Inter Insignioris (da Congregação para a Doutrina da Fé, 1976) e Ordinatio Sacerdotalis (de João Paulo II, 1994), em que se afirma a impossibilidade da ordenação sacerdotal das mulheres, os bispos alemães e americanos perguntaram ao Santo Padre se poderiam ser ordenadas mulheres diáconos. A resposta foi “as mulheres não podem ser ordenadas sacerdotes”. Portanto, parece-nos claro que a questão está em aberto. Se se quisesse fechar a questão isso teria sido dito claramente. .
É possível dizer que o diaconado feminino é uma questão de tempo?
BP – Provavelmente, sim! Para mim sim. É uma questão de tempo. Possivelmente o primeiro passo não será a ordenação mas o reconhecimento do ministério.
PZ – Não, eu discordo disso. Isso mataria a questão. Se disser como Kasper, “ah, sim podemos chamar-lhes diaconisas, podem paramentar-se como tal, mas não podem ser ordenadas”, seria o fim.
BP – Não tenho a certeza disso…
PZ – Garanto. Não terás nenhuma mulher na Igreja se fizeres isso. Ou dizes sim, ou não dizes nada. Mas se optares por esse meio-termo, as mulheres não vão aceitar.
BP – Mas sabes que há muitas mulheres que também dizem que não querem saber de uma ordenação diaconal. Ou podem ser sacerdotes, ou mais vale não serem nada. Portanto é a mesma argumentação.
PZ – Sim, eu sei.
O ponto, então, não será esclarecer as diferenças entre o diaconado e o sacerdócio?
BP: Eu acho que nós temos mesmo que refletir sobre e melhorar a compreensão da a função dos diáconos permanentes. Quando aprofundarmos o sentido do diaconado permanente exercido pelos homens, o sentido do seu ministério, será mais fácil a possibilidade da ordenação diaconal das mulheres.
PZ – Sim, é verdade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.