Suicídio – uma crise de saúde pública

O suicídio e a depressão são problemas de saúde pública. Mas até que consigamos falar abertamente deles uns com os outros, não vamos ter políticas de saúde pública eficazes para os travar.

O suicídio e a depressão são problemas de saúde pública. Mas até que consigamos falar abertamente deles uns com os outros, não vamos ter políticas de saúde pública eficazes para os travar.

Nota editorial: este artigo constitui um testemunho pessoal, não um texto especializado. No final do artigo indicamos contactos de linhas de apoio.

 

Setembro marcou quatro anos da partida de um dos nossos melhores amigos. Desde que o Manel morreu que consigo marcar o compasso às estações pelas minhas insónias. Sei que chegámos a meio de agosto quando, invariavelmente, começo a perder noites em vigília, incomodada com os dias finais que uns anos antes se viviam. Para os que lhe eram próximos, a morte do Manel teve a particularidade de desfazer o tecido do tempo. Quem já perdeu um amigo prematuramente sabe do que falo: a lâmina da dor fica tosca, as ondas do luto espaçam-se, mas ficamos para sempre marcados por um vazio no peito, que simultaneamente nos torna leves e pesados, de formas que surpreendem quem (felizmente) não passou por isto.

Nos últimos anos escrevi muito sobre o Manel. Não se passou um dia em que não fale nele. Para ele. Não o reze. No início, fazia-o com uma sofreguidão febril, como se o nome dele fosse um mantra; tecia preces na esperança de que estas lhe chegassem, ou que lhe alumiassem o caminho de volta. Em viva voz, repetia lamentos para quem me quisesse ouvir; pedia que partilhassem histórias sobre ele. Coletava objetos que deixara para trás, como se ao recolher o lastro de todas as memórias e os vestígios físicos da vida que deixou para trás, o pudesse reconstruir aos retalhos. Rasguei os Céus para me zangar com Deus; e também foi Nele que encontrei maior conforto. Nos primeiros tempos, cada conversa convidava lágrimas pesadas a somarem-se nas pálpebras e a caírem pelo rosto. Hoje em dia consigo cada vez mais sorrir.

Nesta coletânea mórbida de palavras que troquei, chorei, rezei, escrevi, alucinei, coíbo-me sempre de ligar o Manel à doença que o levou, e da qual também sofro. Até que há uns dias li nas redes uma notícia que tinha uma frase em destaque, que era mais ou menos assim: como podemos querer prevenir o suicídio se não falamos sobre ele?

Até que há uns dias li nas redes uma notícia que tinha uma frase em destaque, que era mais ou menos assim: como podemos querer prevenir o suicídio se não falamos sobre ele?

Como dupla sobrevivente do suicídio — do meu, planeado, e do de entes queridos, concretizado — sinto que é a minha obrigação falar nele abertamente. A depressão é das doenças mentais mais incompreendidas. Opera no escuro, porque a sociedade assim lho permite, e é na penumbra que ganha maior projeção e letalidade. Quem não sofre dela acha porventura que é um problema de ócio, de falta de motivação e interesses. Uma manifestação de uma vida bafienta e pouco vivida. Ouvir uma barbaridade destas enquanto doente de doença mental crónica não é fácil. Certamente não se teria a ousadia de dizer o mesmo a uma pessoa com uma perna partida, muito menos com um órgão vital em falência. Não significa que o conselho de bom-senso não se aplique: o desporto, a alimentação equilibrada, higiene de sono, a vida social (e espiritual!) sadia, são todas boas práticas, tanto como prevenção como tratamento. Até porque mais e mais se percebe que a depressão tem um quadro inflamatório semelhante a outras doenças metabólicas, tal como a diabetes e o cancro. Juntamente com a terapia, o acompanhamento médico-psiquiátrico (e, se necessário, farmacológico), constituem os pilares da gestão continuada da depressão. Sem qualquer uma destas, bastam-me pequenos atritos na vida para que a minha doença mental de base — ideação suicida, uma espécie de glitch no cérebro que me faz obsessivamente pensar em tirar a própria vida — passe de um fusível estragado para um reator nuclear em fusão.

Mas o Manel tinha e fazia todas estas coisas. Tinha uma família espetacular, era amado e desejado, tinha os melhores amigos que se podem ter. Fazia desporto, era um profissional de sucesso, e uma das mentes mais brilhantes da nossa geração. Era politicamente ativo, culto, civicamente comprometido, tinha variadíssimos interesses. Fazia terapia, tomava medicação. Tinha tanto para dar. Era das melhores pessoas que já conheci, e muito provavelmente hei de conhecer. Fazia quase todas estas coisas. Não dormia… E não queria morrer.

Este último bocado dói-me especialmente. A última coisa que o Manel me disse ao vivo, uma semana antes do final, foi que estava assustado, porque não queria morrer. No velório, entre tantas coisas parvas que se balbuciam (mais para encher o silêncio do que confortar os enlutados), ouvi sussurrar muitas vezes que “quando os suicidas se decidem já não há nada a fazer”. Na altura não tive forças para dizer nada, mas agora digo. Digo que falam do que não sabem: ninguém com depressão quer morrer.

Espero que não, que nunca mais, que nem mais uma pessoa morra às mãos desta doença. Mas estatisticamente sei que todos os que me estão a ler se vão inevitavelmente encontrar na minha posição, poucos dias antes do final, à frente de uma pessoa que está a perder o braço de ferro com a depressão. E tenho de vos pedir para fazerem aquilo que o João e eu temos feito a família, amigos e conhecidos nestes últimos quatro anos: façam-lhe uma cena.

Tirar a saúde mental do armário é salvar vidas, e todos devemos fazer o nosso papel.

Leram-me bem. Da próxima vez que estiverem com um colega, familiar ou amigo, e vos passar pela cabeça que essa pessoa não está bem, ou que saibam que ela está deprimida e ela vos diga algo esquisito que vos ponha as orelhas no ar, façam-lhe uma cena. Não a deixem sair de ao pé de vocês. Liguem-lhe aos pais, ao cônjuge, aos filhos, a fazer queixinhas. Pode ser totalmente despropositado, mas façam-lhe uma cena. Peguem-lhes no telefone à força e liguem-lhes para o psiquiatra, se eles estiverem a ser acompanhados. Façam screenshot das mensagens incriminadoras escritas pela depressão, e mandem-nas a todas as capelinhas. Se for preciso e não estiverem com essa pessoa, chamem a polícia. Ofereçam-se para os levar às urgências psiquiátricas, e se essa pessoa não quiser, levem-na à mesma. Façam-lhe a cena que vos parecer adequada. Porque a depressão mata mesmo, e ninguém se pode dar ao luxo de correr esse risco. Porque é infinitas vezes melhor ser exagerado, ridículo, no limite perder a amizade e confiança dessa pessoa, do que a ínfima hipótese de a perder. Façam uma cena. Porque não querem viver com a culpa de que podiam ter salvo uma pessoa e não o fizeram.

E as cenas, funcionam. Acreditem. O mais provável é não perderem sequer a amizade e confiança da pessoa em questão, mas antes conseguirem lançar-lhe uma boia de salvação de que ela não se vai esquecer. Façam-lhes uma cena.

Racionalmente, sei que todo o Amor do mundo não seria suficiente para o salvar… e ainda assim, vou viver para sempre com a enorme culpa de lhe ter falhado. Sinto-me profundamente responsável pela sua morte porque reconheci o precipício no olhar do Manel e nada fiz. Vou passar a vida inteira a correr atrás do prejuízo, e sem nunca conseguir pagar a conta. A culpa de não ter salvo a Catarina, o Manel, o Pedro. E é por eles que escrevo, também por eles que me trato, por eles (e por mim) que exponho as nossas histórias e me dispo de pudor. Façam todas as cenas que precisem, para que estas histórias nunca se repitam. Até lá, vou vivendo como posso, passando noites em claro. As insónias, passo-a com os meus mortos — não sei se são eles que me fazem companhia, ou eu que lha faço a eles, e não sei qual das alternativas mais me transtorna.

As doenças mentais constituem uma crise de saúde pública, mas não têm de ser fatais. Está na nossa apatia, no nosso pudor, na nossa boa educação citadina e distante muita da responsabilidade dos desfechos terminais destas doenças. Mas até que consigamos falar abertamente do suicídio, não vamos ter políticas de saúde pública eficazes para o travar. Tirar a saúde mental do armário é salvar vidas, e todos devemos fazer o nosso papel. Mesmo que isso signifique sair da nossa zona de conforto e expor a intimidade. Porque uma vida vale mais que todo o nosso desconforto. De igual forma, as vítimas da depressão não são nem apenas números, nem um enredo do Netflix: tanto a romantização como o esquecimento são poderosos aliados da doença mental. A depressão ceifou prematuramente a vida dos nossos amigos, e subtraiu irremediavelmente a vida de quem os amava. Mas não os define, nem a nós. É pelos nossos amigos que a temos de combater.

 

Linhas de Apoio 

SOS Voz Amiga
Contacto: 213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660
Horário: todos os dias das 16h00 às 24h00
Site: www.sosvozamiga.org

SOS Palavra Amiga
Contacto: 808 237 327 | 210 027 159
Horário: dias úteis das 15h00 às 22h00 | fins de semana das 19h00 às 22h00

SOS Estudante
Contacto: 96 955 45 45 ou 808 200 204 (das 20h à 1h, chamada local)

SOS Adolescente
Contacto: 800 202 484

Telefone da Amizade
22 832 35 35
Horário de Atendimento
Todos os dias
16h-23h

Fotografia: Faris Mohammed – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.