Sou da Páscoa pela Paixão

Sexta-Feira Santa é o dia da nudez da Igreja, o dia da Cruz e do silêncio. O dia da Paixão.

Sexta-Feira Santa é o dia da nudez da Igreja, o dia da Cruz e do silêncio. O dia da Paixão.

Sou da Páscoa. Mas o meu dia litúrgico preferido é Sexta-feira Santa, o dia da igreja despida, nua, sem toalhas nem flores, o dia sem Missa, o dia da Cruz, o dia da Paixão. O dia sem o qual não há Páscoa.

Nasci e vivo no concelho de Alenquer onde os franciscanos imprimiram a devoção à cruz e ao Senhor dos Passos. O concelho vive a Quaresma ao ritmo das novenas e das Procissões dos Passos.

Cresci paredes meias com a Igreja da Misericórdia, sempre chamada de Capela do Senhor dos Passos, “o nosso melhor vizinho”, como gostava de dizer o meu pai.  No domingo da procissão, 15 dias antes da Páscoa, o Senhor sai da sua capela, percorre a terra, parando em cada um dos quatro Passos que restam e para o encontro com a sua mãe. E fica na igreja paroquial até Sexta-feira santa, quando o voltamos a levar para a capela. É dia de a igreja encher, num ritual retomado este ano depois das interrupções da pandemia.

Talvez por todo este contexto, talvez porque compreendo o Tríduo Pascal como uma só celebração, talvez porque sei que, como Madalena, verei o Senhor no jardim do sepulcro e, como Tomé, irei exclamar “Meu Senhor e meu Deus”  ou, simplesmente, porque conheço o fim da história e sei que a cruz é sempre gloriosa, este é o meu dia e é sempre para a cruz que se viram os meus olhos.

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Ilustração de Vera Guedes

Foi numa Sexta-feira Santa que ouvi do padre Ricardo o que já sabia, mas precisava que alguém dissesse: “Isso só se resolve com alguma forma de consagração.” Isso era a minha inquietação e o meu desejo de maior intimidade com Deus.

É a olhar para a cruz que me encontro plenamente amada. É a contemplá-la que, várias vezes, O escolhi enquanto outras mãos estavam nas minhas. E foi também a olhar para ela que por vezes O traí. E a beijá-la, com os meus lábios nos pregos dos pés do meu Senhor, me reconciliei e chorei com a gratuitidade do perdão. E é sempre a permanecer junto dela que sei onde devo estar e a quem pertenço. É nela – a árvore fecunda e refulgente que é tálamo, trono e altar – que aprendi e me sustento para servir e amar.

E é, depois, entrar no grande silêncio. O silêncio daqueles que sabem que Jesus morreu, mas vai ressuscitar, o silêncio que prepara o coração para a alegria da vida nova.

Celebrar a Paixão é entrar no mistério pascal. É ler o Servo de Deus de Isaías e perceber que servir é participar na missão redentora de Jesus; ainda que a obediência implique dor e sofrimento, o Servo conhece o seu Amor. É ouvir o salmo 30 e entregar-me, com Jesus, sem reservas no abandono ao Pai. É escutar a Epístola aos Hebreus e compreender que o Servo de Deus é também o Sumo Sacerdote, aquele que, pelo seu sacrifício, nos salva. É chegar à Paixão segundo João e acompanhar todo o sofrimento do Cordeiro de Deus que, na cruz, cumpre a Sua missão, não como um derrotado, mas como aquele que, assim, nos mostra a Glória do Pai e de sermos Filhos de Deus.

É ainda chegar à ‘mãe’ de todas as orações universais e pedir por todos. Ninguém fica de fora daquelas dez preces. Rezamos pelos que creem e pelos que não creem, pelos cristãos, pelos judeus, pelos atribulados … E pelos governantes de todas as nações, para que busquem sempre “a verdadeira paz e a liberdade de todos os povos”.

Celebrar a Paixão é adorar a Cruz. É beijá-la e querer ficar ali, permanecer como as Marias, ajudá-lo a descer da cruz como José, segurá-lo nos braços como a Mãe. É encontrarmo-nos com tudo o que é humano e saber que pode ser transformado pelo Amor, tocado pelo divino. E é, depois, entrar no grande silêncio. O silêncio daqueles que sabem que Jesus morreu, mas vai ressuscitar, o silêncio que prepara o coração para a alegria da vida nova

Há dias, um entrevistado respondia-me que vivemos tempos em que não nos podemos dar ao luxo de sermos otimistas. Mas, digo eu, nesta Sexta-feira da Paixão em que vivem tantos nossos irmãos, devemo-nos dar à nudez do silêncio. Do silêncio habitado pela esperança, essa filha mais nova de Deus, como lhe chamou Charles Péguy, que até ao Pai surpreende. Essa menina que vê aquilo que será. No Tempo e na Eternidade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.