Sete anos de Francisco: novo magistério, positivo e negativo

O Magistério positivo de Francisco é interpretado com nova liberdade, tanto linguística quanto institucional. É um evento linguístico e um evento experiencial.

O Magistério positivo de Francisco é interpretado com nova liberdade, tanto linguística quanto institucional. É um evento linguístico e um evento experiencial.

Publicado originalmente a 12 de março 2020 no blog: Come se non.

 

Às 20:11 de hoje, 7 anos terão passado desde aquela abençoada noite de 13 de Março, um evento inesperado que jamais esqueceremos. Uma revisão do pontificado de Francisco, pelo que vimos até agora, compromete-nos a um julgamento que deve tentar ir até ao coração do evento. Depois de ler o livro mais bonito que foi escrito até agora – “Ghislain Lafont, Piccolo saggio sul tempo di papa Francesco. Poliedro emergente e piramide rovesciata” [Pequeno ensaio sobre o tempo do Papa Francisco. Poliedro emergente e pirâmide invertida], EDB, 2017 – encontrei, em SettimanaNews, a bela introdução que Marcello Neri fez a um volume diverso, que saiu na ocasião, intitulado “Profezia di Francesco. Traiettorie di un pontificato” [Profecia de Francisco. Trajetórias de um pontificado], para a EDB. Neste curto mas denso texto introdutório, Neri diz algo de grande importância, gostaria de começar por aqui antes de uma consideração mais aprofundada.

Marcello Neri centra a sua atenção no que especificamente podemos identificar nestes 7 anos de pontificado. E ele expressa-o assim:

“o ponto de ruptura em relação aos seus dois predecessores não está tanto, ou não só, na visão da Igreja, mas, antes de mais, na consciência histórica do fim de alguns processos seculares e do início de outros que estão a conduzir a profundas transformações da sociabilidade humana e da antropologia moderna”.

Isto implica, inevitavelmente, uma mudança profunda, que em Francisco encontra o seu início e que pode ser descrita bem com estas palavras:

“Em comparação a João Paulo II e Bento XVI, Francisco já não pensa e não age como se a modernidade ainda existisse; e, portanto, começa a delinear uma visão da Igreja e do catolicismo coerente com a eficácia histórica dentro da qual eles desenham a sua fidelidade ao Evangelho do Reino e à criação desejada por Deus. Fidelidade que já não pode ser unívoca e uniforme, a mesma onde quer que a fé se encontre na vida quotidiana dos homens e das mulheres de hoje”.

Tudo isto implica, como consequência, uma “reescrita” da tradição, uma tradição, que renuncia a alguns dos “clichés modernos”, que depois de Trento se tinham imposto a tal ponto, que se identificaram com a própria essência da fé:

“A decisão de Francisco é exactamente esta: apoiar a saída da Igreja Católica da luta contra os moinhos de vento da modernidade, reactivando, no coração institucional da Igreja, a dinâmica original da notícia evangélica de Deus. Durante muito tempo, a condição histórica permitiu ao catolicismo latino (aquele que se espalhou pelo mundo) construir um aparato conceptual, institucional, canónico e pastoral que pudesse renunciar formalmente ao corpo quotidiano com as Escrituras testemunhais”.

 

O primeiro aspecto do Magistério de Francisco que deve ser destacado é o fato de que, desde o início, ele avança para a urgente recuperação de um conceito “dinâmico” de tradição.

 

Este é o quadro de entendimento que M. Neri delineia como basilar no pontificado, pelo menos nos seus primeiros sete anos de exercício. Parece-me uma análise muito lúcida e convincente, da qual derivariam, quase como corolários, duas consequências muito relevantes: por um lado, a superação do “dispositivo de bloqueio” que tinha caracterizado a época de João Paulo II e Bento XVI; por outro, a afirmação de um “novo equilíbrio” entre Magistério positivo e Magistério negativo.

Para ser preciso, esclareço que uso as expressões “magistério negativo” e “magistério positivo” num sentido “técnico”: isto é, como aquele magistério que consiste em “condenar propostas erradas” ou “definir propostas de fé”. A primeira é “negativa” porque nega erros, a segunda é “positiva” porque coloca proposições de verdade.

 

 

A tradição já não está bloqueada

O primeiro aspecto do Magistério de Francisco que deve ser destacado é o fato de que, desde o início, ele avança para a urgente recuperação de um conceito “dinâmico” de tradição. Muitas das expressões mais características da Evangelii Gaudium [EG], já em 2013, derivam precisamente desta leitura “não-estática” da tradição. Nesta intenção, Francisco não faz mais que retomar a grande intuição do Concílio Vaticano II, que já no fim do papado de Paulo VI, mas sobretudo durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, tinha sofrido uma drástica redução, a ponto de encontrar, indirectamente, a sua negação na teorização implícita de um “dispositivo de bloqueio”, através do qual a Igreja só podia encontrar a tradição no seu passado, despojando-se de toda a autoridade sobre o novo. A redescoberta da autoridade do presente e do futuro para estabelecer plenamente a experiência da tradição parece-me o maior ganho eclesial destes sete anos. A relevância do tempo para o espaço e da realidade para a ideia – segundo dois dos famosos princípios introduzidos pela EG – são a tradução mais clara desta mesma perspectiva, que reage com autoridade contra a tendência para a espacialização e idealização da tradição. A resistência e a oposição a Francisco durante estes sete anos pode ser entendida como a inércia de uma visão eclesial na qual o “controle do espaço” exclui a relevância do tempo e na qual a “defesa da ideia” imuniza da realidade. Ter dado novas provas aos “sinais dos tempos” e à “força do real” no anúncio do Evangelho é a primeira figura de qualificação no exercício do Magistério nos últimos sete anos.

 

 

Novo Magistério Positivo, Novo Magistério Negativo

O segundo aspecto que gostaria de destacar, e que está relacionado com o primeiro, implica o repensar da “forma magisterial”. Para que possamos compreendê-lo bem, precisamos de uma premissa. O exercício do “magistério pontifício” tem sido caracterizado, ao longo da história, pela prevalência de um “magistério negativo” sobre o “magistério positivo”, de acordo com o significado dos termos já esclarecidos acima. Poucas, de fato, têm sido as “formulações dogmáticas”, mas numerosas têm sido as “condenações”. E isto não foi apenas um limite do exercício clássico do Magistério. Um Magistério que “condena as proposições”, condena apenas aquelas. Nada mais. Deixa um espaço de liberdade muito grande. Foi assim que se exerceu o Magistério até ao Concílio Vaticano I. Com os dois Concílios Vaticanos as coisas mudaram radicalmente, até o surgimento, com o Vaticano II e depois dele, de uma prevalência absoluta do Magistério positivo sobre o Magistério negativo. De facto, um dos fenómenos mais interessantes, a partir dos anos 60, é a progressiva extensão da competência positiva do Magistério, que se torna mesmo “invasiva”. E isto não é um fenómeno sem limites. Poderíamos dizer que, paradoxalmente, a extensão do Magistério positivo não é apenas um facto positivo. Porque isto muda profundamente a lógica eclesial, determinando uma importância desproporcionada do Magistério pontifício, em comparação com outras formas de exercício da autoridade eclesial. E é, afinal, o pairar da lógica disciplinar imposta pelo Código de Direito Canónico, de 1917, bem como pelo de 1983. Assim, depois do Vaticano II e até Bento XVI, foi criado um “sistema” no qual o magistério papal absorveu toda a autoridade em si mesmo, a ponto de se definir não só positivamente, mas também negativamente: onde nenhuma autoridade era reconhecida, nenhuma outra autoridade existia.

 

Não nos deve surpreender que estas novidades não só deixem o corpo eclesial com algum embaraço, mas que encontrem uma dificuldade objectiva em ser plenamente eficazes.

 

Com Francisco, os dois lados desta composição institucional e ideal mudaram. Por um lado, de fato, o Magistério positivo de Francisco é interpretado com nova liberdade, tanto linguística quanto institucional. É um evento linguístico e um evento experiencial. Por outro lado, ele assume o elemento “negativo” não mais em termos de “condenação de propostas erróneas” (de acordo com a solução clássica), mas não mesmo em termos de “exclusão de autoridade” (de acordo com a solução prevalecente no período pós-conciliar), mas como uma referência a “outras autoridades” (e isso parece evidente – e portanto embaraçoso – especialmente em Amoris Laetitia e em Querida Amazónia). Um “magistério papal” que “não tem de resolver todas as questões” é uma leitura “clássica” da função magisterial, que reconhece o seu próprio limite, ao qual, no entanto, não estávamos acostumados há pelo menos 2 séculos. Parece-nos uma revolução, ou uma subversão, só porque todos nós somos cristãos e católicos de memória curta.

Poderia assim dizer que, ao longo destes 7 anos que hoje se assinalam, conhecemos gradualmente uma nova e antiga forma de exercício do magistério papal, que se renova tanto do ponto de vista do exercício do “magistério positivo” como do ponto de vista do exercício do “magistério negativo”. Não nos deve surpreender que estas novidades não só deixem o corpo eclesial com algum embaraço, mas que encontrem uma dificuldade objectiva em ser plenamente eficazes. No entanto, é preciso reconhecer com gratidão que o horizonte está aberto, a linguagem é inaugurada, os gestos são fortes e belos, e os princípios de implementação não faltam. Estes sete anos foram não só “o começo de um começo”, mas também, e talvez ainda mais, um “ponto de não retorno”. Com o qual nos podemos regozijar. Mesmo que, imediatamente, esse “começo” só crie uma complicação para todos, por mais maravilhoso que seja. Implica, de facto, repensar um aparelho conceptual, institucional, canónico e pastoral, ao qual nos dedicaremos – por algumas gerações – durante pelo menos um século. Estes sete anos de graça abrem-se a um futuro de pelo menos quatro gerações: é assim que funciona a primazia do tempo sobre o espaço.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.