“Ser apóstolo é aquilo que nos define”

Uma conversa do P. José Carlos Belchior com vários jesuítas em formação para assinalar os seus 70 anos de vida na Companhia de Jesus. As memórias e o testemunho de um homem simples, de gargalhada fácil e sonora.

Uma conversa do P. José Carlos Belchior com vários jesuítas em formação para assinalar os seus 70 anos de vida na Companhia de Jesus. As memórias e o testemunho de um homem simples, de gargalhada fácil e sonora.

Por ocasião dos 70 anos de Companhia do P. José Carlos Belchior, os Jesuítas em formação prepararam um conjunto de perguntas – em forma de entrevista – repassando os diferentes momentos da sua vida. O P. Belchior entrou no Noviciado em Soutelo (Braga) dia 24 de outubro de 1951, à época dia de São Rafael. Os Jesuítas que lhe fazem estas perguntas partilharam a vida de comunidade com o P. José Carlos Belchior, que nos últimos sete anos foi Reitor do Noviciado do Santíssimo Nome de Jesus, em Coimbra. Neste último verão, o P. Belchior passou a integrar a Comunidade Pedro Arrupe, em Braga, onde vive atualmente. 

Nota: Antes de cada pergunta coloca-se o nome do jesuíta em formação que a fez e, entre parêntesis, o local em que vive atualmente.

 

I. Raízes

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Com a família.

Emanuel Lopes (Coimbra) – Começando pelas origens, o que recorda dos seus pais, irmãos, do lugar onde nasceu?

Os meus pais casaram muito novos, a minha mãe tinha 17 anos e o meu pai 21. Sou o segundo filho e quando nasci a minha mãe tinha 20 anos. Portanto eu sabia sempre a idade exata da minha mãe, bastava somar 20 anos à minha (risos). A minha mãe viveu sempre como doméstica e o meu pai geria as propriedades da família e as que se juntaram quando casou com a minha mãe. Foram tempos difíceis, não havia nada.

Quando crescemos, praticamente a primeira classe foi com a minha mãe, em casa, e não havia escolas próximas na aldeia. A 4 ou 5 quilómetros havia uma escola, mas não havia transporte, de maneira que os meus pais contrataram três professoras ao longo de dois, três anos – lembro-me da Irene – que nos deram a instrução primária. Depois fui atrás do meu irmão que já tinha partido para o Colégio das Caldinhas, onde estive até ao então 4º ano (hoje seria o 8º). Depois o meu irmão “tuberculizou” e teve de ir para o sanatório, nas Penhas da Saúde. Eu também tive um princípio de gripe e os meus pais, com imenso medo que me acontecesse o mesmo, enfiaram-me num quarto e começaram a alimentar-me… (risos). Ao mesmo tempo, nós íamos à Eucaristia dominical a Dois Portos, que ficava a três quilómetros. Chegámos a ir de carroça, de cavalo, a pé, de carro. De carro, quando já era possível haver carro, porque durante o tempo da guerra não havia pneus, a gasolina era racionada. Havia o racionamento de tudo…enfim, foi assim. Mas foi bom (risos).

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Dia da Comunhão Solene, 1944

Diogo  Marques Gaspar (Coimbra) –  Como conheceu a Companhia de Jesus?

Desde pequeno que quis ir para padre. E quando era miúdo não fazia distinção entre padres. Lá por casa passavam muitos, porque a capela da aldeia está quase incrustada na nossa casa e os padres que iam fazer as pregações que naquela altura se faziam, as missões populares, etc, ficavam instalados em nossa casa. Desde os franciscanos, também um padre holandês dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, Gregório Verdonk. Era um homem muito santo e bom, a quem toda a gente admirava. Depois fui para o Colégio das Caldinhas e aí conheci os jesuítas, e depois voltei para Lisboa – ainda o Colégio São João de Brito não tinha o 5º ano de então (atual 9º) -, e fui para o Clenardo que era o Colégio dos padres Dominicanos. Conhecia assim várias congregações, além dos padres diocesanos que também passavam lá em casa e alguns deles eram muito amigos. Houve algo que me marcou muito nos padres jesuítas: não falavam mal dos seus companheiros. Entre todos, preferi a Companhia de Jesus, tendo decidido entrar quando já estava em Lisboa. Tinha um diretor espiritual jesuíta, o Padre António Queirós, professor de Religião e Moral do Liceu Passos Manuel.

 

II – Formação na Companhia de Jesus

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No noviciado, 1951.

Entretanto, entrou para o noviciado. Qual foi o momento mais marcante dessa primeira etapa na Companhia de Jesus?

Senti-me em casa, como peixe na água. Apesar do esquema de então ser muito fechado e rigoroso, senti-me bem. Para mim, os Exercícios Espirituais foram, de facto, a grande marca no noviciado. Foi a descoberta, a descoberta de Jesus. O P. José Craveiro, que foi o P. Mestre de noviços no meu primeiro ano, foi espetacular, na maneira como nos introduziu na vida de Jesus Cristo.

O que o marca mais na pessoa de Jesus?

Eh! Marca tudo! (risos) Não há muita seleção a fazer, porque, de facto, estamos sempre a aprender com Jesus Cristo. Pelo menos, todos os dias seguindo o evangelho diário, não nos cansamos de contemplar, de ver e de descobrir novas coisas do Senhor. Portanto, o que é marcante em Jesus? É a sua entrega total, a encarnação. Este mistério não dá para entender – como hei-de explicar? –  é este amor incondicional. Deus não desiste de nós, Jesus não desiste de nós, é um amor incondicional que tem por nós e, portanto, isto é viver com esperança sempre.

Houve algo que me marcou muito nos padres jesuítas: não falavam mal dos seus companheiros. Entre todos, preferi a Companhia de Jesus, tendo decidido entrar quando já estava em Lisboa.

Francisco Montellano (Braga) –  Além dos padres mestres, mais algum jesuíta o marcou durante estes tempos iniciais e na sua vida na Companhia?

Éramos tantos lá em casa (Soutelo). A coisa menos simpática que havia era a separação de classes: os noviços, os noviços coadjutores – nomenclatura que hoje está ultrapassada -, os juniores, os irmãos e os padres. E não tínhamos liberdade para lidar com as pessoas. Era estritamente proibido que os noviços falassem com os juniores, que os juniores falassem com os noviços, que os juniores falassem com os padres, que os padres falassem com os juniores… Vivíamos na mesma casa e não nos podíamos relacionar uns com os outros. Havia assim uns dias de festa especiais, então – sim – nessa altura podíamos reunir. Chamava-se até “fusão”: “hoje é dia de fusão” (risos). Mas era um bocado artificial, porque depois não nos conhecíamos, e como não nos conhecíamos, não lidávamos uns com os outros.

Pela positiva, a formação que nos deram era uma formação muito apurada no sentido dos hábitos e das constâncias. Pode parecer muito rígido, mas dava-nos o sentido dos vários aspetos de uma vida em comum. Nós vivíamos num salão dividido por cubículos, portanto, se eu abria a janela do corredor, não tinha que ver só comigo: tinha que ver com os parceiros que estavam ao lado. Voltando à formação, tivemos muito bons professores. No noviciado tivemos como professor de grego o P. Manuel Antunes que era um homem encantador, bom. Latim foi a minha cruz. Nas aulas em Soutelo passavam o tempo a fazer perguntas ao professor para o distrair, de maneira que aquilo era um regabofe e eu não consegui aprender nada. No juniorado, também tivemos bons professores. O P. João Mendes, professor de Literatura, História da Literatura e de História Geral. Era, de facto, um homem muito culto e era chamado o “ministro de classe” dos juniores, ou seja, o nosso responsável que prestava contas perante o Reitor da casa. Depois tínhamos o P. Isidro Pereira, tio do Irmão Avelino Ribeiro, do P. Isidro Silva e do E. Lucídio, já faleceram. Era um ótimo homem. Por fim, o P. Evaristo Vasconcelos, era um grande educador, um homem com visão alargada e que contribuiu muito na minha formação.

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Ordenação sacerdotal

Emanuel Lopes (Coimbra) –  Falando agora do seu estudo de Teologia, como foi viver naquele tempo de mudanças profundas na Igreja?

Eu fiz a Teologia em Granada e a abordagem era um pouco retrógrada, em comparação, por exemplo, com Sant Cugat. Enquanto estava na Teologia  começou o Concílio Vaticano II. À medida que se ia desenvolvendo, íamos sabendo algumas coisas, de uma ou outra reviravolta. Na verdade, a nossa vida na Companhia de Jesus ainda estava muito presa ao antigamente e tinham-se adquirido muitos hábitos monacais, o que fazia da Companhia uma ordem mais voltada para dentro do que para fora, embora todos os padres tivessem ministérios fora. Mas era ao jeito de uma Ordem mais voltada para o interior do que para a vida apostólica, isto sem desconsiderar toda a atividade apostólica dos padres de então e dos missionários, que eram muitos.

O Concílio veio responder a uma circunstância que estava a rebentar pelas costuras, algo que já não se aguentava, que estava completamente fora de contexto. Foi um dom de Deus ter podido vir o Concílio e depois a Congregação Geral 31ª, que vieram dar outra faceta à vida religiosa e à vida da Companhia, sem dúvida. Desde a maneira como se concebe a vida na Companhia – os documentos da CG 31ª são disso um testemunho – e depois também na vida prática e concreta – antes, era tudo feito à base de horários, de campainhas, tínhamos de estar todos no refeitório à mesma hora, todos nos levantávamos à mesma hora. Era tudo muito rigoroso, privilegiavam-se muito estas situações internas, em prejuízo do resto.

O Concílio veio responder a uma circunstância que estava a rebentar pelas costuras, algo que já não se aguentava, que estava completamente fora de contexto.

Eu não vivi como padre nesta situação, a não ser um bocadinho logo no início. Quando veio a GC 31ª, estava no início da minha vida como sacerdote. Tinha feito a Terceira Provação em França, e lá já ninguém andava de batina, muitos andavam de fato eclesiástico. Vindo para Portugal – pensei “vou andar de fato eclesiástico no colégio”, e comecei a minha vida como subdiretor do Colégio, assim. O Reitor uma vez veio ter comigo, lembro-me perfeitamente, e disse: “então e a batina?”, e eu desviei a conversa dizendo “oh padre, lá em baixo um canteiro precisa de ser regado” (risos). Passadas umas semanas, veio o Reitor: “o Padre Provincial quer que o padre use batina”. “Está bem” – tive de usar batina outra vez. Passados oito meses, andavam todos já desgoleirados, sem batina (risos). Aquilo estava mesmo a rebentar… Para terem uma ideia: no noviciado e no juniorado, nós jogávamos voleibol de batina, íamos para a praia de batina. Lembro-me de no Baleal, quando deixamos a batina, veio ter connosco uma senhora velhinha e disse “Ah, senhor padre, ainda bem que os senhores deixaram a batina. Que vergonha os senhores andarem de batina, na praia”. Foi uma época de muita mudança, graças a Deus.

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Missa Nova, em 1964, na Igreja de São Pedro de Dois Portos

Filipe Lima (Roma) –  Qual foi a etapa da formação de que mais gostou?

Foi fazer a Terceira Provação, em França. Fi-la entre a 1ª e a 2ª Sessão da Congregação Geral 31ª (1965-1966), já depois do Vaticano II. Estava-se numa época de descoberta total, e o nosso instrutor deu-nos muito material para lermos. Era um grupo muito heterogéneo: americanos, sul americanos, alemães, franceses, espanhóis, portugueses – eu e o P. João Santos. Nós apresentávamos o programa de formação ao instrutor e ele dava-nos a autorização. Como eu já estava mais ou menos destinado aos colégios, propunha-lhe visitar colégios e tomar conhecimento de várias realidades educativas em França.

Tive outras duas experiências interessantes: uma como capelão do hospital de Saint-Luc, em Lyon, onde tive um contacto forte com doentes queimados; a outra foi atender aos portugueses que estavam numa paróquia de padres operários, o que na altura estava muito na “berra”. Por último, a maneira como foram dados os Exercícios Espirituais de mês. Foi muito interessante porque o instrutor reunia-se connosco à noite, dava a matéria do dia seguinte em apenas 20 minutos e dizia “vocês agora fazem o horário que quiserem, tendo em conta o número de horas de oração específicas, a hora da Eucaristia, as refeições às tantas”, e isto foi muito responsabilizador. Ele depois atendia-nos dia sim, dia não.

 

III – Colégios

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P. Belchior a entregar uma taça no Colégio São João de Brito, na década de 70

Vicente Goes (Coimbra) –  Passando para o mundo dos colégios, para onde recebeu as primeiras missões enquanto padre jesuíta. Tem ideia de quantos anos esteve, ao todo, ao serviço dos colégios?

No São João de Brito estive 22 anos, 12 nas Caldinhas e 6 em Cernache.

Eduardo Pinto (Porto): Nessas três fases bastante diferentes, quais foram os momentos, por um lado, mais exigentes, tendo em conta o que se passava no país e a própria realidade da educação e, por outro, quais foram as maiores alegrias e sucessos que relembra?

Onde estive “mergulhado” na vida colegial foi sobretudo no São João de Brito. Passámos por anos, dos quais hoje dou graças a Deus, mas que na altura foram difíceis. Eu sempre desejei que se mudasse de regime político. E, portanto, para mim o 25 de Abril foi uma bênção. No entanto, aqueles dois, três anos de PREC foram difíceis no Colégio, tanto aí como noutros trabalhos que tive de desenvolver e em que colaborei no Ministério da Educação. Foram situações difíceis, mas ao mesmo tempo muito enriquecedoras.

As relações humanas que passavam não só pelo respeito, mas pelo diálogo, a boa aceitação, para que efetivamente isso se pudesse comunicar aos alunos.

Vicente Goes (Coimbra) –  Num nível mais geral, tendo o P. Belchior sido aluno, magisteriante, professor e diretor dos Colégios da Companhia, como vê a missão dos colégios na educação dos alunos? Qual a sua visão em retrospetiva, mas também atualmente?

Houve uma coisa que sempre procurei: que houvesse muito boas relações humanas no colégio. Primeiro, eu tinha-as com os professores, no sentido de eles terem essa mesma atitude para com os alunos, os pais, entre eles. Sempre privilegiei isso muitíssimo. As relações humanas que passavam não só pelo respeito, mas pelo diálogo, a boa aceitação, para que efetivamente isso se pudesse comunicar aos alunos. O lema “Educar para servir” mostra precisamente esse sentido de transmissão dos valores que se pretendia propor aos alunos. Que saíssem com boa formação, um sentido do outro, para que a sua formação fosse uma mais-valia para o Bem Comum da sociedade. Do ponto de vista religioso também. Na altura foi difícil de concretizar, também porque não havia experiência de como o fazer e era uma altura de transição.

Hoje em dia, é uma riqueza muito grande, e a prova disso foi os Exercícios Espirituais que fui dar há pouco a alguns alunos do Colégio de São João de Brito a acabar o 12º ano e a ex-alunos que estão no início da faculdade, a maior parte animadores dos Campinácios. A maturidade com que fizeram os Exercícios e a forma como procuraram aproveitar a experiência, para mim, foram uma surpresa muito bela e agradável que me diz que o trabalho que se está a realizar em termos de pastoral nos Colégios é muito válido.

Vasco Teixeira (Lisboa) – Enquanto pedagogo, qual acha que é o papel mais importante de um jesuíta num colégio?

Ultimamente, com muito agrado pessoal, tem havido uma aposta na Pastoral dos colégios (e dos campos de férias), o que é muito positivo e contribui muito para a formação dos alunos. É evidente que para que isto possa suceder é importante que a orientação do colégio o proporcione. Não podem ser coisas divergentes: tudo o que se faz na parte letiva tem que ser convergente – e não paralelo ou divergente – com o que se faz no contacto pessoal e pastoral com os alunos. Por vezes, é necessário que a atribuição de alguns cargos do colégio em que há maior contacto com os alunos tenha isso em conta. A pastoral não pode ser um “reino à parte”, deve ser vivida por toda a comunidade educativa, estar integrada na própria vida do colégio.

A pastoral não pode ser um “reino à parte”, deve ser vivida por toda a comunidade educativa, estar integrada na própria vida do colégio.

José Maria Caldeira Ribeiro, (Roma) – Como entende a integração dos colégios católicos no contexto da Educação portuguesa e do Ensino particular?

Após o Concílio Vaticano II, com o espírito do próprio Concílio, a Igreja não tem que ter um lugar especial no que respeita às escolas que tem a seu cargo. Deve-se integrar perante o Estado e perante a Sociedade no contexto das escolas particulares. Eu defendi sempre que as Escolas Católicas, no que têm de específico, devem estar dependentes do Secretariado Nacional das Escolas Católicas, da Conferência Episcopal Portuguesa. Tudo o resto, tem a ver com estarmos integrados com as outras escolas particulares perante o Estado Português e a Sociedade em geral, daí que se tenha fundado a Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular que engloba todos. Eu fui sempre contra a criação de uma Associação de Escolas Católicas porque para isso há o Secretariado Nacional das Escolas Católicas, e não é necessário uma coisa à parte, porque tudo o que seja dividir o ensino particular, que é já tão reduzido em Portugal, é perder força perante o Estado e perante a Sociedade.

Domingos Perloiro, (Roma) – Nesse tempo, muitos jesuítas partiam para missão. Alguma vez se sentiu chamado a seguir o mesmo caminho? E, se sim, para onde?

Estava disposto a ir se me mandassem, como é evidente, mas nunca senti um chamamento especial pela minha maneira de ser, pela minha dificuldade na aprendizagem de línguas, pois para se ser um bom missionário era obrigatório aprender a língua do sítio e isso sinceramente assustava-me. Eu nunca senti esse apelo do Senhor, mas estive sempre aberto. Caso os superiores me enviassem, eu teria muito gosto.

 

IV – Provincialato

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Como Provincial. Instituição de Acólitos no Encontro da Província.,1997.

António Ferreira da Silva (Braga) Como foi Provincial, teve algumas relações especiais. Que memórias guarda dos Padres Gerais com os quais trabalhou (Pedro Arrupe, Kolvenbach, Adolfo Nicolás)?

Com o P. Arrupe não foi como Provincial, mas como jesuíta. Veio a Portugal e hospedou-se no Colégio de São João de Brito e eu estava mais ou menos encarregado de o conduzir dentro do colégio. Tenho por ele uma admiração enorme, e devo-lhe uma grande ajuda que me prestou. Estava nos primeiros anos no colégio e o nosso entusiasmo pouco discernido levava-nos a propor uma quantidade imensa de atividades, numa altura em que o colégio não estava ainda suficientemente estruturado – segundo aquilo que me parecia que se deveria estruturar e que se foi estruturando ao longo dos anos, graças a Deus. A vida de quem estava encarregado pelo colégio era cheia de atividades e não havia tempo para nada. Nessa primeira vez em que o P. Arrupe veio a Lisboa, nós – os padres mais novos – pedimos uma reunião com ele. Fizemos-lhe esta questão: “Padre, temos tido tanto trabalho, as atividades são tantas, as necessidades são tantas, que nós não temos tempo para rezar.” O P. Arrupe – sempre muito simpático – disse: “Olhem, é uma questão de prioridades. Se para ti for importante rezar, tu arranjas tempo para rezar, porque tu arranjas sempre tempo para aquilo que queres.” Foi um soco no estômago que mudou a minha vida, a obrigação de reorganizar o meu horário pessoal e de, com sacrifício de outras coisas, arranjar tempo para a oração pessoal.

O P. Arrupe passou várias vezes em Lisboa. Numa delas, quando falava para Roma – na altura não havia telemóveis, nem internet  – foi ao quarto do reitor para falar e nós ficámos cá fora à espera. Saindo de lá, disse “acabei de me inteirar de que ainda não houve um golpe de Estado na Companhia em Roma” (risos). Um homem bem disposto. Na altura em que havia aquelas tensões na América Latina e Central, em que os jesuítas mais empenhados na vida social eram muito mal vistos pelos bispos, porque os bispos não queriam ondas em países onde as injustiças eram muitas, ele disse uma coisa muito bonita: “se vejo um jesuíta que está empenhado socialmente, mas reza e é um homem de Deus, não tenho problemas e sei que as coisas correm bem. Se não é, isso deixa-me algumas inquietações.”

O P. Arrupe – sempre muito simpático – disse: “Olhem, é uma questão de prioridades. Se para ti for importante rezar, tu arranjas tempo para rezar, porque tu arranjas sempre tempo para aquilo que queres.”

O P. Kolvenbach foi quem me nomeou Provincial. Quando fui nomeado, escrevi-lhe uma carta antes de ser público, dizendo: “já tenho 59 anos, os três últimos provinciais eram todos mais novos que eu quando foram nomeados, e ainda hoje são mais novos, temo pela minha saúde, agora que começam a aparecer as mazelas da idade, e também não me acho com competência e virtude para ser Provincial”. Resumindo a resposta, disse-me: “quanto a ter saúde ou não, isso é da minha responsabilidade, não há problema; quanto a não ter competência, não é a si que lhe compete ver se tem ou não competência; e quanto ao não ter virtude, gabo a sua humildade, mas esteja descansado…” (risos) De maneira que, toca a “amochar” e pronto.

Dei-me sempre muito bem com ele, foi um homem muito humano; muito metido com ele mesmo, muito austero, nunca se deitava numa cama – nunca aquele homem se deitou numa cama! Fazia como os árabes: enrolava-se no cobertor e deitava-se no chão. A bagagem dele era uma pasta: quando o fui receber ao carro, fui à bagageira e pedi ao condutor que me desse a mala do P. Geral, e ele disse: “Não, não. A mala já é aquela que ele leva. Ele não tem mais que aquilo.” Era uma pasta, uma pastinha. (risos) Um homem de uma grande austeridade, de trabalho extraordinário, e ao mesmo tempo um homem de cultura e densidade impressionantes. Tinha uma coisa espantosa que era uma enorme memória. Na primeira vez que falámos, ele é que me dizia: “quanto ao padre fulano tal, não faça caso”, “quanto ao outro, não sei quê”… Conhecia toda a gente.  Disse-me uma vez, quando fomos para Roma juntos, que um dos poucos descansos que tinha era ir para o aeroporto mais cedo para ver as montras (risos). Numa outra viagem, disse-me “tudo o que leio ou ouço não esqueço” e, de facto era assim. Era um perigo! Porque a gente dizia uma coisa menos conveniente e lá ficava… (risos)

Com o P. Nicolas, foi antes de ele ser Geral. Quando ele era Provincial no Japão, eu era em Portugal. Começamos e terminamos no mesmo ano, 1993 a 1999. Tínhamos um assunto em comum e tratávamos dele em comum. Ele veio a Lisboa falar comigo; eu fui ao Japão – por ocasião da minha ida a Macau – por insistência dele, para falar com ele; trocamos imensas cartas e colaboramos muito bem. Fiquei com muito boas recordações dele.

Em%20outubro%20de%202017%20quando%2C%20juntamente%20com%20outros%20antigos%20provinciais%2C%20homenageou%20o%20Ir.%20Avelino%20Ribeiro%20Secret%C3%A1rio%20de%20v%C3%A1rios%20provinciais%20ao%20longo%20de%2050%20anos.
Em outubro de 2017 quando, juntamente com outros antigos provinciais, homenageou o Ir. Avelino Ribeiro Secretário de vários provinciais ao longo de 50 anos.

Bruno Monteiro (Braga) –  Como viveu a Congregação Geral 34ª, na qual representou Portugal como Provincial?

Gostei muito. Uma CG em que se sofreu muito – uns por um motivo, outros por outro – houve situações extremamente difíceis, do género alguém se levantar e dizer: “Este documento não traz nada de novo, não interessa a ninguém, não percebo por que vai sequer a votação.” E isto quando uma comissão e um redator tinham feito um trabalho extenso. O mais difícil para mim foi não saber inglês. Eu dei nota dos vários assuntos em que estava interessado e um deles foi: como é que a Companhia entende a colaboração com os leigos. Houve uma comissão sobre esse assunto na qual me perguntaram “que línguas domina?”, eu respondi “além do português, é o espanhol e o francês”. Acontece que naquela comissão só se falou em inglês e, portanto, passaram todo o tempo – e foi muito tempo – a discutir coisas que eu não entendia, foi um sofrimento muito grande, por não poder intervir, não perceber o que as pessoas estavam a dizer…

Foi uma Congregação com muitos bons resultados, mas muito sofrida. Até mais de meio da Congregação, as pessoas estavam extremamente preocupadas. Foi muito interessante porque chegamos a um ponto de impasse, quando faltava cerca de um mês para o fim da CG – no total, durou quase três meses. Questionava-se se os primeiros documentos tinham qualidade, interesse… De maneira que o P. Geral Kolvenbach resolveu o assunto, dizendo: “vamos ficar três dias parados em oração, em reflexão, a ver que caminho podemos tomar.” O que foi magnífico, e daí para a frente começaram os trabalhos a render.

 

V – Casas de Formação

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Como Superior da Comunidade Pedro Arrupe, 2010

Afonso Espregueira (Santo Tirso)-   O que é mais fácil/gozoso e mais difícil/custoso como superior de uma comunidade de formação (Noviciado e Juniorado)?

O mais difícil foi confrontar as pessoas, ter de chamar a atenção. É sempre uma coisa difícil. De qualquer forma, sempre que em consciência vi que o tinha de fazer, fi-lo. Uma vez alguém me disse – e muito bem – que quando acontece uma coisa estranha a um companheiro, não se deve fazer caso. Deve fazer-se caso – sim – quando é um hábito, não apenas um acontecimento esporádico, a não ser que seja um acontecimento significativo que define a pessoa. Então nessa altura é importante chamar a atenção. Por outro lado, senti-me ludibriado sobretudo por alguns que saíram da Companhia por sua iniciativa. É algo que pesa interiormente quando se deposita confiança e depois se vê que não correspondido. Gratificante é ver as pessoas bem-dispostas, contentes e satisfeitas com a vida de comunidade. E esse ambiente saudável de comunidade é favorecido quando não se está a medir, e vive-se naturalmente.

Rui Silva, sj (Roma) Como vê a evolução da formação na Companhia, dado que foi Superior de casas de formação e Delegado para a formação?
Para mim foi, desde o princípio, diferente e desafiante chegar às casas de formação porque os meus parâmetros de formação eram os que eu tinha tido quando estava em formação. E esses já não se podiam aplicar hoje em dia, porque as situações são completamente diferentes. Isso, por vezes, causou-me uma certa perplexidade: “como é que eu vou responder?”, “o que é que eu vou dizer?”, “como é que vou fazer?”.

Parece-me que hoje em dia (desde que estive na Comunidade Pedro Arrupe), a formação é muito mais enquadrada na época em que se está a viver. É claro que há coisas muito mais positivas, o balanço é muito positivo, havendo uma coisa ou outra que pode deixar uma interrogação – “será isto assim muito positivo?” -, mas a educação é sempre um risco, portanto também a formação é sempre um risco. Nunca há certezas de que “isto é que é certo”, “isto é que é bom”: vai-se tateando e tentando perceber o que é melhor.

Eu passei do Juniorado para o Noviciado e entre uma coisa e outra estive 3 anos só na Comunidade do CAIC. Dentro da Casa de Formação do Noviciado, fiz parte dos formadores, mas nunca estive propriamente integrado na equipa de formação: isso pertence ao Mestre de Noviços e ao Sócio.

Se eu vejo muitas diferenças entre aquilo que vivi na Arrupe e vivo agora no Noviciado? Não vejo grandes diferenças, ou pelo menos substanciais.. Claro que são etapas diferentes: a Arrupe é muito caracterizada pelos estudos, embora não seja só isso; e o Noviciado é sobretudo a formação espiritual e a integração na Companhia.

VI – Acompanhamento e Exercícios

 

Eduardo Amaral (Braga) – Começou a dar exercícios “tarde”. Que descobertas, surpresas, lhe tinha o Senhor reservado nesse mundo (de propor e acompanhar), no qual se revelou “um talentão  escondido”? (expressão do Irmão Candeias).

(Risos) Quem insistiu muito para que orientasse Exercícios Espirituais foi o P. Dário Pedroso. Enquanto estive como diretor do Colégio São João de Brito não tinha possibilidade. Depois pedi – no meio ano sabático que me foi dado – para ir para Comillas, já que os meus estudos de Teologia em Granada não tinham sido muito proveitosos. Fui seguindo cursos, por livre vontade: Cristologia, Sagrada Escritura, entre outros. Comprei por indicação de um dos professores – Ramón Busto – uma série de livros que me deram alguma base, porque custava-me muito ir dar Exercícios Espirituais sem ter uma base sobre Jesus, sobre os Evangelhos. Foi um estímulo grande começar a dar Exercícios, depois parei bastante quando fui Provincial – não era compatível -, sendo que posteriormente voltei a dar, tendo participado no primeiro curso da escola de Exercícios Espirituais dada aqui em Portugal.

O que me alegra mais nos Exercícios é, efetivamente, poder falar sobre o Senhor, dar a conhecer Jesus Cristo.

O que me alegra mais nos Exercícios é, efetivamente, poder falar sobre o Senhor, dar a conhecer Jesus Cristo. Foi o que mais me tocou nos meus Exercícios de Mês, no Noviciado com o P. José Craveiro. Ele era uma pessoa que falava com um grande conhecimento e com uma grande unção sobre Jesus. Ficou-me sempre essa imagem, esse desejo de poder comunicar a outros essa riqueza enorme que é conhecer Jesus. Por outro lado, gosto muito de acompanhar as pessoas durante os Exercícios. E, muitas vezes, o Senhor faz verdadeiros milagres, reviravoltas na vida das pessoas. Não é uma constante, às vezes é um “prosseguir”, mas são situações que nos deixam sempre agradecidos ao Senhor.

Diogo Couceiro (Santo Tirso)O que é que a experiência de acompanhamento espiritual, particularmente nos Exercícios, revelou sobre a sua própria experiência interior de relação com Deus?

Costumo dizer que Nosso Senhor me envia muitos recados através das pessoas que acompanho (risos). Procuro tirar sempre proveito da maneira como as pessoas se expressam, aquilo que dizem. Por vezes, tocam-me profundamente. Dedico muita atenção ao acompanhamento espiritual, e ver o que o Senhor vai fazendo nas pessoas, como as vai trabalhando e ajudando, é um dom que Deus me dá. Muitas vezes, na oração, rezo aquilo que as pessoas disseram e que vai ao encontro daquilo que eu estou a viver. Acho que é um dos ministérios mais importantes da Companhia. Santo Inácio era assim também: não só nos Exercícios Espirituais, mas no acompanhamento, posteriormente. É uma tradição muito longa na História da Igreja, desde os Padres da Igreja. Recentemente li um livro de André Louf, que faz um estudo sobre acompanhamento e direção espiritual: fala dos tempos antigos e das aproximações até aos nossos dias, e diz que a Igreja tem descurado muito este aspeto, com exceção da Companhia de Jesus. Acho que é, de facto, um dos carismas próprios da Companhia. Eu gosto mais de chamar “acompanhamento espiritual”, não gosto de “direção espiritual” – não se enquadra muito comigo.

Costumo dizer que Nosso Senhor me envia muitos recados através das pessoas que acompanho.

Vasco Lucas Pires (Braga)Como é que os ícones surgiram na sua vida? 

Foi por um convite. A senhora com quem trabalho os Exercícios Espirituais e também os Ícones esteve em Taizé durante dois anos, como voluntária, e ia lá sempre passar o verão. Bebeu muito da parte oriental e ortodoxa, através de Taizé, bem como a riqueza iconográfica e espiritual da Igreja Ortodoxa. Ela achava que seria interessante, através dos ícones, ajudar a criar uma mentalidade de abertura ao ecumenismo e de aproximação à Igreja Ortodoxa e à sua espiritualidade. No fundo, nós estamos muito próximos da Igreja Ortodoxa. João Paulo II dizia que a Igreja só era verdadeiramente Igreja se respirasse com os dois pulmões: o do oriente ortodoxo e o católico romano. A alturas tantas, ela convidou-me para fazermos umas sessões e fomos estudando vários assuntos de iconografia. Criámos uma pequena biblioteca sobre o tema e é a partir desse trabalho que temos proposto o “Rezar com os Ícones” (em Soutelo). Por outro lado, esta proposta pretende levar as pessoas a momentos de silêncio, de oração que as prepare para os Exercícios Espirituais.

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Carnaval de 1937

Vasco Teixeira (Lisboa)  Qual é o segredo para podermos manter essa saúde e jovialidade na nossa vida espiritual?

(Risos) Cada um sabe de si. Uma coisa importante é a vida de oração, como jesuítas e também como qualquer religioso. Eu vejo isso no acompanhamento a pessoas religiosas: a vida de oração, o contato com o Evangelho e com o Senhor é, de facto, o suporte da nossa vocação. Se nós, com o andar dos tempos, e muitas vezes sem querer (com o muito trabalho, etc) pomos de parte a oração, pouco a pouco os nossos critérios deixam de ser os do Evangelho e passam a ser os do mundo. Começa-se a perder o sentido profundo da nossa vida, do nosso testemunho como seguidores do Senhor. Como primeiro aspeto, este é o fundamental.

Depois, um jesuíta tem que estar sempre a aprender. Custa-me muito quando ouço as pessoas “sabichonas” – as pessoas que sabem tudo -, porque podem fechar-se.

Depois, um jesuíta tem que estar sempre a aprender. Custa-me muito quando ouço as pessoas “sabichonas” – as pessoas que sabem tudo -, porque podem fechar-se. Há sempre coisas a aprender, cada um com as suas capacidades, mas, por mais capazes e sábios que sejamos, sabemos sempre o que não sabemos, há sempre muita coisa a descobrir. Isto dá-nos um sentido de juventude, de não estarmos fechados, pensando que “na nossa época é que era bom”. Eu acho que não: todos os tempos são bons, há que descobrir a bondade de cada um desses tempos. Eu não sou nada pessimista em relação aos jovens, antes pelo contrário. Por último, cada um de nós tem que descobrir aquilo que o equilibra humanamente.

Na nossa vida temos períodos fáceis, harmoniosos; difíceis; de rotina. Temos que descobrir o que nos equilibra como pessoas, e cada um terá que descobrir, porque não é igual para todos. Um dia tive assim um “click”, numa altura em que estava com um problema bastante grave, num beco sem saída, que depois teve saída – claro. Já estava a entrar em obsessão. A solução foi: dormir mais, rezar mais e fazer exercício físico. Dormir o suficiente para estar equilibrado, rezar mais para me centrar e fazer exercício físico na natureza – que eu gosto. Para outros pode ser ouvir música, pode ser – como um senhor me disse – ver montras, para outros pode ser ler um bom livro, estar em sossego, o que a mim também me ajuda muito. É importante, para conservarmos uma vida pessoal saudável, descobrirmos as duas ou três coisas possíveis que nos podem ajudar e depois ser fiel e mantê-las, não deixar de as fazer.

 

VII – Marcas e sonhos

Gonçalo Pedrosa (Braga)  Que aspetos deve um jesuíta cuidar na sua vida?

Em primeiro lugar, a oração e a relação com Jesus. Depois, um jesuíta tem de cuidar muito dos seus critérios, para que sejam os critérios evangélicos e não os mundanos. Há que estar muito centrado e saber o que isso significa no que respeita sobretudo à pobreza e à obediência. A castidade não necessita de referência especial, mas a obediência e a pobreza necessitam de uma referência especial sobre o que querem dizer evangelicamente, na leitura que Santo Inácio faz sobre estas realidades.

 Um jesuíta é a encarnação não só dos Exercícios Espirituais, mas também das Constituições da Companhia, o que nos dá um perfil de apóstolos.

Rafael Rebordão (Coimbra) – Quais são os seus sonhos para a Companhia hoje?

Uma coisa é para a Companhia a nível universal, e ainda que talvez não tenha os dados todos, temos que olhar para a Ásia, sobretudo para a Índia, como fontes de vida religiosa e de vida da Companhia em grande desenvolvimento. Enquanto o antigo e tradicional Ocidente tem vindo a diminuir, lá está a aumentar. Os caminhos do Senhor a gente não sabe, mas vão através destas circunstâncias. Em Portugal, graças a Deus temos tido esta bênção que são as vossas vocações, e rezo muito para que haja mais. Creio que aqui temos conseguido, ao contrário de alguns outros países – sem estar a criticar os outros, porque cada país sabe de si – apresentarmo-nos com a nossa identidade de jesuítas e com o nosso amor a Jesus Cristo. Por outro lado, outros países exageram no proceder: com o intuito bom de serem muito pluralistas, de não agredirem outras sensibilidades, de se porem em comum, acabam por perder a singularidade da nossa identidade. Porquê? Porque não queriam ofender outros, não queriam ser agressivos com outras culturas. Mas aqui, no meu entender, há uma falsa conceção de diálogo, porque o diálogo faz-se entre identidades bem definidas, não é uma diluição de identidades, pois uma diluição de identidades não dialoga: é uma mescla, uma mistura.

O verdadeiro diálogo pressupõe identidades bem definidas que, com respeito total uns pelos outros, dialogam livremente. E sobretudo para nós, como cristãos e como jesuítas, a pessoa de Jesus não pode ser de maneira alguma diluída.. Temos um património espiritual tão rico e tão maravilhoso, que – no meu entender – é uma falsa posição a diluição da nossa identidade como jesuítas, como sacerdotes e como proclamadores da Palavra de Jesus Cristo. Portanto, vejo em Portugal que esta noção foi sempre algo que mantivemos presente e, talvez fruto da cultura do próprio país, penso que as vocações têm um papel importante para nós, em Portugal e para quem a Companhia queira servir.

António Santos Lourenço (Roma) – Para si, o que é um jesuíta?

Hmm… Isso está nas Congregações Gerais… (risos) Eu acho que é um apaixonado por Jesus Cristo, dentro do carisma de Santo Inácio. E o que Santo Inácio fez nos Exercícios foi uma leitura estruturada dos evangelhos, preparando-nos para encontrar a vontade do Senhor em todas as realidades: a vontade do Senhor nas nossas vidas e na vida concreta. Um jesuíta é a encarnação não só dos Exercícios Espirituais, mas também das Constituições da Companhia, o que nos dá um perfil de apóstolos. É engraçado que os jesuítas, tanto em Lisboa como em Coimbra, eram conhecidos por apóstolos. A “Couraça dos Apóstolos” era a Couraça dos Jesuítas. Ser apóstolo é aquilo que nos define.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.