É sabido que o modo como as questões de Género, abrangidas pela Educação para Cidadania, têm sido tratadas nas escolas origina apreensão em algumas famílias. O caso recente de uma família de Famalicão que declarou objeção de consciência à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, e por isso os dois filhos chumbaram por faltas, reacendeu a polémica.
Neste contexto, surgiu o manifesto “em defesa das liberdades de educação”, que pede o respeito pelo direito e dever das mães e pais escolherem «o género de educação a dar aos seus filhos» e a possibilidade de as famílias declararem objeção de consciência à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Em resposta, apareceram outros manifestos que sublinham a importância desta área curricular, sendo o primeiro “A Cidadania não é uma opção!”
Abriu-se um debate que tem suscitado reflexões relevantes, mas, ao mesmo tempo, contribuído para uma polarização de posições e para uma incapacidade de escutar argumentos. Ora, uma vez que a nossa liberdade se constrói na relação com os outros e que a cidadania implica que sejamos capazes de nos encontrar para juntos contribuirmos para o bem comum, é essencial desenvolver uma efetiva capacidade de escuta do outro, procurando uma verdadeira compreensão dos seus argumentos. É para isto que o Ponto SJ entra neste debate.
Nos próximos dias tentaremos compreender as razões de quem defende a objeção de consciência. Queremos também ouvir quem defende a possibilidade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento ser facultativa. Ao mesmo tempo, importa perceber o enquadramento desta disciplina e as razões de quem entende que a Escola não pode renunciar à “Educação para a Cidadania”. Daremos pistas para a reflexão partindo de diversos pontos de vista e experiências, seguindo o desejo expresso pelo Conselho Permanente da Conferência Episcopal (ver ponto 2).
Este é um caminho exigente se o quisermos fazer numa atitude de verdadeira escuta. Mas só assim seremos mais livres e melhores cidadãos.
Para aprofundar esta questão importa enquadrar a Educação para a Cidadania no atual contexto escolar e no caminho feito até aqui. Nesse sentido é importante perceber como surgiu a disciplina Cidadania e Desenvolvimento.
- No tempo do ministro Nuno Crato entendeu-se que as disciplinas de Área Projeto e Educação Cívica (onde, até aí, eram abordadas as temáticas da Educação para a Cidadania) não eram necessárias e que esta deveria ser transversal. Assim, iniciou-se o processo de construção de Referentes para enquadrar as diversas áreas, como por exemplo: Educação para o Desenvolvimento; Educação Ambiental para a Sustentabilidade; Educação para os Media; Educação para a Saúde. Tais documentos, realizados em colaboração com entidades da sociedade civil e organismos do Estado (e submetidos a consulta pública), estabelecem orientações e objetivos, mas não pretendem ser prescritivos e programáticos, sendo passíveis de ser adaptados à realidade de cada Escola
- O atual Governo, na sequência da definição da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, entendeu implementar a componente curricular de Cidadania e Desenvolvimento, fomentando uma abordagem interdisciplinar e o envolvimento de toda a Comunidade Educativa na sua persecução.
- Atualmente esta componente curricular expressa-se da seguinte forma: no 1.º ciclo transversalmente no Currículo; no 2.º e 3.º ciclos numa disciplina autónoma; no Secundário com contributo de todas as disciplinas e componentes de formação concretizando-se num projecto interdisciplinar desenvolvido pelos alunos e avaliado pelo Conselho de Turma.
- Além disto, a Escola deve desenvolver uma Estratégia própria de Educação para a Cidadania na qual deve ser envolvida a Comunidade Educativa, nomeadamente as Famílias. Dessa estratégia faz parte o modo como se desenvolve a área curricular de Cidadania e Desenvolvimento. A Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento estabelece três grupos de Domínios da Educação para a Cidadania. Estes não são domínios exclusivos da área curricular de Cidadania e Desenvolvimento, mas antes da Educação para a Cidadania no seu todo, pelo que, além da Disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, podem ser abordados noutras disciplinas ou projetos interdisciplinares e influenciar a organização e dinâmicas escolares. Ou seja, não existe um “programa” da disciplina igual para todas as escolas, mas o modo como os diferentes domínios são abordados deverá ser definido localmente e em consonância com a flexibilidade curricular.
Perante a polémica, e com base neste enquadramento, o que importa debater?
1) Como deve a Educação para a Cidadania estar presente na Escola? Deve existir uma disciplina facultativa ou obrigatória? Como funciona e que consequências práticas tem cada opção?
2) Tendo em conta as assimetrias das famílias em Portugal, como desenvolver o sentido crítico e a formação em valores essenciais para o exercício de uma cidadania ativa em todas as crianças e jovens?
3) Quais as implicações, limites e a aplicabilidade da objeção de consciência à disciplina ou a domínios específicos da mesma?
4) Haverá outros modos de garantir a autonomia das famílias, assegurando-lhes o direito de escolha na educação dos filhos?
5) Como assegurar um maior conhecimento e envolvimento das famílias na forma como cada escola e turma abordam estas temáticas?
São estas as questões a que o Ponto SJ procurará responder, pedindo a colaboração de especialistas e acolhendo a opinião dos colaboradores regulares, caso entendam pronunciar-se sobre o assunto. Fazêmo-lo procurando evitar polarizações que impedem o diálogo e cientes de que esta é uma matéria sujeita a aproveitamentos políticos que minam a possibilidade de uma conversa que ajude à construção de um verdadeiro espaço público.
Numa segunda fase, o Ponto SJ debaterá algumas questões subjacentes a esta polémica, como os conteúdos dos guiões que enquadram e orientam o domínio relativo à Igualdade de Género e o modo como enquadram as suas propostas e objetivos. É um tema de enorme pertinência, mas que, abordado de forma isolada e sem a compreensão do que se pretende com a Educação para a Cidadania, impossibilita um diálogo em que as diversas perspectivas antropológicas presentes na sociedade portuguesa possam ser tidas em conta.
Este é um caminho exigente se o quisermos fazer numa atitude de verdadeira escuta. Mas só assim seremos mais livres e melhores cidadãos.
Fotografia: Felicia Buitenwerf – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.