«Secularização» é hoje um conceito de cultura geral, facilmente usado por todos no discurso comum sobre a presença e o papel da religião na sociedade. É algo cuja origem é referida normalmente ao tempo da modernidade, com o surgimento, nas sociedades cristãs europeias, de movimentos de autonomização das sociedades, rejeitando o controlo religioso eclesiástico sobre todos os âmbitos do viver em comum que até aí imperava. Em consequência, assistiu-se, a partir daí, nestas comunidades políticas e respetivas culturas, ao declínio progressivo do papel público da religião, senão da religião mesma. Esta separação aconteceu, historicamente, muitas vezes de forma assaz violenta, e as tensões estão longe de estar definitivamente resolvidas. O uso de «secularização» continua a ser, frequentemente, elemento sinalizador de discursos que não evitam significativa carga apologética, seja a favor ou contra a religião. Assim, quando a carga afetiva se sobrepõe ao rigor concetual, arrisca-se ficar limitado a uma visão simplista ou demasiado restrita do que é «secularização».
Os organizadores deste livro, três professores de filosofia da Universidade da Beira Interior, propõem-se encontrar alguma resposta para a pergunta: “que sentido ainda para a «secularização»? É a «secularização» uma categoria de leitura caduca? Ainda tem futuro? Que futuro?” (p. 9) Num conjunto de dez capítulos, escrito cada um por um autor diferente (português, brasileiro ou espanhol), alarga-se, tanto no tempo histórico, como no recurso a perspetivas de várias disciplinas académicas – filosofia, teologia, direito, sociologia, ciência política – a consideração do alcance mais profundo e dos âmbitos mais vastos da problemática da secularização. A introdução situa o tema e traça os objetivos. E apresenta também um cuidado sumário de cada um dos capítulos. Cada ensaio termina com uma lista significativa de bibliografia. O pensamento de Carl Schmitt é a presença mais frequente (provavelmente até inspiradora do projeto) e, até certo ponto, unificadora do conjunto do livro. Três capítulos centram-se em contributos específicos deste autor.
O uso de «secularização» continua a ser, frequentemente, elemento sinalizador de discursos que não evitam significativa carga apologética, seja a favor ou contra a religião.
A sequência de ensaios que alonga, no tempo, a exploração de problemáticas ligadas à secularização começa no pensamento grego clássico, investigando a legitimação política que tinha lugar através das narrativas referentes aos deuses; passa por Constantino e a forma como ele sustentou a tensão e ambiguidade entre o temporal e o espiritual; e olha para a época de Bonifácio VIII, no seu conflito com Filipe IV de França, clímax das pretensões de domínio do poder espiritual sobre o poder secular, no final do século XIII. Deste mesmo tempo trata o capítulo que analisa as polémicas teológicas medievais sobre a eucaristia e a eclesiologia, à volta da imagem de corpo. Rousseau é também objeto de um ensaio que apresenta a sua proposta de religião civil como fundamento e prenúncio de ideias pós-secularistas. A encerrar o volume, apresenta-se um olhar sobre o pós-secular, centrado na (in)capacidade de mediação da linguagem, através da análise de contributos de Rosenzweig e Lyotard.
Em complemento aos capítulos mais analíticos, de investigação especializada e académica de aspetos do pensamento de um autor, dois ensaios oferecem uma visão mais de síntese, ajudas para apreciações globais e mais genéricas do fenómeno secularização. José Maria Silva Rosa, «Da Teologia Política à Evangélica Secularização» explora o modo como religião e cultura podem encontrar um modo de cooperação respeitando a autonomia, superando a oposição estrita da secularização iluminista, pelo retorno à espiritualidade de Jesus “radicalmente secular” (p. 122) relatada nos Evangelhos, que reforce as linhas da experiência cristã que sustentam a liberdade, nomeadamente as propostas pela abertura mística. Em outro capítulo, Alexandre Franco de Sá, «Um, Dois, Três: Reprodução, cisão e desdivinização como sentidos da secularização», propõe uma categorização do processo de secularização na história do Ocidente em três fenómenos (crescimento da irreligiosidade, perda da influência política da religião e valorização da realidade mundana pelo cristianismo) como ponto de partida para uma reflexão integradora das conexões intrínsecas, incontornáveis nas sociedades ocidentais cristãs, entre religião e política.
Este conjunto de ensaios lança luz sobre dimensões e ligações da problemática da secularização que revelam relações e tensões entre o sagrado e o profano, o temporal e o espiritual, a transcendência e a imanência, a política e a teologia, o público e o privado, as convicções pessoais e o âmbito cívico-jurídico que vão muito para além do simplismo ou da unidimensionalidade que a consideração de senso comum superficial da secularização pode induzir. Revela todo um âmbito histórico e concetual em que desenvolvimentos no campo da teologia se refletiram na política e vice-versa, uma política que seculariza a teologia ou uma teologia que teologiza a política, abrindo a curiosidade para o campo da «teologia política» dum modo muito estimulante para todos os que se interessam por estas duas dimensões da existência humana e as suas articulações.
Fotografia de Joseph Barrientos – Unsplash
Secularização e Teologia Política
Editores: Bento, António; Silva Rosa, José Maria; Domingues, José António
Editora: Documenta, 2019, 204 páginas.
Preço : 16, 20 € – Comprar aqui
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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