Santo Agostinho e Santo Inácio: Raízes espirituais na transição entre Francisco e Leão XIV - Ponto SJ

Santo Agostinho e Santo Inácio: Raízes espirituais na transição entre Francisco e Leão XIV

Apesar dos caminhos distintos, Agostinho e Inácio partilham esta convicção profunda: que o coração — lugar de escuta, discernimento e decisão — é o espaço onde se joga a verdade da vida cristã.

Apesar dos caminhos distintos, Agostinho e Inácio partilham esta convicção profunda: que o coração — lugar de escuta, discernimento e decisão — é o espaço onde se joga a verdade da vida cristã.

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Agora que vivemos uma transição histórica e afetiva entre o papado de Francisco e o de Leão XIV — pois a verdadeira mudança vai para além da simples sucessão histórica de pontífices —, vemos surgir em diversos meios, dentro e fora da Igreja, uma tendência mais ou menos clara de “reclamar” o Pontífice para aquilo que esperam que ele venha a ser para a Igreja e para o mundo. Algo compreensível e, até certo ponto, saudável. Há quem o veja como continuador de Francisco, sobretudo pelo seu empenho nas causas sociais. Outros salientam a clareza do seu discurso, como se nele encontrassem uma correção ou um complemento ao pontificado anterior. Tratam-se de expressões de expectativas, desejos e projeções, que combinam indícios do passado com aquilo a que podemos chamar: a totipotencialidade de Leão XIV — a fecundidade possível de um pontificado ainda por fazer.

Não pretendo, neste artigo, tomar parte ou partido nesta discussão — lícita, embora não isenta de riscos — sobre o perfil que o novo Papa deverá assumir. Em vez disso, proponho-me a olhar para uma continuidade mais profunda do que a mera mudança de rosto na varanda de São Pedro. Desejo, assim, identificar algumas linhas de fundo que unam Francisco, primeiro Papa jesuíta, a Leão XIV, primeiro Papa agostiniano, a partir das suas raízes espirituais.

Nesse horizonte, volto-me para a relação entre dois fundadores cujas inspirações formaram santos e, digamos sem hesitar, papas. Tratam-se de Santo Agostinho de Hipona e Santo Inácio de Loyola. Pretendo mostrar como ambos partilham intuições teológicas e espirituais fundamentais que formaram, espiritual e humanamente, a vida de Jorge Mario Bergoglio e de Robert Francis Prevost. Não se trata de chegar a conclusões definitivas, mas de oferecer um exercício humilde de profundidade. Quem sabe assim possamos descobrir novas pistas para entender melhor as afinidades — e também as diferenças — entre Francisco e Leão XIV, pontífices unidos pelo desejo de renovar a Igreja em fidelidade ao Evangelho e às exigências dos tempos.

 

A centralidade do coração
Apesar de separados por séculos e por contextos culturais profundamente distintos, Agostinho de Hipona e Inácio de Loyola partilham marcas biográficas que os aproximam. O norte de África não é o País Basco, Tagaste é diferente de Guipuzcoa; ainda assim, ambos nasceram em territórios periféricos do Império e viveram transformações interiores que viriam a moldar o coração da Igreja.

As suas famílias eram diferentes: Agostinho teve um pai pagão e uma mãe cristã profundamente devota, que se tornou a sua principal referência de fé. Inácio, por sua vez, teve uma origem cristã tradicional, mas da sua mãe sabemos muito pouco — ao ponto de alguns historiadores sugerirem que essa ausência pode ter influenciado fortemente o seu percurso interior. Se o baptismo de Agostinho foi tardio, no solar dos Loyola o primeiro sacramento era tão natural quanto o nascimento e as montanhas de Izarraitz.

Também no campo da afetividade surgem paralelos inesperados. Agostinho teve um filho, Adeodato, fruto da relação com uma concubina (cf. Confissões 9, 6). De Inácio não há registos de paternidade, mas há quem suponha a possibilidade de uma relação anterior à sua conversão (cf. Thomas Hollweck SJ, El voto de castidad en la Compañía de Jesús, Mensajero-Sal Terrae, 2001). Ambos conheceram a lentidão do processo de integrar a sua sexualidade à luz do Evangelho — não sem mística, luta e paciência. Agostinho confessava ter rezado antes do seu baptismo: “Senhor, torna-me casto, mas não ainda” (Confissões 8, 7); e Inácio, recordando uma visão de Nossa Senhora, escreve que ficou com tal repulsa de toda a vida passada — “especialmente de coisas da carne, que lhe parecia terem desaparecido da alma todas as imagens que antes nela tinha impressas” (Autobiografia 10). Para ambos, a superação do afeto desordenado não começou num esforço moral ou racional, mas na experiência de um prazer maior: a alegria interior que nasce do encontro com Deus. Agostinho referia-se a esta experiência como uma “alegria vitoriosa do amor” — dilectatio victrix —, ou seja, a vitória do Ressuscitado que se torna prazer no coração. Inácio, por sua vez, chamava-lhe “consolação” — pela qual o coração se sente movido a amar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.

Curiosamente, em ambos, este encontro — a que habitualmente designamos ‘conversão’ — brotou de uma leitura. Agostinho lia a carta de São Paulo aos Romanos (Rom 13, 13-14) quando, depois de ouvir uma criança nas vizinhanças da sua casa a cantar “Toma e lê”, decide abrir a Bíblia e o seu coração. O futuro bispo de Hipona relata o momento com estas palavras: “Falava deste modo, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eis que, de repente, ouço da casa vizinha uma voz […] que cantava e repetia muitas vezes: ‘Toma e lê, toma e lê’ […] Reprimindo o ímpeto das lágrimas, levantei-me […] e li o primeiro capítulo que encontrei” (Confissões 8, 12). Inácio, por sua vez, foi conduzido à leitura pela sua cunhada, Madalena de Araoz, que, por falta de livros de cavalaria, lhe ofereceu a Legenda Áurea e a Vida de Cristo de Ludolfo da Saxónia. Nesses textos, o antigo cavaleiro foi confrontado com o desejo de uma vida semelhante à dos santos, dando início a uma mudança afetiva que o conduziria ao dom do discernimento dos espíritos: “Notava […] que de uns pensamentos ficava triste e de outros alegre, e pouco a pouco veio a conhecer a diversidade dos espíritos que se agitavam: um do demónio e o outro de Deus” (Autobiografia 8).

Ambos os santos reconhecem, assim, o papel decisivo do afeto e do coração no caminho da fé. Agostinho é o teólogo do coração inquieto: “Porque nos fizestes para Vós, e o nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em Vós descanso” (Confissões 1, 1). E ainda: “Tarde Vos amei, Beleza sempre antiga e sempre nova, tarde Vos amei! Eis que estáveis dentro de mim, e eu lá fora, a procurar-Vos!” (Confissões 10, 27). Agostinho reconhece, deste modo, que o ser humano é habitado por dois dinamismos: um de saída (exitus) e um de regresso e integração (reditus). Para entrar ou regressar a si, ao próprio coração (redit in cor), é necessário abandonar a auto-referencialidade superficial — uma espécie de egoísmo inerte — e sair de si (exitus), para poder repousar na verdade de quem se é e de quem Deus é.

Inácio, por sua vez, não fala tanto do coração, mas do “sentir”. Nos Exercícios Espirituais, afirma: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e gostar as coisas internamente” (EE 5). Até ao final da sua vida, costumava terminar as suas cartas com a frase: “para sentirmos a sua santíssima vontade e inteiramente a cumprirmos”. Tal era a frequência com que o fazia, que alguns autores afirmam que esta expressão integrava, de facto, a sua assinatura. Mas que sentir é este? Muito próximo de Agostinho, Inácio entende o sentir como um modo afetivo de conhecer. Por um lado, trata-se daquilo a que Michel de Montaigne chamaria in-te-leggere — a capacidade de perceber interiormente o impacto afetivo de uma informação ou experiência. Por outro, seguindo Agostinho, é também a graça de sair de uma certa apatia espiritual — a incapacidade de sentir — diante dos sinais da vontade de Deus em nós. Essa sensibilidade renovada (redimida, reditus) corresponde a uma verdadeira liberdade interior, isto é, a capacidade de nos colocarmos a uma distância afetiva do nosso próprio querer e interesse (sair de si, exitus). É a partir desse conhecimento existencial das coisas, marcado pela sua experiência de Deus mas também pelo pensamento de Agostinho, que Inácio desenvolve a prática sapiencial do discernimento dos espíritos, distinguindo no coração-sentir os sinais afetivos que vêm do alto — os frutos do Espírito (cf. Gal 5, 22) — daqueles que nos afastam do fim para que somos criados. É impossível compreender esta percepção inaciana sem reconhecer a sintonia com a experiência agostiniana de termos sido criados para o repouso cordial em Deus.

Apesar dos caminhos distintos, Agostinho e Inácio partilham esta convicção profunda: que o coração — lugar de escuta, discernimento e decisão — é o espaço onde se joga a verdade da vida cristã. Por isso, não surpreende que a teologia do coração tenha marcado a tradição agostiniana e que a devoção ao Coração de Jesus se tenha tornado tão central na Companhia de Jesus. Também não espanta que a última encíclica do Papa Francisco, Dilexit nos, e o escudo do Papa Leão XIV, revelem como esta herança espiritual permanece viva no coração da Igreja.

 

O mistério da Trindade e o lugar do ser humano

Uma das afinidades espirituais mais marcantes entre Santo Agostinho e Santo Inácio de Loyola revela-se na forma como ambos se deixaram fascinar pela Trindade — não como um conceito abstrato, mas como chave para compreender simultaneamente o mistério de Deus e a nossa condição humana. O vínculo entre estas duas realidades — Deus trino e o ser humano — reside precisamente na afirmação bíblica de que somos criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27). Para Agostinho e Inácio, esta não é uma simples categoria teológica ou especulativa, mas uma marca dinâmica inscrita no mais fundo do nosso ser. Ser imagem de Deus significa estar orientado para a comunhão e para o amor, porque Deus é comunhão e amor. Por isso, quanto mais vivemos em conformidade com esta imagem — na caridade, na escuta, na liberdade interior —, mais o nosso afeto encontra repouso, alegria e consolação. E, inversamente, quanto mais nos afastamos dessa forma divina que nos habita, mais experimentamos a inquietação, a dispersão e a tristeza. O coração humano, para ambos os santos, pode ser entendido como um espelho vivo da nossa adesão à imagem divina que somos: reverbera em paz ou em angústia, em contentamento ou em aridez, segundo o grau de sintonia existencial com Aquele que nos criou para Si. Assim, contemplar a Trindade não é um exercício de evasão, mas uma via para reencontrar a verdade da nossa identidade e orientar afetivamente a nossa vida segundo o selo de amor que nos dá origem.

Em De Trinitate, Agostinho não se limita a uma exposição doutrinal sobre Deus Uno e Trino. Oferece, antes, um modo de ver o ser humano à luz do mistério trinitário. Como imagem de Deus, cada pessoa guarda em si sinais dessa comunhão divina: uma espécie de semente trinitária que, para Agostinho, esboça já uma antropologia teológica e psicológica. Assim, olhando para a mente humana, ele propõe uma analogia notável. A saber, quando pensamos em algo ausente, geramos para nós mesmos um conhecimento acerca de nós (notitia sui). Esta auto-consciência não implica a existência de duas mentes. Quando a mente se contempla a si mesma, e dialoga consigo própria — como quem se interroga: “pergunto-me se…” — pode crescer na mente um amor sui, uma aceitação amorosa dessa consciência do que sou. Não são três mentes que estão em jogo, apesar da diversidade das operações. Por analogia, Agostinho compara a mente ao Pai, a imagem ou conhecimento da mente ao Filho encarnado, e o amor entre ambos ao Espírito Santo. Assim como estas três operações não fragmentam a mente, também a Trindade é uma só: três pessoas, um só Deus (Cf. De Trinitate, livro XIV). Desta profunda reflexão brota uma intuição decisiva: conhecer Deus é tocar na própria vocação humana; e olhar o ser humano é vislumbrar os vestígios de Deus na criação. A vida trinitária, por isso mesmo, não é uma realidade paralela à nossa humanidade, mas desejo amoroso de comunhão, encarnação e diálogo, fazendo-se presença concreta na história.

Inácio, com um estilo mais prático, experiencial e menos especulativo, partilha este fascínio pela Trindade. Na Autobiografia, descreve como procurava, com devoção e criatividade, encontrar analogias para compreender melhor o mistério trinitário. Em Manresa, comparou a Trindade a três teclas de um instrumento que, juntas, produzem um único acorde em harmonia. Esta contemplação levou-o às lágrimas durante uma procissão, e deixou nele uma impressão espiritual duradoura: “Nunca pôde reter as lágrimas até à hora de comer, nem depois de comer podia deixar de falar senão na Santíssima Trindade. E isto com muitas comparações e muito diversas, e com muito gozo e consolação, de tal modo que em toda a sua vida lhe ficou esta impressão de sentir grande devoção, ao fazer oração à Santíssima Trindade” (Autobiografia 28). Também nos Exercícios Espirituais, Inácio convida o exercitante a contemplar como a Trindade olha o drama da história humana e decide que a segunda Pessoa haveria de encarnar no seio de Maria. O seu ponto de partida não é apenas a Trindade como chave de leitura da alma humana (Cf. EE 50-52) — como em Agostinho — mas a Trindade como origem da missão de Cristo e da Igreja no tempo (Cf. EE 101-109). A partir de Deus, Inácio lança-se para a história, compreendida como processo de redenção. Por isso, no seu Diário Espiritual, o discernimento sobre o modo concreto de a Companhia de Jesus viver a sua pobreza em função da missão tem como pano de fundo a experiência espiritual que Inácio faz da Trindade.

Encontramos em ambos um mesmo dinamismo: a contemplação do mistério de Deus gera um movimento de descida, de encarnação e de comunicação íntima e histórica. Seja pela escrita densa de Agostinho, seja pela oração e pelo encontro que marcavam a vida de Inácio, há neles o desejo comum de anunciar quem é Deus e quem somos nós à luz do Seu amor.

Apesar desta diferença de orientação, encontramos em ambos um mesmo dinamismo: a contemplação do mistério de Deus gera um movimento de descida, de encarnação e de comunicação íntima e histórica. Seja pela escrita densa de Agostinho, seja pela oração e pelo encontro que marcavam a vida de Inácio, há neles o desejo comum de anunciar quem é Deus e quem somos nós à luz do Seu amor. Ambos mostram, portanto, que a moral é uma resposta segunda em relação ao encontro primordial com o amor trinitário que se revelou em Jesus e se prolonga na Igreja segundo o Espírito. É desta experiência afetiva da Trindade que nascem a resposta crente, o empenho da vontade, a moral e o serviço.

Para Agostinho e Inácio, conhecer Deus — e, de modo particular, entrar na vida de oração — é também aprender a olhar o ser humano na sua verdade e mistério. A oração, portanto, não é fuga mas fonte e critério de discernimento. É a partir da escuta de Deus que se discerne como agir, como amar, como servir. A vida humana, com os seus dramas, dúvidas, alegrias e buscas, não é alheia ao mistério do Deus trinitário. É, pelo contrário, o lugar onde Deus quer encarnar a Sua presença. Esta visão atravessa, como um fio de ouro, as raízes espirituais de Francisco e de Leão XIV, visto que ambos procedem de duas espiritualidades profundamente trinitárias e voltadas para a encarnação, conscientes da dimensão pastoral e encarnatória da escuta e da oração.

 

O coração livre como semente de transformação social

Um dos traços mais significativos que aproxima Santo Agostinho de Hipona e Santo Inácio de Loyola é o seu empenho incondicional pela construção da Cidade de Deus em contextos históricos profundamente turbulentos. Agostinho exercia o seu ministério no momento em que a queda do Império Romano do Ocidente se tornava evidente; Inácio, por sua vez, via a unidade europeia colapsar, sob o peso das tensões entre Reforma e Contra-Reforma. (Podemos aqui considerar o tempo histórico de Francisco e Leão XIV.) Agostinho e Inácio partilham a convicção de que, para discernir com verdade o projeto civilizacional que desejamos viver, é necessário ordenar o amor — o ordo amoris — que nasce do amor a Deus e ao próximo, bem como de um justo desprezo ou não absolutização de si mesmo (contemptum sui) — expressão que Inácio, influenciado não só por Agostinho, traduz por “indiferença”. Este termo, tão diferente do modo como hoje usamos esta palavra, não significa frieza, mas antes liberdade interior: a capacidade de não se deixar dominar pelo próprio apetite ou interesse (individual ou nacional, etc), a fim de escolher o que mais conduz à maior glória de Deus e ao bem comum ou mais universal.

Neste sentido, o cuidado do coração, que em ambos é uma constante, não corresponde a uma fuga do mundo (fuga mundi), como propôs — com inspiração discutível — a chamada “opção beneditina” em tempos recentes. Contra esta tentação de purismo a-histórico, tão próxima do donatismo que Agostinho combateu com firmeza [nota 1], o cuidado do coração é, para ambos, a consciência lúcida de que a forma como amamos determina o tipo de humanidade que somos, o modo como nos relacionamos e como habitamos socialmente o mundo. Como sintetiza Agostinho com precisão: “Duas cidades foram formadas por dois amores” (Cidade de Deus 14, 28).

Não sabemos com certeza se Inácio terá lido esta afirmação diretamente de Agostinho, mas deparou-se certamente com palavras praticamente idênticas na Legenda Aurea, também conhecida como Flos Sanctorum, lida durante a sua convalescença em Loyola. Assim resumia a obra A Cidade de Deus: “o livro [de Sto Agostinho] tratava da história de duas cidades e dos reis dessas duas cidades — Jerusalém e Babilónia. Porque Cristo é o rei de Jerusalém e Satanás o rei da Babilónia. Dois amores contrários deram origem a estas cidades. A cidade de Satanás foi edificada sobre o amor de si mesmo, levado até ao desprezo de Deus; a cidade de Cristo foi edificada sobre o amor de Deus, levado até ao desprezo de si mesmo.” Para quem conhece os Exercícios Espirituais, a proximidade com a meditação das Duas Bandeiras é evidente: nela, Inácio convida o exercitante a escolher entre dois amores opostos, pedindo a graça de aderir ao amor que Cristo propõe — um amor tecido de pobreza, humilhações e, por isso mesmo, de humildade — em contraste com o amor desordenado e maligno que conduz à soberba, começando pela riqueza e pela honra (Cf. EE 136-148).

Neste horizonte, torna-se claro que, tanto para Agostinho como para Inácio, a espiritualidade do coração não é paralela à transformação social, mas o seu fundamento mais profundo. A verdadeira transformação começa no coração e irradia para as estruturas. Hugo Rahner SJ expressa esta proximidade com nitidez na sua obra The Spirituality of Saint Ignatius of Loyola:

“Inácio estudou e aplicou a Regra de Santo Agostinho com especial cuidado e atenção, sem dúvida porque venerava, nas obras deste grande Padre da Igreja, o Agostinho que, com a sua discreta caridade, se tinha tornado inteiramente homem da Igreja. Em Agostinho, a teologia da Cidade de Deus, escrita a partir das profundezas da sua vida interior, deu origem a um amor devoto mas ao mesmo tempo lutador pela Igreja peregrina. Em Inácio encontramos essa mesma alegria ardente — e ao mesmo tempo serena — de combater pela Igreja sob a bandeira de Cristo, seu Comandante Supremo: uma alegria que só se explica por uma graça especial de discernimento dos mistérios de Deus e da Igreja, recebida em Manresa. Agostinho e Inácio encontraram Deus não na doce solidão de uma vida interior meramente subjetiva, mas no campo de batalha de ‘mil cuidados pela Igreja’; e foi essa ‘solicitude por todas as igrejas’ (cf. 2 Cor 11,28) o critério pelo qual julgavam a autenticidade dos diferentes espíritos.”

Torna-se claro que, tanto para Agostinho como para Inácio, a espiritualidade do coração não é paralela à transformação social, mas o seu fundamento mais profundo. A verdadeira transformação começa no coração e irradia para as estruturas.

A ideia de que Francisco e Leão XIV são homens de oração e, ao mesmo tempo, atentos às grandes causas sociais, não pode ser entendida como uma justaposição de dois interesses. Na verdade, oração e justiça social são, para ambos, duas faces de uma única realidade: a vida cristã como resposta integral-histórica ao amor do Deus encarnado. Nas encíclicas de Francisco sobre a Fraternidade (Fratelli Tutti) e a Ecologia (Laudato Si), muitos viram um deslocamento do religioso ao campo do secular. Uns acusaram-no de secularismo; outros aplaudiram o novo enfoque, como se fosse uma superação de pontificados anteriores. Mas esqueciam-se de que o Papa partia da convicção evangélica — partilhada por Agostinho e Inácio — de que o cuidado do coração implica a transformação do mundo e das culturas à luz do Evangelho (cf. Mt 5,8; Lc 6,45; Rom 12,2).

Na verdade, não há verdadeira justiça sem espiritualidade. E não há espiritualidade autêntica sem implicações sociais. Agostinho e Inácio lembram-nos que o cuidado do coração não é evasão, mas fermento de mudança. Não sabemos, ainda, que caminho Leão XIV seguirá, mas é legítimo esperar que a ligação entre transformação interior e transformação social marque também o seu ministério. Não sabemos em que se virá a tornar este pontificado, mas as suas raízes parecem apresentar elementos de uma sintonia espiritual profunda com Francisco. Uma ligação que não remete apenas para dois grandes místicos da Igreja mas para o coração do Evangelho de Cristo. Parafraseando São Paulo (Cf 1 Cor 3, 6): Agostinho plantou, Inácio podou e regou mas Deus é que dá o crescimento.

 

[Nota 1] –  Para aprofundar, ver também: Andreas Gonçalves Lind SJ, Qual é a tarefa dos cristãos na sociedade de hoje? A “opção Bento” e a heresia donatista (Unisinos, 20 de fevereiro de 2018)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.