Artigo publicado na edição de janeiro da Revista Brotéria.
A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo.
Quando o termo sinodalidade é aplicado à Igreja, não se pretende designar um mero processo de tomada de decisões. Não se trata de uma tomada de decisão colaborativa que revê alternativas, faz escolhas, distribui responsabilidades e implementa programas. Em vez disso, a “sinodalidade” expressa um traço fundamental da identidade eclesial: a sua dimensão comunitária primária, a sua missão evangelizadora essencial, colocada sob a orientação do Espírito Santo.
Como manifestação de comunhão que tem origem no mistério do Deus uno e trino, a Igreja apresenta-se e realiza-se ao reunir-se como “Povo de Deus” que caminha em conjunto. Poderíamos dizer que a sinodalidade é a forma pela qual se historicizam a sua vocação originária e a sua missão intrínseca: reunir todas as pessoas da terra, de todos os tempos e épocas, para torná-las participantes da salvação e da alegria de Cristo.
Em várias ocasiões, o Papa Francisco destacou como a sinodalidade funda, modela e fortalece tanto a vida da Igreja como o testemunho e o serviço que ela é chamada a prestar à família humana: «Caminhar juntos é a via constitutiva da Igreja; a peculiaridade que nos permite interpretar a realidade com os olhos e o coração de Deus; a condição para seguir o Senhor Jesus e ser servos da vida neste tempo ferido. Fôlego e passo sinodal revelam o que somos e o dinamismo da comunhão que anima as nossas decisões»[1].
A sinodalidade – “via”, “peculiaridade”, “condição”, “fôlego” para a vida na fé – é o modus vivendi et operandi com o qual a Igreja prepara todos os seus membros para a corresponsabilidade, valoriza os seus carismas e ministérios, intensifica os laços de amor fraterno.
Para o Papa Francisco, a reforma da Igreja acontece «a partir de dentro», ou seja, em virtude de um processo espiritual que muda as formas e renova as estruturas. Baseando-se na herança da espiritualidade inaciana, Francisco enfatiza a conexão íntima entre a experiência interior, a linguagem da fé e a reforma das estruturas[2]. Iniciar processos de conversão é, portanto, uma prática radical de governo e a única garantia real de que a estrutura institucional da Igreja possa empreender e prosseguir com sucesso o caminho comunitário do seguimento de Jesus, isto é, a sinodalidade. A intuição é esta: não só o Espírito quer que tomemos boas decisões, mas também nos garante a sua ajuda, através do processo de sinodalidade, para alcançar este objetivo.
Nos documentos do Concílio Vaticano II não encontramos nenhum vestígio do termo sinodalidade que, embora represente um neologismo e seja o resultado da reflexão teológica posterior, autenticamente traduz e sintetiza, porém, a eclesiologia de comunhão expressa pelo Concílio. A Igreja dos primeiros séculos, de facto, enfrentou habitualmente as questões cruciais a que estava sujeita como comunidade à escuta do Espírito.
Recuperar, antes de mais, as instâncias do ensinamento conciliar sobre a Igreja, será útil para mostrar como a sinodalidade representa um ressourcement, um retorno às fontes, ou seja, à modalidade de governo presente na Igreja desde as suas origens.
Em virtude do batismo, todos os membros da Igreja recebem a «dignidade de filhos de Deus» e a sua participação ativa na missão da Igreja deve ser considerada como indispensável e necessária.
A Eclesiologia da Lumen Gentium: Pressuposto da sinodalidade
Antes do Concílio, favorecia-se um modelo societário de eclesiologia, que tomava a Igreja como a societas perfecta. O Concílio regressou às categorias bíblica e patrística. Na Lumen gentium (LG), é possível reconhecer os pressupostos teológicos que fundamentam a concetualização pós-conciliar da sinodalidade. A Igreja universal é aí apresentada como «sacramento» (LG 1) e «Povo de Deus» (LG 4).
Nesse sentido, um dos aspetos mais inovadores da LG é dado pela recuperação da doutrina sobre o «sacerdócio comum dos fiéis» (LG 10), pela qual se volta a compreender a importância central dos leigos na vida da Igreja. Em virtude do batismo, todos os membros da Igreja recebem a «dignidade de filhos de Deus» e a sua participação ativa na missão da Igreja deve ser considerada como indispensável e necessária. Com estas declarações, o Concílio acabou definitivamente com aquele costume plurissecular que tinha levado a uma distinção de facto entre uma hierarquia docente e um laicato discente[3]. Muitos leigos sentiram-se encorajados a refletir sobre a própria vocação de um modo completamente novo.
Agraciados com a dignidade da filiação, e com o dom e a responsabilidade de anunciar o Evangelho a todos, os leigos são chamados a participar no governo da Igreja segundo as funções, os papéis e os modos que lhes são próprios. O Espírito, de facto, derrama carismas e graças especiais sobre eles, os quais «os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja» (LG 12). Também se especifica que eles «têm o direito, e por vezes mesmo o dever, de expor o seu parecer sobre os assuntos que dizem respeito ao bem da Igreja» (LG 37).
O Espírito Santo é o princípio da unidade, que reúne todos os membros da Igreja – diferentes no ministério, na vocação e na missão – num único sujeito dinâmico. A Eucaristia é «fonte e centro» da comunidade crente (cf. LG 11; Sacrosanctum Concilium [SC], n. 10), na qual os muitos grãos de trigo se tornam um só pão. O Vaticano II indica, portanto, na ação do Espírito que vivifica a Igreja por meio da graça sacramental e, de modo particular, no momento da celebração eucarística, a realidade originária e a fonte da qual surge o “nós” eclesial.
Duas outras clarificações permitem apreender o significado revolucionário da Lumen gentium para a posterior compreensão da sinodalidade como “estilo” eclesial, isto é, o estilo correspondente à Igreja de Jesus Cristo.
A primeira diz respeito ao sensus fidei do povo de Deus (cf. LG 12), isto é, aquele instinto[4] sobrenatural para a verdade que se manifesta na totalidade dos fiéis e que lhes permite julgar espontaneamente a autenticidade de uma doutrina de fé e convergir na adesão a ela ou à sua expressão na prática cristã[5]. Visto que esta convergência (consensus fidelium) constitui um critério indispensável de discernimento para a vida da Igreja, representa um recurso válido para a sua missão evangelizadora.
A segunda clarificação diz respeito à sacramentalidade do episcopado (cf. LG 21). O Concílio ensina que, com a consagração episcopal, é conferida a plenitude do sacramento da Ordem, bem como os ofícios de santificação, ensino e governo (a unidade da potestas sacra). Esses ofícios, porém, pela sua natureza, não podem ser exercidos senão em comunhão hierárquica com a cabeça e com os membros do colégio. Devido ao caráter colegial da ordem episcopal, a unidade dos bispos constitui uma realidade universal que antecede a diakonia às Igrejas individuais, ou seja, o facto de se ser constituído pastor de uma determinada diocese[6].
O poder colegial supremo sobre toda a Igreja pode ser exercido pelos bispos, juntamente com o Papa, tanto na forma solene de um Concílio ecuménico, como em atividades em diferentes contextos dispersos por todo o mundo.
É necessário, portanto, superar os obstáculos representados pela falta de formação e os efeitos daninhos daquela mentalidade clerical que corre o risco de relegar os fiéis leigos a um papel subalterno, aumentando os espaços nos quais eles se possam expressar e partilhar a riqueza da sua experiência como discípulos do Senhor.
Sinodalidade e colegialidade na Igreja: A pirâmide invertida
A renovada consciência eclesial sobre a sacramentalidade do episcopado e a colegialidade representa uma premissa teológica fundamental para uma adequada hermenêutica teológica da sinodalidade. De facto, permite-nos estabelecer como o conceito de sinodalidade é mais amplo do que o de colegialidade: enquanto a sinodalidade implica a participação e o envolvimento de todo o Povo de Deus na vida e missão da Igreja, a colegialidade refere-se à forma específica em que é ela definida por meio do exercício do ministério dos bispos cum et sub Petro.
O ministério episcopal combina a dimensão particular, relativa à parcela do Povo reunida numa Igreja local, à dimensão universal, relativa ao exercício do ministério em comunhão com os outros bispos e com o Papa. Portanto, toda a manifestação efetiva de sinodalidade requer o exercício do ministério colegial dos bispos.
Desenvolvendo as implicações da relação analógica entre o mistério da Trindade imanente e a forma ecclesiae, propostas no prólogo da Lumen gentium (cf. LG 2-4), a teologia pós-conciliar destacou como a sintaxe agápico-trinitária regula a vida da Igreja. A relação dinâmica do Pai, Filho e Espírito Santo na Trindade Divina – perichorisis (em grego) ou circumincessio (em latim) – reflete-se e expressa-se na estrutura e vitalidade da Igreja, dispondo-a a explicitar a sua essência comunitária por meio daquela “dinâmica pericorética” que leva o nome de “sinodalidade”.
Francisco usa o termo «sínodo-sinodalidade» em sentido amplo, isto é, com a intenção de traduzir a ortodoxia teológica em ortopráxis pastoral. Sínodo não expressa exclusivamente aquela estrutura eclesial que pertence ao governo colegial, mas é a forma visível da comunhão, o caminho da fraternidade eclesial, na qual todos os batizados participam e para a qual contribuem pessoalmente. Uma Igreja que, na sua tensão para a universalidade, pretende proteger a diversidade das identidades culturais, julgando-as como uma riqueza indispensável, não pode deixar de assumir a sinodalidade como um trait d’union entre a unidade do corpo e a pluralidade dos membros.
A corresponsabilidade de todo o Povo de Deus pela missão da Igreja requer a adoção de processos consultivos que tornem mais participativas a presença e a voz dos leigos.
Tomando a perspectiva eclesiológica do Vaticano II e em conformidade com o ensinamento da Lumen gentium, o Papa Francisco afirma que «o caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio»[7]. Ele salienta que a sinodalidade «oferece-nos o quadro interpretativo mais apropriado para compreender o próprio ministério hierárquico» e delineia a imagem de uma Igreja que, como «numa pirâmide invertida», em que «o vértice encontra-se abaixo da base» harmoniza todos os que nela se incluem: o Povo de Deus, o Colégio Episcopal, o Sucessor de Pedro[8].
Na Evangelii gaudium (EG), Francisco deu um novo impulso à doutrina do sensus fidei fidelium (cf. EG 119), argumentando que o caminho da sinodalidade representa um pressuposto indispensável para dar à Igreja um renovado impulso missionário: todos os membros da Igreja são sujeitos ativos de evangelização e “discípulos missionários” (EG 120).
Os leigos representam a grande maioria do Povo de Deus, e muito se pode aprender com a sua participação nas várias expressões da comunidade eclesial: piedade popular, empenho na pastoral comum, competência em diversas áreas da vida cultural e social (cf. EG 126). E se o estatuto e a experiência da vida clerical, dão origem, por vezes, a uma série de preconceitos inconscientes, devemos esperar que um laicado devoto, como observador atento e amoroso, ajude a tomar consciência deles. São João Henrique Newman respondeu a quem o questionava sobre o papel dos leigos: «A Igreja pareceria uma tolice sem eles»[9].
É necessário, portanto, superar os obstáculos representados pela falta de formação e os efeitos daninhos daquela mentalidade clerical que corre o risco de relegar os fiéis leigos a um papel subalterno, aumentando os espaços nos quais eles se possam expressar e partilhar a riqueza da sua experiência como discípulos do Senhor (cf. EG 102).
A corresponsabilidade de todo o Povo de Deus pela missão da Igreja requer a adoção de processos consultivos que tornem mais participativas a presença e a voz dos leigos. Não se trata de instituir uma espécie de “parlamentarismo laical”, já que a autoridade do colégio episcopal não depende de uma delegação por parte dos fiéis pela via de um processo eleitoral; apresenta-se antes como um carisma particular com o qual o Espírito dotou o corpo eclesial. Isto significa fazer pleno uso dos recursos e estruturas que a Igreja já possui.
A partir desta perspectiva, a 18 de setembro de 2018, com a Constituição Apostólica Episcopalis Communio (EC)[10], o Santo Padre traduziu em norma todas as passagens que caracterizam o caminho de uma «Igreja constitutivamente sinodal». Em relação ao Vaticano II, a Constituição Apostólica marca um progresso sob a direção do Espírito: se devemos reconhecer ao Concílio o mérito de ter recuperado os sujeitos eclesiais e a sua natureza ministerial, este documento traduz os argumentos teóricos em prática eclesial. A pedra angular é a escuta: toda a prática sinodal «começa por escutar o povo» de Deus, «continua escutando os pastores» e «culmina na escuta do Bispo de Roma, chamado a pronunciar-se como “Pastor e Doutor de todos os cristãos”»[11].
Visto que a colegialidade está ao serviço da sinodalidade, o Papa Francisco afirma que «o Sínodo dos Bispos deve tornar-se cada vez mais um instrumento privilegiado de escuta do Povo de Deus… Embora na sua composição se configure como um organismo essencialmente episcopal, o Sínodo não vive separado do resto dos fiéis. Pelo contrário, é um instrumento adequado para dar voz a todo o Povo de Deus» (EC 6). Por isso, «é de grande importância que, mesmo na preparação das Assembleias sinodais, receba especial atenção a consulta de todas as Igrejas particulares» (EC 7).
Este modo de proceder corresponde ao «discernimento comunitário», prática tão cara ao Papa Francisco, por ele muitas vezes mencionada, inspirando-se na sua própria espiritualidade inaciana: é prestar atenção à vontade de Deus na história, na vida, não de uma pessoa específica, mas de todo o Povo de Deus.
Esta consulta aos fiéis deve ser seguida de «discernimento por parte dos Pastores»: atentos ao sensus fidei do Povo de Deus, eles devem saber intuir as indicações do Espírito e distingui-las «dos fluxos frequentemente mutáveis da opinião pública» (EC 7).
Este modo de proceder corresponde ao «discernimento comunitário», prática tão cara ao Papa Francisco, por ele muitas vezes mencionada, inspirando-se na sua própria espiritualidade inaciana: é prestar atenção à vontade de Deus na história, na vida, não de uma pessoa específica, mas de todo o Povo de Deus. Embora tal aconteça no coração, no interior, a sua matéria-prima é sempre o eco que a realidade reverbera no espaço interior. É uma atitude interior que nos impulsiona a estarmos abertos ao diálogo, ao encontro, a encontrar Deus onde quer que se encontre, e não apenas em parâmetros predeterminados, bem definidos e encerrados (cf. EG 231-233).
A Episcopalis Communio estrutura a práxis sinodal em três fases, ou seja, preparação, discussão e implementação, e cada Sínodo celebrado durante o atual pontificado – sobre a família (2014, 2015), sobre os jovens (2018), sobre a Amazónia (2019) – tem tentado pô-las cada vez mais em prática. Como observou o próprio Santo Padre, «os Sínodos que se realizam a cada dois ou três anos aqui em Roma são mais livres e dinâmicos, pois oferecem mais tempo para uma discussão honesta e uma escuta»[12].
Para o próximo Sínodo em outubro de 2022, o Papa Francisco escolheu como tema «Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão».
A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo.
Tradução e revisão a partir de “Verso una chiesa sinodale” originalmente publicado por La Civiltà Cattolica 4093 (2/16 janeiro de 2021) e traduzido para Inglês em Thinking Faith, a revista online dos Jesuítas na Grã-Bretanha. Tradução de Flaviana Zilio e revisão de Mário Almeida
[1] Francisco, Discurso por ocasião da abertura da 70a Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana, 22 de maio de 2017.
[2] Cfr. A. Spadaro, “Il governo di Francesco. È ancora attiva la spinta propulsiva del pontificato?”, in Civ. Catt. 2020 III 350-364.
[3] É possível deduzir esta intenção dos padres conciliares também da própria ordem de apresentação do ensinamento: o capítulo dedicado ao “Povo de Deus” (cap. 2) precede aquele sobre “A constituição hierárquica da Igreja” (cap. 3), para esclarecer como a hierarquia eclesiástica desempenha um papel de serviço à totalidade da Igreja e essa é a sua finalidade. “O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas” (EG 235) .
[4] O sensus fidei é comparado a um instinto porque não é primariamente o resultado de uma deliberação racional, mas antes assume a forma de um conhecimento espontâneo e natural, uma espécie de percepção (aisthesis).
[5] A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cf. Jo 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis», manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes” (LG 12).
[6] O Concílio especifica que o Colégio Episcopal só tem autoridade se for concebido em união com o Romano Pontífice, como sujeito de autoridade suprema na Igreja (cf. LG 22). A afirmação de que a ordenação episcopal envolve primariamente uma referência à Igreja universal também permanece no Código de Direito Canónico de 1983 (cc. 330-341). Segundo alguns estudiosos, o Concílio não esclareceu suficientemente neste ponto como se articula a relação entre o collegium episcoporum e a communio ecclesiarum. Cf. H. Legrand, “Les Évêques, les Églises locales et l’Église entière”, in Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques 85 (2001) 210s.
[7] Francisco, Discurso em Comemoração do 50° aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015.
[8] Ibid.
[9] J. H. Newman, On Consulting the Faithful in Matters of Doctrine, ed. com intr. de John Coulson, Londres, 1961, p. 41.
[10] Francisco, Constituição Apostólica Episcopalis Communio sobre o Sínodo dos Bispos, 15 de setembro de 2018.
[11] Francisco, Discurso em Comemoração do 50° aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015.
[12] Francisco, Let us dream: A time to choose, Simon & Schuster, Nova Iorque, 2020, p. 84.
Fotografia: Ricardo Perna
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