Rumo à Igreja Sinodal: A opção preferencial pelos pobres

Publicamos hoje a segunda parte de um artigo do Cardeal Michael Czerny, sj sobre a sinodalidade na Igreja. Esta reflexão ajuda-nos a compreender a opção preferencial pelos pobres como traço essencial da identidade da Igreja.

Publicamos hoje a segunda parte de um artigo do Cardeal Michael Czerny, sj sobre a sinodalidade na Igreja. Esta reflexão ajuda-nos a compreender a opção preferencial pelos pobres como traço essencial da identidade da Igreja.

Artigo publicado na edição de janeiro da Revista Brotéria.

1ª parte do artigo – aqui.

A “opção preferencial pelos pobres” é veiculada com veemência pelos Profetas e em Mateus 25 e expressa-se, em palavras semelhantes, na primeira frase da Gaudium et spes (GS, 1965): «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias das pessoas de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo» (GS 1, sublinhado nosso). Tornou-se um ponto focal na reflexão realizada durante o Sínodo de 1971 sobre a “Justiça no mundo”, e, mais tarde, São João Paulo II e Bento XVI integraram-na no ensinamento social da Igreja. O facto de representar uma característica distintiva do atual pontificado não deve ser considerado como uma novidade, mas sim ser atribuído ao vigor com que Francisco abraçou as suas implicações para o anúncio do Evangelho. Será útil observar como a eclesiologia da comunhão, a colegialidade e a sinodalidade desempenham um papel essencial na implementação desta opção.

Para Francisco, a opção preferencial pelos pobres por parte da Igreja (cf. EG 48) segue a desconcertante lógica da encarnação do Verbo. Deriva igualmente do que a Palavra, Jesus Cristo, nos ensinou, em palavras e ações, sobre os pobres. Consequentemente, a Igreja deve reconhecer nesta preferência a prerrogativa fundamental do serviço da caridade. O Papa especifica que esta não é uma preferência de caráter sociológico, mas de um tipo propriamente teológico porque remete para a ação salvífica de Deus: «Sem a opção preferencial pelos pobres, o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de se afogar naquele mar de palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta» (EG 199).

Para Francisco, a opção preferencial pelos pobres por parte da Igreja segue a desconcertante lógica da encarnação do Verbo.

Além disso, não é expressão de uma “benevolência” ingénua, que se expressa em alguma atividade, ou numa espécie de propensão, sem realmente constituir uma característica essencial da vida da Igreja. Pelo contrário, deve ser reconhecida como parte integrante, não só dos Evangelhos, mas também do processo de transformação eclesial desejado e iniciado pelo Vaticano II. Os padres conciliares, de facto, reconhecendo na história dos últimos e dos abandonados um “sinal dos tempos”, sustentaram que a Igreja era chamada a passar de uma caridade de tipo assistencialista, em que os pobres são reduzidos a um mero “objeto” de cuidado, ao seu reconhecimento como “membros” do povo de Deus e “sujeitos” da sua própria libertação.

Na encíclica Fratelli tutti (FT), entre todas as situações de fragilidade que caracterizam atualmente o tecido social e às quais é urgente responder, o Papa sublinha a emergência dos refugiados, migrantes e deslocados internos, definida de outra forma como uma emergência do «limite das fronteiras» (FT 129-132). Todos na Igreja e na sociedade são chamados a «acolher, proteger, promover e integrar» aqueles que, por motivos diversos, são obrigados a abandonar a sua terra, renunciando ao «direito a não emigrar» (FT 38; 129).

Isso significa passar de uma conceção de sociedade em que o estrangeiro é discriminado para uma compreensão de convivência social em que a cidadania plena é garantida a todos. Em vez de «do alto, impor programas assistenciais» (FT 129), é necessário oferecer oportunidades de integração efetivas e concretas: concessão de vistos, corredores humanitários, acesso aos serviços essenciais e à educação, bem como liberdade religiosa (FT 130).

As palavras de Francisco, portanto, nada mais fazem do que nos remeter à tomada de consciência pela qual o Vaticano II identificou na necessidade de favorecer os pobres um apelo do Espírito Santo à conversão tanto das estruturas intraeclesiais como do próprio modo de se relacionar com o Evangelho (cf. LG 8; GS 1). Garantir aos pobres um lugar privilegiado entre os membros do Povo de Deus (cf. EG 187-196) não significa apenas reconhecê-los como destinatários privilegiados da evangelização, mas considerá-los como seus sujeitos, como seus agentes ativos.

Garantir aos pobres um lugar privilegiado entre os membros do Povo de Deus não significa apenas reconhecê-los como destinatários privilegiados da evangelização, mas considerá-los como seus sujeitos, como seus agentes ativos.

A Evangelii gaudium, de facto, encoraja todos os batizados a considerar o encontro com os pobres como uma ocasião propícia para se deixarem evangelizar por Cristo (cf. EG 121; 178). Assim, os contornos da distinção entre evangelizadores e evangelizados esbatem-se: «Todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente» (EG 121; 174). Os pobres também são evangelizadores porque, como membros do povo de Deus, têm muito a dar e muito a ensinar (cf. EG 48). Por isso, Francisco, ao se dirigir aos membros pobres dos movimentos populares, não hesitou em dizer: «Vocês são para mim verdadeiros poetas sociais, que desde as periferias esquecidas criam soluções dignas para os problemas mais prementes dos excluídos»[1].

O Papa encorajava os crentes a partir de novo «das periferias» – não só as geográficas, mas também as existenciais[2] -, convite que assume diferentes formas. Pode significar dar atenção às injustiças sociais e aos sofrimentos pessoais daqueles que se encontram em situações desesperadas – dor, pobreza e miséria. Pode significar interiorizar o que está indicado em Mateus 25 e na rica tradição das Obras de Misericórdia. Pode significar apropriar-se da complexa riqueza do tema desenvolvido no Sínodo para a Amazónia, «Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral», com os seus dois elementos intrinsecamente interdependentes e correlacionados.

A evangelização, a promoção humana em todas as suas formas e o cuidado com a nossa casa comum nascem da vocação da Igreja expressa na LG e do seu caminho sinodal. E quando esta nova forma de enfrentar os problemas da família humana (cf. EG 30) é assumida com determinação, como questão essencial e necessária, a Igreja é ajudada a descentralizar-se e é impulsionada para as periferias. A Igreja deve caminhar em conjunto, carregando sobre si o peso da humanidade, escutando o grito dos pobres, reformando-se a si mesma e a sua própria ação, antes de tudo escutando a voz dos humildes, os anawim das Escrituras hebraicas, que estavam no centro do ministério público de Jesus.

Escutar o Povo de Deus, escutar nele o grito dos pobres abandonados e da terra maltratada, permite à Igreja evitar o perigo de projetar na realidade um esquema preconcebido.

Podemos ver tudo isso como uma chave hermenêutica que informa e redefine a prática sinodal. Portanto, torna-se necessário «colocar tudo em chave missionária» (EG 34) e adotar um modelo multidimensional de unidade eclesial e social (cf. EG 234-237) capaz de refletir uma renovada sensibilidade intraeclesial e ecuménica.

A reforma que Francisco nos convida a implementar funciona se for “esvaziada” de toda a lógica mundana, isto é, tanto da «ideologia da mudança» quanto da do «permanecer imóvel – nada muda». O mundo aprecia a capacidade de fazer coisas ou promover mudanças em instituições, sempre e em toda a parte. A reforma encoraja todos a discernir tempos e oportunidades de “esvaziamento”, para que a missão faça brilhar melhor a Cristo. E quando Francisco se dirige a «todo o cristão» (EG 3) e a «todas as pessoas» (LS 3), «independentemente do ponto da Terra onde cada uma nasceu ou habita» (cf. FT 1), convidando[3] a assumir a responsabilidade sintetizada no «cuidar da fragilidade» (EG 209-216), não dirige a sua atenção apenas para os «pobres», mas também para a «pobre terra».

Tornarmo-nos sensíveis ao «grito dos pobres» coloca-nos em condição de ouvir o grito da «irmã terra» (LS 1). Francisco insiste na relação entre cuidado pelo meio ambiente e atenção aos pobres (cf. LS 49), e volta a este ponto com maior insistência na Exortação pós-sinodal Querida Amazónia (QA 52), bem como nas suas catequeses «Curar o Mundo» de agosto e setembro de 2020. A ligação entre os pobres e o meio ambiente permite-nos destacar como o futuro de toda a humanidade está intimamente ligado ao do meio ambiente, de modo que a proteção dos interesses dos mais fracos coincide com a salvaguarda da criação. Como proclama a Laudato si’, «tudo está interligado» (LS 16; 91; 117; 138; 240).

Escutar o Povo de Deus, escutar nele o grito dos pobres abandonados e da terra maltratada, permite à Igreja evitar o perigo de projetar na realidade um esquema preconcebido. Este erro ocorre quando a Igreja, no seu intuito de reformar, persegue um projeto ideal que surge de desejos, mesmo bons, mas que são expressão de autorreferencialidade. Se assim fosse, acabaria obedecendo a uma outra ideologia meramente “mundana” da mudança. Quando a Igreja acompanha os pobres na sua libertação, eles, por sua vez, ajudam-na a livrar-se das armadilhas em que sempre pode incorrer a sua componente institucional.

Como fazer crescer a sinodalidade na Igreja?

O desafio fundamental que o processo sinodal representa para a vida da Igreja é o de uma compreensão renovada da “comunhão”, entendida em termos de “inclusão” que compreende todos os membros do Povo de Deus, especialmente os pobres, sob a autoridade daqueles que o Espírito Santo coloca como pastores da Igreja, de modo que todos se sintam corresponsáveis ​​na vida e na missão da Igreja.

Mas como pode crescer a sinodalidade na Igreja? É certamente necessário iniciar processos de conversão, isto é, de «discernimento, purificação e reforma» (EG 30), para que todos possam adquirir e internalizar os princípios de uma espiritualidade que esteja aberta à comunhão “inclusiva”, e não a uma espiritualidade limitada a buscar a perfeição individual. Sem uma verdadeira conversão das nossas formas de pensar, rezar e agir, sem uma efetiva metanoia que implique uma expansão constante da aceitação mútua, os instrumentos externos de comunhão – as estruturas eclesiais sinodais que surgiram do evento conciliar – poderiam ser insuficientes para atingir o propósito para o qual foram criados.

É certamente necessário iniciar processos de conversão, isto é, de «discernimento, purificação e reforma», para que todos possam adquirir e internalizar os princípios de uma espiritualidade que esteja aberta à comunhão “inclusiva”, e não a uma espiritualidade limitada a buscar a perfeição individual.

O Papa não tem ideias preconcebidas para aplicar à realidade, nem um plano ideológico de reformas pré-fabricadas, prêt-à-porter. Pelo contrário, avança a partir da oração e de uma experiência espiritual que ele compartilha gradualmente no diálogo, na consulta, nas respostas concretas a tantas situações de vulnerabilidade, sofrimento e injustiça. Este é, como diria Santo Inácio, o seu «modo de proceder». Francisco está a criar as condições estruturais para um diálogo real e aberto. Não há melhorias institucionais preconcebidas, nem estratégias planeadas no sofá e destinadas a obter melhores indicadores ou resultados estatísticos.

Talvez ainda tenhamos um longo caminho a percorrer para compreendermos esta profunda reforma da nossa existência institucional como discípulos de Jesus reunidos na Igreja. Há ainda caminho a fazer para compreender a relação da Igreja, semper reformanda, com os tempos que vivemos – incluindo a atual pandemia -, procurando aproximar e valorizar a Igreja que é local, nacional, regional e continental; e sem falar também em imaginar com esperança o futuro do Cristianismo.

A Evangelii gaudium dirige-se «aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente» (LS 3). Essa reforma consiste na conversão sinodal e missionária nunca concluída de cada membro do Povo de Deus e do Povo de Deus como um todo.

Na sua vida sinodal, a Igreja oferece-se, deliberadamente, em diakonia ou serviço destinado a promover uma vida económica, social, política e cultural marcada pela fraternidade e pela amizade social. O compromisso prioritário e o critério de toda a ação social do Povo de Deus consistem em escutar o clamor dos pobres e da terra (cf. LS 49), recordando com urgência, na definição das escolhas e projetos da sociedade, os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja: a inalienabilidade da dignidade humana, o destino universal dos bens, o primado da solidariedade, o diálogo pela paz, o cuidado da casa comum.

O encorajamento de Francisco de que «o Sínodo dos Bispos deve tornar-se cada vez mais um instrumento privilegiado de escuta do Povo de Deus» (EC 6) é, ao mesmo tempo, oração e invocação: «Para os padres sinodais, pedimos antes de mais nada, do Espírito Santo, o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade a que Deus nos chama»[4].

Rezemos, então, por quem tem responsabilidade na Igreja, por quem se dedica à vida religiosa, na esfera da educação católica e em outros serviços, para que receba as mesmas graças: escutar, caminhar e servir*.

 

Tradução e revisão a partir de “Verso una chiesa sinodale” originalmente publicado por La Civiltà Cattolica 4093 (2/16 janeiro de 2021) e traduzido para Inglês em Thinking Faith, a revista online dos Jesuítas na Grã-Bretanha. Tradução de Flaviana Zilio e revisão de Mário Almeida

[1] Francisco, Carta aos Movimentos populares, Páscoa, 12 de abril de 2020.
[2] Referindo-se ao ensinamento de São João Paulo II, Francisco descreve a pobreza não só em termos materiais como indigência ou necessidade, mas também identificando todas as formas de empobrecimento da pessoa, como a limitação ou prejuízo da dignidade e dos direitos fundamentais do ser humano (cf. João Paulo II, Sollicitudo rei socialis, 1987, n. 15).
[3] A intenção de dirigir-se a todos está em continuidade com a escolha do Concílio Vaticano II, que “não hesita em dirigir a sua palavra, não já apenas aos filhos da Igreja e a todos os que invocam o nome de Cristo, mas a todas as pessoas” (GS 2).
[4] Francisco, Vigília de oração preparatória para o Sínodo sobre a família, 4 de outubro de 2014.

Fotografia: Chitto Cancio – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.