Residência alternada: nem sempre sim, nem sempre não

Não há famílias iguais nem receitas generalizáveis. A partilha equitativa entre os pais divorciados do tempo dos filhos não deve ser generalizada de forma abusiva mas também não se pode presumir que a mãe é melhor do que o pai. E vice-versa

Não há famílias iguais nem receitas generalizáveis. A partilha equitativa entre os pais divorciados do tempo dos filhos não deve ser generalizada de forma abusiva mas também não se pode presumir que a mãe é melhor do que o pai. E vice-versa

Temos assistido nos últimos dias a um aceso debate sobre a questão da eventual presunção jurídica do regime de residência alternada para crianças, quando os pais regulam o exercício das suas responsabilidades parentais. De um lado, há quem defenda que esse seja o regime regra e, por outro lado, quem defende que nada seja alterado na legislação actual, salientando os riscos associados a uma presunção jurídica dessa natureza.

A nossa posição (que, ademais, é pública e foi recentemente publicada sob a forma de capítulo no livro “Uma família parental, duas Casas”, coordenado pelas Professoras Sofia Marinho e Sónia Vladimira Correia, da Editora Sílabo), baseia-se, não somente em duas décadas de experiência clínica e forense, mas também, e acima de tudo, em dados empíricos obtidos com estudos internacionais.

Centremo-nos na criança. O regime de residência deve ser aquele que satisfaça as necessidades específicas daquela criança em concreto e o seu superior interesse e, por consequência, o dos seus pais.

Quando nasce, a criança precisa desesperadamente de ser cuidada e amada. Somos, de facto, uma das espécies em que o bebé é mais imaturo e, durante mais tempo, depende dos cuidados de terceiros. Estes cuidados devem ser a vários níveis (e não apenas físicos e biológicos), com especial importância dos cuidados afectivos. São célebres os estudos de Harry Harlow (1905-1981), um psicólogo norte-americano que ficou conhecido pelas suas experiências sobre a privação maternal e social em macacos Rhesus, e que demonstraram a importância dos cuidados, do conforto e do amor nas primeiras etapas do desenvolvimento[1]. [1] (https://www.youtube.com/watch?v=qjiioOmWnqg)

Nesta altura, apenas se falava de amor maternal e pouca atenção era dada ao papel do pai no desenvolvimento da criança. No entanto, sabemos hoje que a necessidade das crianças em receber amor, cuidados e contacto não é exclusiva da figura materna. Sobre esta questão temos os estudos sobre a vinculação.

Num artigo de opinião publicado em Fevereiro, no Jornal Público, uma de nós (Rute Agulhas) afirmava que estes estudos realçam que é na primeira infância que as crianças estabelecem essa relação de vinculação, pedra basilar do seu desenvolvimento. “Para que esta se estabeleça é fundamental que ocorram interações continuadas e regulares entre a criança e os cuidadores. Estas podem ocorrer em diversos contextos de cuidados, por e.g., mudar uma fralda ou dar o leite, ou de brincadeira e lazer. O principal é que as interações ocorram e sejam marcadas pela sensibilidade e responsividade dos cuidadores: mãe ou pai.

Se, tradicionalmente, a mãe está associada ao papel cuidador, atualmente o pai está mais investido nos cuidados e educação da criança e, tal como a mãe, o pai aprende e constrói a sua parentalidade. Estudos apontam que os pais podem ser cuidadores sensíveis dos seus filhos e que as crianças estabelecem relações seguras, quer com as mães, quer com os pais nos primeiros anos de vida.

É nesta fase do desenvolvimento infantil mais sensível e crucial para que esta relação de vinculação possa ser estabelecida. E para que a vinculação possa ser segura, é fundamental que a criança se sinta amada, protegida e cuidada, permitindo-lhe criar laços que, de uma forma gradual, irão potenciar também a capacidade em explorar o seu meio envolvente e socializar. Ora, para que estes vínculos possam ser estabelecidos é imprescindível um convívio regular e extenso com estas figuras de referência”.

Não bastam meras visitas ou convívios, uma vez que estes não serão suficientes para que haja um adequado envolvimento parental. Os pais devem ter direitos iguais no que concerne ao exercício da parentalidade, desde que possuam capacidades parentais adequadas.

Assim, não bastam meras visitas ou convívios, uma vez que estes não serão suficientes para que haja um adequado envolvimento parental. Os pais devem ter direitos iguais no que concerne ao exercício da parentalidade, desde que possuam capacidades parentais adequadas. A própria Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 36.º, refere que os filhos não podem ser separados dos pais (e, portanto, os pais dos filhos), salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão do tribunal.

Neste contexto, o pressuposto de partida deve ser aquele que salvaguarde o direito de a criança poder interagir e, desta forma, estabelecer e fortalecer vínculos afectivos com ambos os pais. Para que tal aconteça, devem ainda ser tidas em conta diversas variáveis.

Em relação à criança, qualquer regime de contactos deve, necessariamente, ter em conta a noção de tempo da criança, o que se relaciona com a idade e o nível de desenvolvimento. Perceber a vontade da criança, que implica não só analisar se esta já tem maturidade e capacidade de discernimento suficientes para compreender o que significa a sua vontade e quais as possíveis implicações da mesma, mas também se esta vontade é genuína, e não fruto de pressões, sugestionamentos, alianças, triangulações, interesses particulares da própria criança ou conflitos de lealdade.

Em relação aos pais é importante ter em conta a capacidade de estes comunicarem de forma ajustada e funcional e de cooperarem, de forma a priorizar e assegurar as necessidades da criança. O envolvimento parental existente pré e pós divórcio, a rede de suporte familiar e social, o consenso relativo aos modelos educacionais, as condições económicas e habitacionais, para além de variáveis internas como a saúde física e mental. É importante que ambos estejam presentes, mantenham com a criança uma relação de proximidade afectiva e manifestem competências para exercer de forma responsiva e sensível a sua parentalidade.

A distância geográfica entre a casa do pai e da mãe é importante na decisão, uma vez que há que assegurar a estabilidade e bem-estar da criança, tendo em conta a necessidade de esta ter de se adaptar a uma nova comunidade, escola e grupo de pares. Quando esta surge após a separação, é importante perceber o que está na sua origem, e se esta é deliberada, como forma a impedir uma decisão de residência alternada.

Outra questão que é importante desmistificar é a confusão entre os conceitos de “residência alternada” e “alternância semanal”. Por residência alternada entende-se uma partilha tendencialmente equitativa do tempo com ambos os pais, sendo que essa partilha não tem de ser 50/50 ou semanal. Não temos de dividir o tempo com um cronómetro! Há situações em que tal não se afigura viável. Uma divisão de tempo que permita que a criança passe, pelo menos, 35% do tempo com um dos pais, é já considerada muito equitativa.

Por residência alternada entende-se uma partilha tendencialmente equitativa do tempo com ambos os pais, sendo que essa partilha não tem de ser 50/50 ou semanal. Não temos de dividir o tempo com um cronómetro! Há situações em que tal não se afigura viável. Uma divisão de tempo que permita que a criança passe, pelo menos, 35% do tempo com um dos pais, é já considerada muito equitativa.

Não há duas famílias iguais e não podem existir, por isso, receitas que possam ser generalizáveis. Mas se entendemos que a partilha equitativa do tempo não deve ser generalizada de forma abusiva, pois há, efectivamente, situações em que não se revela adequada, o contrário também não pode acontecer, ou seja, a presunção de que a mãe é melhor do que o pai ou de que o pai é melhor do que a mãe.

Cada caso deve ter por base aquela família em concreto com as suas vicissitudes. Exige uma avaliação específica e cuidadosa dos factos em concreto, das dinâmicas familiares únicas e idiossincráticas de cada família. Quando há acordo entre os pais e este não contraria os interesses da criança, deve o juiz decidir em consonância.

Outra questão que se coloca relaciona-se com a confusão que ainda subsiste entre definição de um regime de convívios com cada um dos pais e as suspeitas de maus-tratos, negligência ou abuso sexual. Dito de uma forma muito clara: estamos a misturar as coisas. Quando há uma suspeita consistente (negrito intencional das autoras) de qualquer forma de maus-tratos para com a criança, naturalmente que a criança TEM de ver assegurada a sua protecção, o que exige que os contactos com esse progenitor (mãe ou pai) devem ser pensados de outra forma. Dependendo da situação em concreto, podem ocorrer com ou sem supervisão de terceiros, ou ser mesmo suspensos ou inibidos. Esta situação é já de alguma forma acautelada pelo artigo 1906.º-A e pela Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio, que lhe deu origem.

Dizer “não” à divisão equitativa do tempo baseando-se na premissa (errada) de que o amor materno é inato e as crianças devem ficar com as mães, não. Dizer “sempre sim” à divisão equitativa do tempo, ignorando as especificidades e idiossincrasias de cada família, também não.

Dizer “não” à divisão equitativa do tempo baseados na premissa (errada) de que o amor materno é inato e as crianças devem ficar com as mães, não.

Dizer “sempre sim” à divisão equitativa do tempo, ignorando as especificidades e idiossincrasias de cada família, também não.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.