Hoje, talvez mais do que nunca, é estranho falarmos das coisas de Deus sem falarmos das coisas da terra, sem falarmos com Deus sobre as coisas do céu e da terra. É mesmo impossível estarmos com Deus sem levarmos connosco todo o “peso” da nossa condição mortal: finitude e impotência. O Cristianismo diz-nos que não é a nossa fragilidade que nos faz menores. Deus aceita- nos como somos, sem favor nenhum; o que não nos quer é mascarados. Diante de Deus somos “só” e sempre o que somos. E o que somos, por pouco que nos pareça, é sempre precioso aos Seus olhos. Somos “pó” mas “pó” amado. Somos os seus amados. Deus dispensa disfarces, representações, falsidades. A mentira sobre o que somos não tem nenhuma hipótese com Deus.
Para os que crêem, a finitude humana é muito mais do que uma evidência ou uma oportunidade. A finitude pode ser vivida como bênção. A bênção mostra-nos que não estamos “sós” a viver os nossos limites. Não fomos esquecidos nem negligenciados. Por isso, não é cristão pensarmos que a dor e a doença são uma fatalidade inevitável ou, ainda menos que a epidemia que hoje nos ameaça é, no mínimo, uma advertência de Deus, um castigo do Omnipotente. Jesus mostrou-nos que a justiça de Deus não se faz com castigos ou repreensões. Fez-se, faz-se com a sua oferta na Cruz que, no paradoxo dos sinais, assume toda a grandeza da nossa condição frágil. A cruz mostra a imersão de Cristo na nossa impotência, a adoção da nossa condição de pecadores. Não é por sermos santos que somos amados. Somos amados para ser santos.
A cruz mostra a imersão de Cristo na nossa impotência, a adoção da nossa condição de pecadores. Não é por sermos santos que somos amados. Somos amados para ser santos.
Deus, por amor, é livremente frágil. Deus só pode o que o amor pode. E o amor, por mais forte que seja, é sempre frágil, é sempre espiritualmente “pobre” e humilde como Cristo na Cruz. Se assim não fosse, a cruz não seria redentora e o sacrifício de Cristo nunca poderia ter sido o resgate da “feliz culpa” que nos garante o Céu. O pecado faz-nos fracos, o amor faz-nos frágeis. Esta epidemia faz-nos ver que os pobres não são só os que pedem, são também os que dão. É preciso ser pobre para dar e não só para pedir. A prova da nossa santidade está no facto de sermos ou não pobres para dar e não só para receber. A nossa fragilidade é um sinal da pobreza própria de Deus e da sua infinita liberdade.
Em quarentena, estamos todos a aprender, dia após dia, na lentidão do tempo que não passa, a ser “expropriados”. Verificámos “in loco” que a nossa condição frágil em nada impede as potencialidades humanas, que por dom e por trabalho próprio nos prefigura como seres humanos credíveis, sensíveis e sensatos. Na inteligência da fé sabemos que Deus nos constituiu “irmãos” de Jesus, Aquele que na obediência livre assumiu a nossa humanidade. Partilhamos com ele a nossa condição frágil, temos o mesmo “húmus” no DNA. De facto, ”Ele era rico e fez-se pobre” (2Cor. 8,9) para ser “em tudo igual a nós, exceto no pecado” (Heb. 4, 15).
Rezar o grito de Jesus na cruz é para todo o homem, crente e não crente, muito mais do que grito de revolta. É rezar a sua sede de infinito, o mistério da sua precaridade, o limite da sua auto-suficiência.
Impedidos de circular livremente e de nos relacionarmos sem condicionalismos sanitários, vamos reagindo, nos limites da nossa liberdade que se vai condicionando. Não nos é possível, agora que temos todo o tempo do mundo, descansar do mundo e “fugir” para Deus. Deus é do mundo, está no nosso mundo contaminado, embora muitos, hoje, tal como ontem, possam legitimamente rezar na cama dos hospitais, o grito de Jesus no madeiro da cruz “Pai, porque Me abandonaste?” (Mt. 27, 46). Rezar, na proposta cristã, nunca foi a possibilidade de uma alienação ou de uma desencarnação. Rezar o grito de Jesus na cruz é para todo o homem, crente e não crente, muito mais do que grito de revolta. É rezar a sua sede de infinito, o mistério da sua precaridade, o limite da sua auto-suficiência. Sozinho não me basto, sozinho não sou eu. Sem Ti, não sou eu!
O céu e a terra, embora cronologicamente distintos, são a cara e coroa da presença de Deus nas nossas vidas. E se, em “tempos normais” não nos era possível falar do espírito sem falar da matéria, falar da ciência sem falar da fé, falar do amor sem cuidar do amar, falar do possível sem falar do ideal, a contingência que vivemos, faz-nos descobrir ”em valsa lenta” o privilégio de estarmos vivos, o valor sagrado das coisas pequenas, a força dos laços afetivos e espirituais que nos unem, a benignidades das redes sociais e das plataformas digitais, a criatividade de uma solidariedade operativa, que não temos “direito” ao gozo do abraço ou ao sorriso da retribuição. Estamos a aprender que a felicidade de Deus, que une o céu e a terra, não é um paraíso desprovido de trabalho, de esforço, de tensão. O paraíso não é um depois da morte; O paraíso é Deus no céu e na terra, é Deus na vida e na morte. Hoje, para muitos dos nossos irmãos, o paraíso é o bálsamo de Deus no inferno da vida.
Muitos perguntam, a si próprios e a Deus, como as mulheres na manhã de Páscoa: “quem nos removerá a pedra deste sepulcro?” (Mc. 16, 3). Quantos dias de deserto temos ainda pela frente? Chegaremos a ver a terra prometida onde “brota leite e mel”? Aos crentes não chega rezar o “salmo” laico e certamente bem-intencionado do “vai correr tudo bem”.
Estamos a aprender que a felicidade de Deus, que une o céu e a terra, não é um paraíso desprovido de trabalho, de esforço, de tensão. O paraíso não é um depois da morte; O paraíso é Deus no céu e na terra, é Deus na vida e na morte. Hoje, para muitos dos nossos irmãos, o paraíso é o bálsamo de Deus no inferno da vida.
A nossa esperança precisa e procura outras razões. Aparentemente, as nossas perguntas e preocupações precisam de Deus, questionam Deus, precisam mais da “voz” do que do “silêncio” de Deus. No entanto, também desta vez, só é possível entender o “silêncio” dos inocentes no “sacrifício” obediente de Deus. Sempre que rezamos, entramos no mistério profundo da palavra e do silêncio e somos, à imagem e semelhança de Cristo, devolvidos, enviados à história, à realidade do mundo, como “bons samaritanos”. Quem afirma que Deus está “confinado” no Céu, não só não conhece a Deus como não conhece a Terra. No turbilhão das cidades ou na pacatez dos campos, a terra mostra- nos Deus, diz-nos Deus.
Com as Igrejas fechadas e sem a experiência comunitária da fé, rezar não é fugir da terra para “sobreviver” em Deus. Quem reza sabe que sempre que reza recebe uma “escala de serviço” para “fazer das tripas coração” e pôr-se a caminho. Quem reza é devolvido à realidade como “Aquele que veio para servir e não para ser servido” (Mt. 20, 27). Na oração, cada um de nós, descobre que o seu “eu” pode esperar. A oração traz-nos sempre os outros para o primeiro lugar. Assim se compreende a razão pela qual a prática da oração é uma das traves mestras da conversão da Quaresma. Deus não nos fecha egoisticamente na Sua intimidade, não nos deixa eternamente sem resposta, mas envia- nos sempre para fora, para as necessidades dos outros, onde ele quer ser amado e servido: “O que fizeres a um destes mais pequeninos, a mim, o fizeste” (Mt. 25, 40). É no serviço ao próximo que encontramos a resposta de Deus às nossas questões e confirmamos a verdade da oração que converte. Para sermos “pobres” de nós e “ricos” dos outros precisamos de “pôr de molho” os caprichos da própria liberdade, tornar a nossa liberdade inacianamente “indiferente”. Rezar ajuda-nos a discernir para “preferir” a liberdade”.
Nesta “via-sacra” que estamos a viver, tornou-se urgente rezarmos o que alguns consideram só laico e profano: a nossa liberdade, os seus limites e as suas aspirações. Quem não gostaria de, apesar de estar fisicamente confinado, continuar a ser espiritual e afetivamente livre? Não conheço melhor método para examinar e libertar a própria liberdade do que o exercício de uma oração verdadeira, feita à maneira de Jesus, feita na consciência de Jesus.
Constatamos nestes dias “de coração apertado” que a nossa liberdade, mesmo sem confinamentos, nunca é absoluta. Descobrimos, de igual modo, que por mais condicionada que esteja a nossa liberdade o “poder” de pensar, de sentir, de ver, de julgar, de desejar, de perdoar, permanece intocável. A quarentena que nos obriga a estar quase “em prisão” domiciliária não tem o poder de nos paralisar a alma nem a vontade de viver em liberdade. Assim, no jogo incerto do presente, vamo-nos preparando para o novo futuro que ainda não tem data certa para começar.
A quarentena que nos obriga a estar quase “em prisão” domiciliária não tem o poder de nos paralisar a alma nem a vontade de viver em liberdade.
Não queremos ficar eternamente “isolados”. Sabemos, já o experimentamos, que se formos “irmãos”, se estivermos “juntos” vamos conseguir. Estamos a descobrir o quanto gostamos de viver e a penitenciarmo-nos pelos dias mal vividos, pelo mal que fizemos uns aos outros, pelas quezílias inúteis, pelas vaidades desnecessárias, pelas “tempestades” nos nossos copos de água, pelas agressividades e acusações sem fundamentos, pela brutalidade de não sabermos perdoar. É tempo de baixarmos as armas e limparmos as memórias do coração para regressarmos, nas mútuas relações humanas à pureza de Deus seguindo as palavras de Jesus “Deixa a tua oferta no altar e vai reconciliar- te com o teu irmão” (Mt. 5, 23-24). A grande “missa” para este “tempo sem missa” é a liturgia do perdão, feita em família, dentro de casa; feita também entre irmãos desavindos, entre amigos e colegas de trabalho, entre gerações, entre grupos, entre países.
Podemos rezar, e não apenas “despachar”, os dias da quarentena que estamos a viver?
Recentemente reli as “Estações no caminho da liberdade” de Dietriche Bonhoeffer, um teólogo alemão que foi mártir, em Flossenburg, em 1945. Dizia ele, que a solução que encontrou para viver “bem” os dias da sua prisão foi “enganar o tempo”. Não sei como se engana o tempo, mas sei que a primeira, e talvez a mais pertinente das suas sugestões para “ enganar o tempo”, é dedicada à disciplina de vida. Para o autor “ninguém experimenta o mistério da liberdade a não ser pela disciplina”. Para mim, ninguém se estrutura numa disciplina de vida sem saber rezar a própria liberdade.
Nas mil voltas que já demos na varanda, nas arrumações “pascais” da própria casa, no teletrabalho que se vai agigantando, no acompanhamento dos filhos que ainda aguentam estar fechados, na descoberta de novas receitas de cozinha, na visita digital a tantos museus, na reposição de filmes e jogos de futebol, nos e-mail’s, nos zooms e nas mensagens da família e dos amigos, corremos o risco de nos sentirmos perdidos, bloqueados, de nos perdermos se nos faltar um método, um horário, uma disciplina de vida. Para vivermos bem a liberdade condicionada deste tempo não nos chega atravessar com galhardia as circunstâncias em que nos encontramos. Este tempo pede muito a cada um. Pede rigor, paciência e disciplina. E tanto maior proveito podemos usufruir desta dureza, quanto mais aprendermos a viver no silêncio, na solidão, no saber estar consigo e com os outros, a vencer caprichos e primeiros desejos, a estruturar-se, a manter-se em saúde psíquica, a limpar a consciência, a saber esperar. Está visto, em quarentena, para vivermos equilibrados, temos que ser mansos e humildes de coração.
O nosso problema não é estarmos fechados em casa; é não estarmos em casa estando dentro da própria casa; é não estarmos onde estamos, é nunca estarmos com quem estamos.
O nosso problema não é estarmos fechados em casa; é não estarmos em casa estando dentro da própria casa; é não estarmos onde estamos, é nunca estarmos com quem estamos. O problema é sempre a fuga e a pressa nos timings e nos processos. Resultados? Somos obcecados por resultados, por estratégias, por reuniões, pela produtividade. A disciplina de vida possibilita-nos o espanto e a surpresa, mas também um “modo” e uma “ordem” que está muito para além da lógica da eficácia. Na oração, os cristãos que avaliam a sua liberdade descobrem a força da gratuidade. A eficácia evangélica, a disciplina de vida está muito para além do cumprimento das regras, da execução de projetos, da paz da consciência. Sem amor não é possível sermos eficazes, competentes. Cumprir o amor é, para cada cristão, um prazer e um dever. O amor é o nosso critério de gestão, de relação e de liderança. Não é o trabalho que nos liberta. O que nos liberta é o amor!
Ninguém vive a liberdade sem passar por uma escola de disciplina, pela prova, por exercícios de humildade e busca da perfeição. A liberdade aprende-se, trabalha-se, consolida-se: aprende-se nas histórias de vida, nos livros, nos filmes, nos laboratórios, nas viagens; trabalha-se nas vitórias, nos fracassos, nas expetativas e nas frustrações; consolida-se nas opções, nos bons exemplos, na palavra dada e honrada, na coerência de vida, no sacrifício do dia-a-dia, na prática das virtudes. A liberdade recebe-se na oração, no discernimento, no acolhimento, nas propostas e mandamentos de Jesus.
A liberdade encontra-se no gozo e na disciplina dos sentidos e da alma. Quanto mais disciplinados mais livres; quanto mais livres mais amorosos. O contrário da liberdade é o egoísmo. Não sei se haverá pior prisão.
Na oração aprende-se a ser livre, a ser mais livre, a ser “só” livre. Na oração aprende-se que a liberdade não é fazer o que se quer, mas querer o que se faz! A liberdade encontra-se no gozo e na disciplina dos sentidos e da alma. Quanto mais disciplinados mais livres; quanto mais livres mais amorosos. O contrário da liberdade é o egoísmo. Não sei se haverá pior prisão. O egoísmo é viver tudo para si, a partir de si, mesmo a dor, as quarentenas, os confinamentos. A verdadeira liberdade é descentrada do próprio “eu”, do “próprio querer e interesse” como dizia St. Inácio, nos Exercícios Espirituais (EE 189). O Cristão livre não vive a partir de si mas a partir do outro, vive por Cristo, com Cristo, em Cristo. Vive livre para os outros a partir de Cristo.
Este ano, a quaresma continuará na própria Páscoa. Estamos a peregrinar pelo deserto mas não estamos nem perdidos nem à beira do abismo. Também nós seremos capazes de atravessar o mar “vermelho” dos nossos medos e limites. Estamos “todos no mesmo barco” a travar o “bom combate” contra todos os “coronaventos” e tempestades. A força deste combate é saber, tal como escrevia Bonhoeffer no seu diário de prisão, que “Cristo não nos salvou em virtude da sua omnipotência, mas pela força da sua impotência”. Na Cruz de Cristo encontramos o sentido da nossa existência frágil e a resposta de Deus aos gritos da nossa liberdade.
Que seja assim para cada um de nós: Hoje, “crucificados” na terra; amanhã, “ressuscitados”, no céu.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.