Quando confiar parece impossível - Ponto SJ

Quando confiar parece impossível

A segunda reflexão sobre Sagrado Coração de Jesus e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque fala-nos da confiança: um dom difícil e um desafio atual neste mundo acelerado e polarizado — ao qual a Igreja não está imune

A segunda reflexão sobre Sagrado Coração de Jesus e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque fala-nos da confiança: um dom difícil e um desafio atual neste mundo acelerado e polarizado — ao qual a Igreja não está imune

A propósito da festa litúrgica do Sagrado Coração de Jesus e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque, partilhamos este texto como parte de uma proposta mais alargada para redescobrir aspetos centrais da espiritualidade do Coração de Jesus — um verdadeiro tesouro para toda a Igreja.

Feridas que nos fazem viver
«Há partes do coração que precisam de doer para começarem a existir» — escreveu Léon Bloy. A inquietude e a ansiedade não são sempre sinais de derrota. Muitas vezes representam o início de uma nova etapa da nossa vida. Mas quando essa inquietação se prolonga e se transforma em desolação, nasce dentro de nós uma pergunta difícil: será que a graça não será apenas uma ilusão reconfortante? Como distinguir uma emoção passageira da presença real de Deus? Onde encontrar um sinal que nos abra à confiança?

No olho de um furacão eclesial
As revelações do Sagrado Coração à Santa Margarida Maria Alacoque ocorreram num tempo particularmente tenso da vida da Igreja. No século XVII, o bispo e teólogo holandês Cornelius Jansenius começou a propor uma leitura da salvação centrada na predestinação e marcada por um enorme pessimismo. Defendia que o pecado original tinha ferido a liberdade humana de tal forma que a salvação não dependia da vontade pessoal, mas apenas da vontade de Deus — e esta não era universal. Para ele, apenas alguns estavam destinados à salvação. Os restantes, ainda que vivessem como bons cristãos, estavam irremediavelmente perdidos.

Esta visão, conhecida como jansenismo, teve grandes repercussões. Endureceu-se o acesso ao sacramento da reconciliação, aumentou-se o peso das penitências, reforçou-se a ênfase na comunhão espiritual em detrimento da [comunhão] sacramental. A imagem de Deus que emergia era a de um juiz severo, e o confessionário passou a ser visto como tribunal mais do que como lugar de encontro com a misericórdia.

É neste contexto que emerge a espiritualidade do Sagrado Coração. Em contracorrente com o medo e a rigidez, esta espiritualidade testemunha um Deus próximo, misericordioso, com um Coração que deseja salvar a todos. A revelação a Santa Margarida Maria não foi uma experiência isolada de uma religiosa devota; foi uma resposta viva e encarnada ao medo que, no seu tempo, parecia ser validado por livros de teologia, púlpitos e confessionários. Continuaremos hoje a precisar de regressar a esta resposta viva?

É neste contexto — verdadeiramente um furacão teológico e pastoral — que emerge a espiritualidade do Sagrado Coração. Em contracorrente com o medo e a rigidez, esta espiritualidade testemunha um Deus próximo, misericordioso, com um Coração que deseja salvar a todos. A revelação a Santa Margarida Maria não foi uma experiência isolada de uma religiosa devota; foi uma resposta viva e encarnada ao medo que, no seu tempo, parecia ser validado por livros de teologia, púlpitos e confessionários. Continuaremos hoje a precisar de regressar a esta resposta viva?

Salvação, ansiedade e o ato de confiança de Cláudio de la Colombière
O teólogo Karl Rahner, no primeiro volume da sua obra Sacramentum Mundi (1958), identificava no século XVI o momento em que a subjetividade individual começa a ser acolhida pela teologia. Lutero, Teresa de Ávila, João da Cruz, Inácio de Loyola, Francisco de Sales… todos expressam, cada um à sua maneira, a mesma pergunta: como acolher subjetivamente a salvação? Com esperança ou com ansiedade?

Para os jansenistas, o reconhecimento da própria fragilidade e a consciência da maldade humana eram suficientes para justificar o medo. Segundo esta lógica, o temor era sempre preferível: se a pessoa estava destinada à condenação, o temor era compreensível; se estava predestinada à salvação, o temor cultivava a humildade. Em qualquer dos casos, confiar era um risco. Temer, uma garantia.

É neste ambiente que surge a figura luminosa do padre Cláudio de la Colombière, jesuíta e diretor espiritual de Santa Margarida Maria. Em total contraste com o medo, propôs a confiança no amor de Deus. Para ele, o Coração de Cristo é prova de que ninguém é suficientemente puro para se apresentar diante de Deus — e é precisamente por isso que todos são chamados a confiar. A santidade não nasce da pureza conquistada, mas da rendição amorosa ou confiança agradecida.

Em 1677, durante os Exercícios Espirituais que fazia em Londres, o P. de la Colombière escreveu um extraordinário Ato de Confiança, que transcrevemos na íntegra e sem comentários, para que fale por si.

Ato de Confiança – Cláudio de la Colombière SJ

Meu Deus, estou tão convencido que velais sobre aqueles que em Vós confiam, e que nada pode faltar a quem de Vós tudo espera, que resolvi viver para o futuro sem preocupação alguma, e descarregar sobre Vós todas as minhas preocupações.

«Eu dormirei e descansarei em paz, porque Vós, Senhor, me firmastes na esperança» – Salmo 4, 10.

Podem os homens despojar-me dos bens e da honra, pode a doença roubar-me as forças e os meios para Vos servir, posso até perder a graça pelo pecado; mas o que nunca perderei é a esperança; conservá-la-ei até ao último alento da minha vida, embora todas as potências infernais se esforcem em vão por ma roubar.

Esperem outros a felicidade das suas riquezas e talentos; confiem na inocência da sua vida, no rigor da sua penitência, no número das suas boas obras ou no fervor das suas orações. Vós, Senhor, a mim me constituístes na esperança. Quanto a mim, toda a minha confiança se funda nesta mesma confiança. Ela nunca enganou ninguém.

E assim, estou seguro de que serei eternamente bem-aventurado, porque espero firmemente sê-lo, e é de Vós, ó meu Deus, que o espero.

Conheço e sei demasiado como sou frágil e volúvel. Não ignoro quanto podem as tentações contra as mais robustas virtudes. Vi cair as estrelas e desabar as colunas do firmamento; mas nada disso me mete medo. Enquanto esperar, ficarei a coberto de todas as desgraças; e estou seguro de esperar sempre, porque espero esta invariável esperança.

Enfim, estou certo que nunca será demasiado tudo o que de Vós espere, e que nunca poderei ter menos do que de Vós souber esperar. Espero, portanto, que tereis mão nas minhas inclinações mais violentas, e me defendereis dos assaltos mais furiosos, e fareis triunfar a minha fraqueza dos meus mais temíveis inimigos.

Espero que me amareis sempre, e que também eu incessantemente Vos hei-de amar. E para levar a minha esperança tão alto quanto ela pode subir, de Vós mesmo Vos espero, ó meu Criador, para o tempo e para a eternidade. Assim seja.

Num mundo acelerado e polarizado — ao qual a Igreja não está imune, pois está no mundo — confiar tornou-se difícil. Fações, grupos, correntes, exércitos opõem-se por convicção ou por hábito. A primazia da razão técnica e da linguagem transacional fecha-nos ao espontâneo, coloca sob suspeita o gratuito, e pode instalar-nos numa frieza mascarada de bons modos. O risco de uma racionalização compulsiva que tudo calcula e negoceia — até a família, o amor, a fé e a salvação — é um risco evidente no nosso mundo. Que espaço resta, então, para a esperança, para a graça e para a gratuidade? 

Confiar: um dom difícil, um desafio atual
Num mundo acelerado e polarizado — ao qual a Igreja não está imune, pois está no mundo — confiar tornou-se difícil. Fações, grupos, correntes, exércitos opõem-se por convicção ou por hábito. A primazia da razão técnica e da linguagem transacional fecha-nos ao espontâneo, coloca sob suspeita o gratuito, e pode instalar-nos numa frieza mascarada de bons modos. O risco de uma racionalização compulsiva que tudo calcula e negoceia — até a família, o amor, a fé e a salvação — é um risco evidente no nosso mundo. Que espaço resta, então, para a esperança, para a graça e para a gratuidade?

É diante deste drama, tão íntimo quanto social, que o Concílio Vaticano II afirmou, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes: “temos, com efeito, de reformar o nosso coração, com os olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que podemos realizar juntos para o progresso da humanidade”, visto que “os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem” (Cf. GS 82 e 10). “Por isso, — complementou o Papa Francisco — diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se possa fazer seja esta: tenho coração?” (Cf. Dilexit nos, 23)

É exatamente a esta pergunta que o Ato de Confiança de Cláudio de la Colombière parece responder. Confiar não é fechar os olhos ao mal nem à dúvida, mas ler o mundo a partir da experiência de um Tu que nos visita e, visitando, nos leva a viver desde a relação, tornando-nos, como Cristo, sensíveis e atentos a todos os outros tus que são meus irmãos e irmãs. É no coração orante que se reconhece uma presença amorosa que nos antecede e sustém — inclusive a quem pensa de modo diferente de mim/nós. Um Tu que nos conhece por dentro, sem ingenuidades, e ainda assim nos deseja — manifestando como lixo e perda toda a comparação humana baseada em critérios mundanos que conduzem sempre ao “meu” e ao “nosso”, sempre fechados, exclusivos e excludentes. É, portanto, a partir da proximidade com o Coração de Cristo que a confiança se torna, não apenas um dom, mas uma atitude profética — e até programática.

Colombière recorda-nos que esta confiança não nasce do mérito nem do acaso, mas da gratuidade de Deus em visitar-nos. E porque nasce de Deus, pode — em virtude da esperança — fazer renascer em nós pessoas novas, isto é: com coração.

 

Leia o primeiro artigo desta rubrica Um Deus com coração.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.