Lembro-me perfeitamente do dia em que percebi qual era a medida do meu amor. Estava na praia a observar o meu filho mais velho, na altura com sete anos, a brincar com outro rapaz, mas percebia-se que a coisa estava a azedar. Fiquei atento e, tal como esperava, passados poucos minutos estavam a discutir e daí passaram a vias de facto.
Levantei-me e em cinco ou seis passos cheguei ao local, agarrei-os, separei-os e dei a palestra do costume, sobre como as coisas não se resolvem com violência.
Mas o que me surpreendeu foi o que me passava pela cabeça durante aqueles cinco ou seis passos. Enquanto observava o começo da luta uma frase ressoava na minha cabeça: “Dá-lhe Manuel, dá-lhe!”
O meu amor, naquele dia o soube, tinha a medida do Manuel.
Hoje com seis filhos ao todo o meu amor já tem várias medidas diferentes. Quero que eles sejam bons homens e mulheres, bons cristãos, mas quando lutam há uma parte de mim que quer que eles ganhem. Porque sou pai, e é assim que as coisas funcionam.
E é por isso que é tão importante que haja pessoas que, em liberdade, escolhem um amor sem medidas. Pessoas cuja capacidade de amar não é limitada por laços de sangue nem por graus de parentesco.
Desde que escrevi o livro “Que fazes aí fechada?”, publicado em 2015, para o qual entrevistei oito religiosas de ordens diferentes, que sou de vez em quando convidado para falar sobre a vida consagrada. Conto sempre a história do Manuel para revelar o paradoxo do mundo dos consagrados, de como aqueles votos que o mundo pensa que os prende, afinal são a chave da liberdade.
É um amor duro, porque o sofrimento humano parece infinito e o amor sem medidas sente-o todo. É um amor perigoso, porque se um pai não pensa duas vezes em dar a vida pelos seus filhos, o amor sem medidas coloca a vida sempre em risco
Como a pobreza os liberta das preocupações que nós, os outros, sentimos na nossa vida mensal ou mesmo diária, das contas por pagar, das facturas por cobrar, dos gadgets por comprar; como a obediência os liberta do pior tirano de todos, as nossas vontades e vontadinhas, os bons e maus humores e sobretudo a sede de protagonismo e como a castidade os liberta de um amor que sendo fecundo e belo é sempre limitado pela medida dos nossos filhos ou esposos, abrindo caminho para um amor universal, por todos, mas especialmente por todos aqueles que não têm pais para os amar, ou que simplesmente não têm pais que os amem.
Julgo ser esta a chave para compreender a enigmática decisão de quem deixa tudo para seguir Cristo. Mas é mais do que uma chave de compreensão, é também uma chave de validação.
Aos religiosos que me lêem: É esta a vossa vocação? Consagraram-se para terem tempo de aprofundar uma carreira académica? Para fugir de um mundo que pode parecer assustador? Para ir para os países em desenvolvimento fazer ação social? Não é que essas coisas sejam más, é apenas que são muito pouco em comparação com o que deve estar no coração da vossa vocação: um amor sem limites, um amor sem medos, um amor que olha para duas crianças a lutar e não vê preferências, mas sim todas as guerras fratricidas do mundo que só o amor desinteressado e gratuito pode curar. Um amor sem norte nem sul. Um amor sem medidas.
É um amor duro, porque o sofrimento humano parece infinito e o amor sem medidas sente-o todo. É um amor perigoso, porque se um pai não pensa duas vezes em dar a vida pelos seus filhos, o amor sem medidas coloca a vida sempre em risco. Mas é um amor real. Real mesmo. De Rei. Daqueles que usam coroa. Uma coroa de espinhos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.