Recordo um encontro com jovens. Falávamos sobre discernimento e dizia-lhes os passos que convém percorrer desde que sentimos alguma coisa até que agimos: sentir; refletir sobre o que fazer com esse sentimento e depois agir. E comentava com o grupo que muitas vezes saltamos a parte da reflexão. Um jovem disse: “O problema é que às vezes nem chegamos a sentir, agimos logo”. Creio que é uma boa descrição do que se passa, muitas vezes, nas interações que acontecem nas redes sociais dando origem a discursos crispados e violentos. A constatação de que os cristãos, na forma como se expressam nas redes sociais, não estão imunes a esta prontidão para a ira, para o ressentimento e para a crítica violenta foi provavelmente um dos motivos que levou o Dicastério para a Comunicação do Vaticano a publicar uma reflexão pastoral sobre a presença nas redes sociais, intitulada: Rumo à presença plena.
A constatação de que os cristãos, na forma como se expressam nas redes sociais, não estão imunes a esta prontidão para a ira, para o ressentimento e para a crítica violenta foi provavelmente um dos motivos que levou o Dicastério para a Comunicação do Vaticano a publicar uma reflexão pastoral sobre a presença nas redes sociais, intitulada: Rumo à presença plena.
A reflexão apresentada compreende que as redes sociais não são um mero instrumento, mas que, como espaços, transformam a nossa sensibilidade, a forma como sentimos e compreendemos a realidade, reconhecendo que o mundo digital é “parte integrante da identidade dos jovens e do seu modo de viver”. Acredito que esta afirmação se pode estender a outras gerações. Em especial no contexto do mundo ocidental, mesmo quem opte por estar fora das redes, habita um mundo em que as diferentes interações humanas já estão marcadas pela sensibilidade cultural que vai emergindo do mundo digital. Na verdade, estando ou não nas redes, as redes já estão dentro de nós porque estas já contribuem de um modo cabal para o moldar da nossa consciência e da nossa sensibilidade, tanto a nível pessoal como a nível coletivo.
Sem cair na tentação de diabolizar as redes sociais, o Dicastério para a Comunicação foge de uma visão idílica que sustenta que as redes são um mero instrumento que, em si mesmo, não é bom nem mau. É necessário reconhecer os contextos e propósitos em que se desenvolvem estas tecnologias. Não podemos abdicar de um juízo ético consistente (bem distinto de um moralismo de sacristia). Só assim podemos, como faz o documento, identificar as armadilhas que as estradas digitais comportam.
É necessário reconhecer os contextos e propósitos em que se desenvolvem estas tecnologias. Não podemos abdicar de um juízo ético consistente (bem distinto de um moralismo de sacristia). Só assim podemos, como faz o documento, identificar as armadilhas que as estradas digitais comportam.
As ilusões digitais
De facto, as redes sociais têm vindo a gerar algumas ilusões: a ilusão da igualdade, a que se contrapõe a existência de um número significativo de excluídos e invisíveis digitais; a ilusão de um fortalecimento de laços sociais e comunitários geradores de um maior contacto com a diferença, a que se contrapõe a existência de bolhas de iguais favorecidas pelo modo como os algoritmos condicionam aquilo a que temos acesso e favorecendo um contacto entre iguais que reforça comportamentos sectários e populistas; a ilusão da gratuidade das ferramentas, a que se contrapõe o negócio à volta dos dados recolhidos e o incremento do valor comercial da atenção de quem navega nas redes sociais; a ilusão de um acesso mais democrático e mais generalizado à informação, a que se contrapõe a cada vez maior dificuldade em discernir a veracidade da informação que nos é oferecida.
Diante desta realidade, e inspirados pela reflexão do Dicastério para a Comunicação, podemos enunciar algumas atitudes de fundo que devem nortear a nossa presença como parte da Igreja nas redes sociais. Seguindo o propósito exposto no documento, não pretendo apresentar aqui um conjunto diretrizes que possam ser aplicadas ao jeito de um manual de instruções. A enunciação de alguns pontos pretende apenas ser um contributo para um questionamento pessoal e, eventualmente, comunitário.
Como habitar as redes sociais?
1º Fazer um exame de consciência. É possível encontrar uma linguagem excessivamente violenta e atitudes de soberba moral e espiritual em diferentes perfis identificados como cristãos. Essa violência e soberba pode incidir sobre questões de fé, mas também sobre questões sociais e políticas. Mesmo quando denuncia a injustiça, alguém que se inspire no Evangelho é chamado a um olhar de misericórdia e não a uma linguagem de diabolização do outro. Quando essa diabolização acontece, devemos reconhecer com humildade que estamos em contradição com o Evangelho (cf 50, Rumo à presença plena) que nos convida a deixarmo-nos tocar pela Misericórdia e a viver a partir desse amor a relação com os outros.
2º Dispor-se à escuta, dispor-se à misericórdia. O ícone bíblico que o documento nos propõe como inspirador da presença nas redes sociais é o do Bom Samaritano. Sem nenhuma palavra, aquele homem, que era considerado por muitos um marginal, escuta a dor silenciosa do homem caído no caminho, depois de ter sido assaltado e espancado. Há assim um convite a desenvolver uma atitude de escuta capaz de perscrutar as vozes ausentes, aqueles que estão excluídos das redes sociais. Uma escuta capaz de ouvir o grito daqueles que são violentados e humilhados nas redes sociais. Soube há pouco que estudantes universitários imigrantes em Portugal sentiram necessidade de regressar ao seu país por terem sido vítimas de bullying em redes sociais. Antes de dizer qualquer palavra, de escrever qualquer post ou publicar qualquer vídeo ou fotografia, somos convidados a escutar aqueles que nas redes sociais são deixados caídos na berma da estrada. Somos convidados a reconhecer se também nós os teremos assaltado.
3º Ser reflexivo e não reativo. Partindo do exame de consciência e desta atitude de escuta é possível reconhecer o que nos faz ferver e como estamos moldados por um mundo polarizado. Essa polarização conduz-nos a reações rápidas e maniqueístas que não passam pelo crivo do discernimento. Escutar e examinar permite-nos identificar o que sentimos, refletir e agir procurando fazê-lo numa atitude coerente com o Evangelho. O texto do Dicastério para a Comunicação recorda-nos a exortação deixada por Tiago na sua carta: “Bem o sabeis, meus amados irmãos: cada um seja pronto para ouvir, lento para falar e lento para se irar.” (Tg 1, 19). Ao fazê-lo, o apóstolo convida-nos a ser a imagem de Deus que é um “Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade” (Ex 34, 6). A conclusão do documento é clara e inspiradora: “só nos poderemos comunicar bem se ‘amarmos bem’” (cf. 65, Rumo à presença plena)
4º Enraizados em comunidades de encontro. Estas atitudes serão certamente uma ajuda para que possamos promover no contexto das redes sociais uma cultura de encontro. Mas para o fazermos será importante vivermos enraizados em comunidades de encontro em que todos se podem sentar à mesa, em que todos se podem sentir acolhidos. Se as nossas comunidades, e em especial a celebração da Eucaristia, forem uma mesa transformada numa bolha de iguais, será mais difícil que aprendamos a acolher a deixarmo-nos tocar pela dor dos outros, em especial daqueles que são diferentes de nós. Ao viver em comunidades onde experimentamos e praticamos a Misericórdia, somos preparados para, no contexto das redes sociais, estarmos prontos para a escuta, também atrasa e torna mais lenta a nossa ira.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.