Portas fechadas e mentes abertas

Dizer que a missa “pertence a todo o Corpo da Igreja” corresponde a uma visão de fundo, em que não existe qualquer competição entre os sujeitos, a qual deturparia o próprio significado da Eucaristia. Cada um é sujeito.

Dizer que a missa “pertence a todo o Corpo da Igreja” corresponde a uma visão de fundo, em que não existe qualquer competição entre os sujeitos, a qual deturparia o próprio significado da Eucaristia. Cada um é sujeito.

As portas fechadas das igrejas desencadearam uma tarefa dupla, maravilhosamente complicada: para aqueles que podem permanecer dentro das igrejas, estar lá de maneira diferente; para aqueles que não podem permanecer na igreja, saber como ser Igreja noutro lugar e de maneira diferente. Talvez no Missal Romano encontremos a solução para a nossa dificuldade em lidar com a presente situação: vejamos como.

1. Um mínimo de teologia eucarística

É um regressar a uma das fontes mais importantes do conhecimento eucarístico comum. O uso dos termos mais apropriados costuma ser o primeiro sinal de um estilo marcadamente eclesial e da utilização de um método adequado. O texto normativo oficial, ao descrever a experiência da celebração eucarística, nunca usa o termo “missa sem povo”. A grelha usada pela 3ª edição da Instrução Geral do Missal Romano (IGMR)  para falar das diferentes “formas” de celebração eucarística, é a seguinte:

– Missa com o povo
– Missa concelebrada
– Missa com participação de um só ministro

Isso ocorre porque a IGMR sabe que a missa não pode ser celebrada em privado, mesmo que se trate do Papa. A missa é, antropologicamente e eclesialmente, um fenómeno plural. Humanamente, nunca começa do 1, do indivíduo, mas do 2, de uma comunidade. Essa é a mesma sabedoria que emana também do direito canónico, quando no cânone 906 afirma: “O sacerdote não deve celebrar o sacrifício eucarístico sem a participação de, pelo menos, alguns fiéis, se não por uma causa justa e razoável”.

Com estas declarações feitas com tanta precisão, pretende-se sublinhar e priorizar o valor da celebração comum, ao passo que o caso de necessidade é recuperado apenas como uma exceção, dolorosa e pesada. A sabedoria teológica reside em perceber e comunicar essas diferenças, subtis como um fio de cabelo, mas decisivas.

 

O ato de celebrar é constitutivamente plural.

 

2. A Missa não é o “joguinho da torre”

A compreensão plena do que seja o necessário “estilo litúrgico e pastoral” pode ser retirada dos números 91-96 da IGMR. Vejamos o primeiro número:

“91. A celebração eucarística é ação de Cristo e da Igreja, ou seja, do povo santo reunido e ordenado sob a autoridade do bispo. Por isso pertence a todo o Corpo da Igreja, manifesta-o e afeta-o; no entanto, envolve cada membro de modo diverso, segundo a diversidade das ordens, das funções e da efetiva participação. Deste modo, o povo cristão, «geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo resgatado» manifesta o seu ordenamento coerente e hierárquico. Por conseguinte, todos, ministros ordenados ou fiéis cristãos leigos, ao desempenharem a sua função ou ofício, façam tudo e só o que lhes compete.”

Dizer que a missa “pertence a todo o Corpo da Igreja” corresponde a uma visão de fundo, em que não existe qualquer competição entre os sujeitos, a qual deturparia o próprio significado da Eucaristia. Cada um é sujeito. A lógica nunca é a de distinguir entre autónomo/dependente. O uso de “categorias” seria um erro. É como se aceitássemos a lógica clássica e perversa do “joguinho da torre”, em que só um – por ser indispensável – pode ficar na torre, e todos os outros, por ordem de grau de dispensabilidade, devem ser lançados abaixo: “na missa, quem lançamos primeiro da torre? O padre ou a assembleia?”

Esta lógica inclusiva emana igualmente da passagem dedicada ao presbítero (IGMR 93), na qual a autoridade do Presidente está diretamente ligada ao serviço a Deus e ao povo. Não se usam as categorias de objetivo/subjetivo, mas antes as de “serviço a Deus e ao povo”. Este serviço não pode ser separado, no sentido de que, assim como não se pode servir ao povo sem servir a Deus, também não pode servir a Deus sem servir ao povo: a oferta do sacrifício consiste em presidir às pessoas reunidas.

 

Quanto a este aspeto, seria muito oportuno recuperar, por parte de todos os fiéis e ministros eclesiais, a força destes textos, sem se deixar distrair por outros documentos seriamente enganosos que tiveram o desplante de convidar à “cautela” no uso da categoria “assembleia celebrante”.

3. Temos vergonha de dizer “assembleia celebrante”?

Isto também se repercute numa leitura rica e articulada do “ministério da assembleia”. Quanto a este aspeto, seria muito oportuno recuperar, por parte de todos os fiéis e ministros eclesiais, a força destes textos, sem se deixar distrair por outros documentos seriamente enganosos que tiveram o desplante de convidar à “cautela” no uso da categoria “assembleia celebrante”. Por vezes, parece que de repente essas lógicas apologéticas da “luta contra o abuso” nos impedem de raciocinar com “ternura” sobre as dinâmicas eclesiais. O bispo e o presbítero – deveria ser sempre claro –, “presidem a uma assembleia que celebra”. O ato de celebrar é constitutivamente plural. Por esse motivo, a IGMR 95-96 lembra que:

“95. Na celebração da Missa, os fiéis constituem a nação santa, o povo resgatado, o sacerdócio real, para dar graças a Deus e oferecer a hóstia imaculada, não só pelas mãos do sacerdote, mas também juntamente com ele, e para aprenderem a oferecer-se a si mesmos. Procurem manifestar tudo isso com um profundo sentido religioso e com a caridade para com os irmãos que participam na mesma celebração. Evitem, portanto, tudo quanto signifique singularidade ou divisão, tendo presente que são todos filhos do mesmo Pai que está nos Céus e, consequentemente, irmãos todos uns dos outros.

96. Portanto, formem todos um só corpo, quer ouvindo a palavra de Deus, quer participando nas orações e no canto, quer sobretudo na comum oblação do sacrifício e na comum participação da mesa do Senhor. Esta unidade manifesta-se em beleza nos gestos e atitudes corporais que os fiéis observam todos juntamente.”

É evidente e tocante o carácter eclesial desta arejada apresentação da experiência eucarística. Neste horizonte de “oferta comum do sacrifício e participação compartilhada na mesa do Senhor”, com a comunhão na palavra e no sacramento, a experiência da Igreja ganha forma, não se deixando fechar numa “prática de oficiais sitiados”, que trairia não apenas o munus episcopal, mas o próprio significado do ministério ordenado. Não baixar o tom do Missal Romano – para enfrentar o desafio de um tempo tão surpreendente e tão perturbador – parece-me a única maneira de realmente garantir tanto um mínimo de ternura eclesial como um mínimo de competência eucarística.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.