1. Como mel para a boca
As traduções das Escrituras deram origem a um museu gigantesco, composto por obras de arte provenientes das mais diversas civilizações. Sem esta diversidade de traduções, nunca teríamos tido o prazer de escutar, por exemplo, o magnífico Reggae dos franceses Guetteurs, cujas as letras estão cheias de referências bíblicas.
Deixe-se surpreender!
2. Um texto bíblico
Todo o povo se reuniu, como um só homem, na praça que fica diante da porta das Águas e pediu a Esdras, o escriba, que trouxesse o livro da Lei de Moisés, que o Senhor prescrevera a Israel.
O sacerdote Esdras apresentou, pois, a Lei diante da assembleia de homens e mulheres e de todos quantos eram capazes de a compreender. Foi no primeiro dia do sétimo mês.
Esdras leu o livro, desde a manhã até à tarde, na praça que fica diante da porta das Águas, e todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei. O escriba Esdras subiu para um estrado de madeira, mandado levantar para a ocasião.
Esdras abriu o livro à vista de todo o povo, pois achava-se num lugar elevado acima da multidão. Quando o escriba abriu o livro, todo o povo se levantou. Então, Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu, levantando as mãos:
– Ámen! Ámen!
Depois, inclinaram-se e prostraram-se diante do Senhor, com a face por terra. Jesua, Bani, Cherebias, Jamin, Acub, Chabetai, Hodaías, Massaías, Quelitá, Azarias, Jozabad, Hanan, Pelaías e os outros levitas explicavam a Lei ao povo, e cada um ficou no seu lugar. E liam, clara e distintamente, o livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de modo que se pudesse compreender a leitura.
Livro de Neemias 8,1-8
3. O esclarecimento
Pode-se traduzir a Bíblia?
Quando traduzimos, não corremos o risco de obscurecer o sentido do que está escrito, ou mesmo de subverter a intenção do autor?
A Bíblia dá ela mesma a resposta no texto bíblico que vos propomos: as personagens bíblicas, neste caso Esdras e os outros levitas, traduzem a Bíblia do hebraico clássico para o aramaico de todos os dias, a fim de a tornar compreensível para o maior número de pessoas possível.
As grandes versões tradicionais da Bíblia nasceram com o mesmo propósito: o chamado “texto massorético” em hebraico, a tradução dos LXX em grego, a Vulgata em latim, a Peshitta em siríaco, etc.
De facto, a própria Bíblia é uma “tradução”, pelo menos em certo sentido: nela, a Palavra de Deus, que está para além de toda a palavra, aparece “traduzida” em palavras humanas.
É também por isto que não existe a “versão” ou a “tradução definitiva” da Bíblia: as comunidades que receberam a Bíblia como Palavra de Deus empenharam-se em traduzi-la para as suas línguas vernáculas: os judeus de Alexandria para o grego, os cristão do Império romano para o latim, etc.
Existem também distintas traduções nas mais variadas línguas modernas, isto porque o tradutor deve:
- escolher entre as distintas versões antigas e entre os distintos manuscritos disponíveis,
- escolher as palavras portuguesas ou francesas ou inglesas, etc. que lhe parecem as mais adequadas. E aqui também há que respeitar a evolução das distintas línguas vernáculas.
Para um cristão, a revelação culminou em Jesus Cristo, mas a Bíblia não é um texto parado no tempo: é um texto continuamente em movimento, cujas riquezas e limites se manifestam pouco a pouco, também por intermédio das traduções.
E, no caso do Corão, a situação é idêntica?
No Islão, o Corão traduzido em português ou francês não é considerado uma versão autêntica. Só a versão em árabe, no árabe clássico do século VII, atribuída ao anjo Jibil, que a terá ditado a Maomé, é considerada sagrada.
Nada de comparável ao que acontece no cristianismo: todas as versões do grande Israel (o da sinagoga e o das Igrejas apostólicas) são consideradas inspiradas. A Palavra de Deus ressoa nesta polifonia.
Nesse sentido, o cristianismo não é propriamente uma religião do livro, mas sim uma religião “com livro”. Para os cristãos, as Escrituras funcionam como uma espécie de “auxiliar de memória”, sagrado, é certo, mas ainda assim um “auxiliar de memória”. A Bíblia é tudo menos um livro que se impõe pela força. É uma espécie de prisma do qual brotam interpretações que se multiplicam até ao infinito!
Por isso, a inspiração divina das Escrituras diz respeito não só aos autores, mas também a todos os seus múltiplos tradutores, porque traduzir é também interpretar.
Umas breves palavras sobre esta obra: no século V, São Jerónimo traduziu a Bíblia para latim a partir dos manuscritos hebraicos disponíveis na sua época, alguns dos quais se perderam. Para isso, instalou-se numa gruta em Belém, mesmo ao pé da gruta da Natividade: uma garantia de inspiração! A sua versão da Bíblia, chamada Vulgata, continua a ser uma referência no seio da Igreja católica ocidental.
4. E ainda uma palavra final…
A questão da tradução dos textos reenvia-nos para a noção de “tradição”. Como é que podemos permanecer fiéis à herança recebida, ao mesmo tempo que tentamos vivê-la de uma forma nova em cada época? Sobre esta questão, o grande rabino de França, Haim Korsia, deixa-nos algumas pistas:
“Não podemos encerrar-nos na repetição do que sempre fizemos. Hoje em dia, a força das religiões depende da sua capacidade de se adaptar ao mundo, permanecendo um lugar de referência numa sociedade que precisa de pontos fixos. É preciso viver entre a adaptação e a permanência. É esse o sentido da palavra halakha em hebraico, que significa simultaneamente “lei” e “caminhar”: para nós, a regra é uma lei em movimento; ela protege-nos da erosão pelo tempo.”
Haim Korsia, entrevista realizada por Bruno Bouvet e Nicolas Senèze para o jornal La Croix (30.09.2015)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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