Pode-se traduzir a Bíblia?

Reggae (outra vez!), o grande rabino de França, alguns manuscritos surpreendentes, um Caravaggio e ainda uma comparação entre a Bíblia e o Corão.

Reggae (outra vez!), o grande rabino de França, alguns manuscritos surpreendentes, um Caravaggio e ainda uma comparação entre a Bíblia e o Corão.

1. Como mel para a boca

As traduções das Escrituras deram origem a um museu gigantesco, composto por obras de arte provenientes das mais diversas civilizações. Sem esta diversidade de traduções, nunca teríamos tido o prazer de escutar, por exemplo, o magnífico Reggae dos franceses Guetteurs, cujas as letras estão cheias de referências bíblicas.

Deixe-se surpreender!


2. Um texto bíblico

Todo o povo se reuniu, como um só homem, na praça que fica diante da porta das Águas e pediu a Esdras, o escriba, que trouxesse o livro da Lei de Moisés, que o Senhor prescrevera a Israel.

O sacerdote Esdras apresentou, pois, a Lei diante da assembleia de homens e mulheres e de todos quantos eram capazes de a compreender. Foi no primeiro dia do sétimo mês.
Esdras leu o livro, desde a manhã até à tarde, na praça que fica diante da porta das Águas, e todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei. O escriba Esdras subiu para um estrado de madeira, mandado levantar para a ocasião.

Esdras abriu o livro à vista de todo o povo, pois achava-se num lugar elevado acima da multidão. Quando o escriba abriu o livro, todo o povo se levantou. Então, Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu, levantando as mãos:

– Ámen! Ámen!

Depois, inclinaram-se e prostraram-se diante do Senhor, com a face por terra. Jesua, Bani, Cherebias, Jamin, Acub, Chabetai, Hodaías, Massaías, Quelitá, Azarias, Jozabad, Hanan, Pelaías e os outros levitas explicavam a Lei ao povo, e cada um ficou no seu lugar. E liam, clara e distintamente, o livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de modo que se pudesse compreender a leitura.

Livro de Neemias 8,1-8


3. O esclarecimento

Pode-se traduzir a Bíblia?

Quando traduzimos, não corremos o risco de obscurecer o sentido do que está escrito, ou mesmo de subverter a intenção do autor?

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Edição poliglota das Escrituras (Walton, século XVII), contendo versões em siríaco, hebraico e grego (Biblioteca da École biblique et archéologique française de Jerusalém).

A Bíblia dá ela mesma a resposta no texto bíblico que vos propomos: as personagens bíblicas, neste caso Esdras e os outros levitas, traduzem a Bíblia do hebraico clássico para o aramaico de todos os dias, a fim de a tornar compreensível para o maior número de pessoas possível.

As grandes versões tradicionais da Bíblia nasceram com o mesmo propósito: o chamado “texto massorético” em hebraico, a tradução dos LXX em grego, a Vulgata em latim, a Peshitta em siríaco, etc.

De facto, a própria Bíblia é uma “tradução”, pelo menos em certo sentido: nela, a Palavra de Deus, que está para além de toda a palavra, aparece “traduzida” em palavras humanas.

É também por isto que não existe a “versão” ou a “tradução definitiva” da Bíblia: as comunidades que receberam a Bíblia como Palavra de Deus empenharam-se em traduzi-la para as suas línguas vernáculas: os judeus de Alexandria para o grego, os cristão do Império romano para o latim, etc.

Existem também distintas traduções nas mais variadas línguas modernas, isto porque o tradutor deve:

  • escolher entre as distintas versões antigas e entre os distintos manuscritos disponíveis,
  • escolher as palavras portuguesas ou francesas ou inglesas, etc. que lhe parecem as mais adequadas. E aqui também há que respeitar a evolução das distintas línguas vernáculas.

Para um cristão, a revelação culminou em Jesus Cristo, mas a Bíblia não é um texto parado no tempo: é um texto continuamente em movimento, cujas riquezas e limites se manifestam pouco a pouco, também por intermédio das traduções.

 

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Página com a primeira surata de um manuscrito do Corão editado em 1867, em Istambul.

E, no caso do Corão, a situação é idêntica?

No Islão, o Corão traduzido em português ou francês não é considerado uma versão autêntica. Só a versão em árabe, no árabe clássico do século VII, atribuída ao anjo Jibil, que a terá ditado a Maomé, é considerada sagrada.

Nada de comparável ao que acontece no cristianismo: todas as versões do grande Israel (o da sinagoga e o das Igrejas apostólicas) são consideradas inspiradas. A Palavra de Deus ressoa nesta polifonia.

Nesse sentido, o cristianismo não é propriamente uma religião do livro, mas sim uma religião “com livro”. Para os cristãos, as Escrituras funcionam como uma espécie de “auxiliar de memória”, sagrado, é certo, mas ainda assim um “auxiliar de memória”. A Bíblia é tudo menos um livro que se impõe pela força. É uma espécie de prisma do qual brotam interpretações que se multiplicam até ao infinito!

Por isso, a inspiração divina das Escrituras diz respeito não só aos autores, mas também a todos os seus múltiplos tradutores, porque traduzir é também interpretar.

 

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Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), São Jerónimo (1606), Galeria Borghèse, Roma, Itália.

Umas breves palavras sobre esta obra: no século V, São Jerónimo traduziu a Bíblia para latim a partir dos manuscritos hebraicos disponíveis na sua época, alguns dos quais se perderam. Para isso, instalou-se numa gruta em Belém, mesmo ao pé da gruta da Natividade: uma garantia de inspiração! A sua versão da Bíblia, chamada Vulgata, continua a ser uma referência no seio da Igreja católica ocidental.   


4. E ainda uma palavra final…

A questão da tradução dos textos reenvia-nos para a noção de “tradição”. Como é que podemos permanecer fiéis à herança recebida, ao mesmo tempo que tentamos vivê-la de uma forma nova em cada época? Sobre esta questão, o grande rabino de França, Haim Korsia, deixa-nos algumas pistas:

“Não podemos encerrar-nos na repetição do que sempre fizemos. Hoje em dia, a força das religiões depende da sua capacidade de se adaptar ao mundo, permanecendo um lugar de referência numa sociedade que precisa de pontos fixos. É preciso viver entre a adaptação e a permanência. É esse o sentido da palavra halakha em hebraico, que significa simultaneamente “lei” e “caminhar”: para nós, a regra é uma lei em movimento; ela protege-nos da erosão pelo tempo.”

Haim Korsia, entrevista realizada por Bruno Bouvet e Nicolas Senèze para o jornal La Croix (30.09.2015)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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