Uma história antiga
Pequim, século XVI. O jesuíta Matteo Ricci, depois de ter atravessado os mares e entrado no Reino do Meio, “com respeito pela virtude do Filho do Céu da grande dinastia Ming” – o Imperador – conhece o Príncipe Jian’an. De acordo com Ricci, Jian’an ter-lhe-á dito: “Gostaria de saber quais são os discursos (do Ocidente) sobre os caminhos da amizade”. Com diligência, Ricci apressou-se em escrever uma copilação de cem máximas intituladas Fuyoulun ou Da Amizade. Diz a décima máxima:
“Amigos e inimigos são como a música e o barulho, distinguindo-se somente pela harmonia ou pela falta dela. Harmonia é, portanto, a base da amizade. Com harmonia, pequenas coisas tornam-se grandes. Com desarmonia, grandes coisas murcham e falham.”
A aproximação diplomática
Pequim, século XXI. A recente aproximação diplomática entre o governo chinês e a Santa Sé tem criado uma grande desarmonia entre católicos de todas as partes do mundo, de modo particular dentro da própria China. Em Novembro de 2017, entrevistado pelo The Guardian, o cardeal emérito de Hong Kong, Joseph Zen, descreveu a ação do Papa como uma traição a Cristo e descreveu a intenção dos bispos católicos da Associação Patriótica como indigna de confiança. Por outro lado, para o atual arcebispo de Hong Kong, John Tong, o acordo expressa um realismo saudável por parte da Santa Sé que, escolhendo o mal menor, abre para os católicos chineses a possibilidade de usufruírem de uma liberdade essencial no exercício da sua vida eclesial. Se bem que, acrescenta o cardeal, esta liberdade essencial não é ainda uma liberdade completa.
Como lidar com esta desarmonia? Num ato invulgar de fé, o Cardeal Newman afirmou no Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina que nos momentos em que um novo desenvolvimento acontece na vida da Igreja, é natural que surja uma certa desarmonia, uma pluralidade de vozes, sínteses e visões, até que uma nova harmonia ou unidade volte a surgir. Será o caso?
Ouvir os especialistas
Para responder a muitas das questões que têm sido levantadas foram ouvidos quatro especialistas que têm acompanhado a situação:
Francesco Sisci: tendo conversado pessoalmente com o Papa Francisco sobre as disposições e intenções de ambas partes para o acordo diplomático, é um sinólogo italiano, residente em Pequim.
Ian Johnson,:residente em Pequim e vencedor do prémio Pulitzer, é um jornalista e escritor canadiano que se dedica aos temas de sociedade, religião e história.
Padre Giovanni: residente em Pequim, intenso colaborador com várias redes de solidariedade cristãs.
P. Ignacio Ramos,sj: professor na Universidade Pontifícia de Comillas, em Madrid, promotor de várias atividades interculturais por meio da embaixada espanhola em Pequim.
O acordo diplomático vai ser contemplado desde três dimensões: diplomática, sociológica e eclesial.
Dimensão Diplomática
Nos últimos anos, as resistências do Partido Comunista a inaugurar as conversas com a Santa Sé podem resumir-se em dois aspetos: o reconhecimento político de Taiwan por parte do Vaticano; alegadas intervenções católicas em assuntos internos chineses, feitas em nome da religião. O que terá causado a recente mudança de posição por parte de Pequim? Em entrevista à Aljazeera, Francesco Sisci justificou esta mudança no possível impacto que teve sobre Xi Jinping, presidente do Partido Comunista Chinês, a mobilização social gerada pela visita do Papa Francisco aos Estados Unidos, em Setembro de 2015. Recorde-se que a visita de Xi Jinping aos Estados Unidos coincidiu com a do líder da Igreja católica, e recebeu muito menos atenção televisiva que a de Francisco.
O Papa Francisco, tal como os seus predecessores, João Paulo II e Bento XVI, sempre quis normalizar quanto antes a relação com o governo chinês. O que dá o protagonismo a Francisco é que a oportunidade de tocar a corda certa no momento certo aconteceu durante o seu pontificado.
Por outro lado, que está por detrás da resolução do Vaticano em atingir este acordo diplomático? Em conversa com o Dr. Francesco Sisci perguntamos-lhe se ele se apercebeu, na sua conversa com o Papa Francisco, de alguma intenção particular do Papa em reatar as relações diplomáticas com a China. A isto, respondeu-nos que “o Papa Francisco, tal como os seus predecessores, João Paulo II e Bento XVI, sempre quis normalizar quanto antes a relação com o governo chinês. O que dá o protagonismo a Francisco é que a oportunidade de tocar a corda certa no momento certo aconteceu durante o seu pontificado”.
Porém, perguntamos, no que diz respeito à normalização da vida eclesial na China, este processo diplomático nos deixa com uma ou com duas igrejas (patriótica e clandestina)? Francesco Sisci comentou: “Como disse o Cardeal Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, não há na China duas igrejas mas duas comunidades. Isso não quer dizer que não haja divisões, e essas devem ser tratadas e curadas com o cuidado que merecem. Porém, é interessante verificar que, contrariamente ao que disseram alguns jornais estrangeiros, nenhum bispo da China continental protestou contra o acordo, incluindo os das comunidades ditas clandestinas”.
Nenhum bispo da China continental protestou contra o acordo, incluindo os das comunidades ditas clandestinas.
Finalmente, considerando o impacto de vozes como a do Cardeal Joseph Zen, perguntamos como será possível encontrar um plano de comunhão entre bispos face a este acordo? “Efetivamente, respondeu Sisci, a situação da Igreja Católica na China, bem como das outras religiões, não é a ideal. Porém, o acordo dá-nos razões de esperança. É um passo histórico porque é a primeira vez, ao fim de um milénio de história do Cristianismo na China, que o ‘Imperador’ permite que haja uma divisão de competências entre o político e o religioso. É uma novidade tanto para a China como para o mundo”.
Dimensão Sociológica
Em conversa com o jornalista Ian Johnson, cujo último livro The Souls of China resultou em grande parte de visitas a comunidades religiosas na China continental, o Ponto SJ perguntou até que ponto é que o recente acordo vai ajudar o católico comum a viver melhor a sua vida cristã. A isto, Ian Johnson respondeu: “o acordo vai facilitar a que o católico comum se sinta mais confortável nos atos públicos de louvor. Além disso, muitos cristãos da Igreja patriótica vão sentir-se mais em casa com um bispo que, além de ser aprovado pelo Partido, também é escolhido por Roma. Porém, é preciso não esquecer que este processo vai ser pessoalmente difícil para certos membros da comunidade dita clandestina, que não vão entender porque razão um bispo ontem não era aprovado pelo Vaticano e agora já o é. O caminho será lento. A divisão começou a acentuar-se a partir do ano de 1951, isto é praticamente há 70 anos. Portanto, é natural que a confiança leve algumas décadas a ser reestabelecida”.
É preciso não esquecer que este processo vai ser pessoalmente difícil para certos membros da comunidade dita clandestina, que não vão entender porque razão um bispo ontem não era aprovado pelo Vaticano e agora já o é.
Desde o ponto de vista institucional, a Igreja vai ter mais autonomia depois deste acordo? – perguntamos. “É difícil saber porque ninguém sabe ao certo quais são os conteúdos do acordo, apenas que se está a negociar e que passos mais concretos hão de emergir. Ainda assim, como até agora só o Partido Comunista é que tinha autoridade sobre a nomeação episcopal, este passo possibilita que a Igreja passe a ter alguma voz no processo; o que é certamente uma vitória para os católicos chineses”.
Dimensão Eclesial
Em conversa com o Padre Giovanni, o Ponto SJ perguntou qual será o papel exato do Governo Chinês e da Santa Sé no processo de seleção e nomeação dos bispos. Ao que nos respondeu: “Por enquanto não se fala de funções exatas, apenas da vontade das partes em chegar a um acordo concreto. Só quando o processo estiver concluído se poderá falar de funções exatas. De acordo com o Cardeal Parolin chegou-se a um acordo, mas não necessariamente às modalidades práticas da sua realização”.
Só quando o processo estiver concluído se poderá falar de funções exatas. De acordo com o Cardeal Parolin chegou-se a um acordo, mas não necessariamente às modalidades práticas da sua realização”.
Questionado sobre o impacto deste acordo sobre comunidades locais da Igreja católica chinesa, o sacerdote italiano afirmou que “esta medida vai afetar as comunidades locais não tanto do ponto de vista estrutural, mas como um convite inspirador a contrapor as grandes feridas do passado com gestos pequenos e práticos de reconciliação, partilha de histórias e responsabilidades. Há uma necessidade urgente de promover a reconciliação entre as comunidades dividas, com paciência e com respeito mútuo. É esse, no meu modo de ver, o grande efeito deste processo diplomático”.
Porém, perguntamos, será que as comunidades clandestinas vão ter mais dificuldade em aceitar estas medidas? “Alguns especialistas creem que sim. Pessoalmente acho que as comunidades chamadas clandestinas são tão diversas, dependendo da sua história e localização, que me parece impossível definir ao certo um modelo único de reação. Estou convencido, neste sentido, que o acordo tem criado mais hostilidade fora da China continental do que dentro. Maioritariamente, dentro da China continental, tenho recebido respostas positivas e muitas expressões de esperança acerca dos próximos passos”.
Esta distinção feita pelo sacerdote italiano, entre as reações vindas de fora da China e as vindas de dentro, alerta-nos para uma distinção fundamental: a receção do recente acordo diplomático é protagonizada tanto pela igreja local como pelas demais igrejas que constituem a Igreja universal. No sentido de endereçar a receção por parte das demais igrejas que constituem a Igreja universal, conversamos com o P. Ignacio Ramos, jesuíta que mantém um grande interesse e conhecimento da cultura chinesa.
Em conversa, o Ponto SJ perguntou até que ponto é que o recente acordo diplomático põe em questão o número 20 de Christus Dominus (Concilio Vaticano II) bem como o artigo 377.5 do Código do Direito Canónico, no quais se afirma que apenas a Santa Sé, e não o Estado, têm autoridade para nomear os sucessores dos apóstolos. O sacerdote espanhol afirmou: “O único que nomeia é o Papa mesmo que o processo não esteja exclusivamente nas mãos do Vaticano. Tal como no exercício da obediência na Vida Religiosa consagrada, o superior envia sob a sua autoridade, ainda que por vezes a iniciativa venha do sujeito enviado ou de outros fatores externos. A obediência cristã é precisamente um compromisso entre diversas forças e espíritos, que finaliza com um envio recebido em liberdade. A situação atual possibilita o uso desta liberdade. De acordo com o cardeal de Hong Kong, John Tong, trata-se de uma liberdade essencial mas incompleta. Por esta razão, estou convencido de que este passo representa um grande progresso porque torna real a unidade canônica da Igreja pela primeira vez na China, desde o tempo da instauração da República Popular (1 de Outubro de 1949). Este passo, no fundo, desafia a Igreja universal a repensar o modo como entendemos a comunhão na Igreja: como um diálogo ou como um mero cumprimento de requisitos? Trata-se de um modo de ser igreja que deve ser acolhido mais além das fronteiras da comunidade eclesial chinesa. O Papa lidera-nos nesta atitude de entrar num diálogo livre de etiquetas, como Cristo perante os fariseus e os publicanos, ou Pedro com Cornélio, ou Paulo com os gregos no areópago”.
O único que nomeia é o Papa mesmo que o processo não esteja exclusivamente nas mãos do Vaticano.
Quais são os passos que se seguem?
Quais são os passos que se seguem? Não sabemos. O que sabemos é que, justamente influenciados por certos momentos da história, o sentir comum do catolicismo ocidental habituou-se a conceber as lutas entre Catolicismo e Comunismo com conceitos análogos aos da relação entre Don Camillo e Peppone. Observávamos os seus movimentos como os do gato e do rato, confiando que no fim o espiritual sempre prevaleceria sobre o temporal. Desta vez, Camillo e Peppone, Francisco e Xi Jinping aproximam-se sem darem sinais de querer derrotar-se um ao outro.
Será o recente passo diplomático um simples, mas essencial, reconhecimento mútuo? Trata-se tudo isto de um simples, mas essencial, assumir da modernidade secular por duas das culturas mais milenares do nosso tempo?
Na verdade, terminada a era dos grandes ismos que dividiram o mundo desde a segunda grande guerra até à guerra fria, é urgente continuar a buscar modelos e parâmetros renovados para a instauração de diálogos interculturais. Neste sentido, um dos grandes acentos da Escola filosófica de Frankfurt, liderada por Jurgen Habermas, tem sido o de afirmar que nas sociedades secularizadas todo e qualquer diálogo deve ser precedido por um reconhecimento mútuo de ambas as partes como parceiros idóneos. Será o recente passo diplomático um simples, mas essencial, reconhecimento mútuo? Trata-se tudo isto de um simples, mas essencial, assumir da modernidade secular por duas das culturas mais milenares do nosso tempo?
No fundo, Matteo Ricci, bem antes de Habermas, já tinha percebido que um diálogo só pode acontecer quando se reconhece que o nosso parceiro de diálogo é digno de consideração, risco e até mesmo confiança.
Regressemos aonde começamos: a Matteo Ricci. Não podemos afirmar com certeza que o está a acontecer entre Pequim e Roma se trata de um simples, mas essencial, passo de reconhecimento mútuo, tal como ficou sugerido pela menção à escola de Frankfurt. O que sabemos é que, entre os pontos 91 e 100 da sua copilação de máximas sobre a amizade, depois de louvar extensivamente a sabedoria ocidental à cerca da amizade, Ricci reconhece como muitos pensadores e virtuosos chineses já tinham feito afirmações muito semelhantes a grandes máximas ocidente. No fundo, Matteo Ricci, bem antes de Habermas, já tinha percebido que um diálogo só pode acontecer quando se reconhece que o nosso parceiro de diálogo é digno de consideração, risco e até mesmo confiança.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.