“A tua imagem projectada sobre mim será o suficiente para me transformar”, escreve Pedro Arrupe em jeito de oração. Homem de Deus, servidor da cultura, da fé e da justiça. Diremos, da fé e da política. Recebeu incompreenções, mesmo da Santa Sé, em tempos de adaptação, dias difíceis do pós-Vaticano II, mas permanece com visão de futuro, apontando caminhos que, hoje, passados tantos anos, se encontram na ordem do dia. Funda o JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados – sendo preocupação sua as migrações, os refugiados, a defesa das mulheres, o diálogo com o Oriente. E quando sentiu que perdia forças pede a resignação, numa época em que tal ainda era pouco habitual, o primeiro a fazê-lo na história da ordem, sendo incompreendido por isso por muitos, em particular pela Santa Sé, mais ainda pela opção tomada da entrega provisória dos destinos da Companhia a O’keefe, jesuíta americano considerado liberal.
Serviço à humanidade
Pedro Arrupe Gondra (1907-1991) nasce a 14 de Novembro de 1907 no Casco Viejo de Bilbao, de uma família católica, de seus pais Dolores Gondra y Robles e de Marcelino de Arrupe y Ugarte, com 5 filhos. Pedro (Peru ou Perico, lhe chamavam em pequeno) e 4 irmãs. Sua mãe morre quando era pequeno, com 8 anos apenas, mas seu pai mais tarde, pelos seus 18 anos. Estuda Medicina na Universidade Complutense de Madrid, desde 1923, que interrompe em 1927, no quarto ano, para ingressar na Companhia de Jesus, sendo destinado para o Japão para onde parte em 1938, a seu pedido, como missionário. Eleito Prepósito Geral, de 1965 a 1983 quando então resigna, vigésimo oitavo superior geral dos jesuítas, recoloca a Companhia ao serviço, no espírito inaciano, com respostas necessárias ao seu tempo. Os jesuítas são uma ordem com especial obediência ao Papa, o que prova plenamente na sua vida e particularmente em seus últimos dias. Regressado de uma viagem longa e cansativa cai doente com um ataque fulminante que o atira para o hospital e posteriormente para um quarto de enfermaria na Cúria. Inválido durante cerca de 10 anos, finalmente com uma agonia que dura umas 10 horas. Morre a 5 de Fevereiro de 1991, dia de aniversário dos Mártires do Japão. A 5 de Fevereiro de 2020 dá-se a introdução do processo canónico da causa da canonização, sendo no presente Servo de Deus. Com sua vida de contemplativo na acção, aprendemos a ser para os outros. Foi profeta e místico. Familiar na oração. Unido a Deus. “A oração retirada prolongada (preferencialmente de noite), também a breve, mas intensa, em circunstâncias difíceis em que se pede ao Senhor uma solução de um problema, são os momentos mais propícios” (Arrupe, Aqui me tienes, Señor, Bilbao: Mensajero, 2006, 60).
Espião internacional
Depois de sair de Espanha, expulso pela república, em 1932, segue para a Bélgica, Holanda, Alemanha e EUA onde chega em 1936. Vai para o Japão em 1938. A barreira da língua, a dificuldade de adaptação a um novo estilo de vida, não lhe permitem grandes voos de início. Os métodos de missionação que usa são muitas vezes os mesmos de Francisco Xavier, o primeiro apóstolo em terras japonesas, um dos seus inspiradores. Cantava, chamava para o ensino e para as suas catequeses que transmitia com entusiasmo. Havia inicialmente pouco auditório. Um “ouvinte”, que o olhava fixamente, como se tudo entendesse, atento aos sinais que vinham do seu rosto e da sua expressão, extasiado, nunca faltando às palestras, era afinal surdo (!) mas consegue ler os lábios e sobretudo a atitude. O que arrasta nem sempre é o que se diz. Começam a vir ter com ele, promove iniciativas que despertam interesse como uma procissão que organiza embora sem quaisquer meios, ou uma outra qualquer acção para atrair a atenção como sessões de ginástica com jovens. Promove, pois, uma comunidade amiga, atenta, construtiva, convertida, que dará frutos. Entretanto é preso, sofrendo as agruras da impiedade. “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo ou a espada? Em tudo isto somos vencedores, graças Àquele que nos amou” (Rom 8, 35. 37). Acusado de espião internacional, tudo sofre por amor àquele povo. E quando deflagra a bomba atómica sobre Hirochima, a 6 de Agosto de 1945, assiste muitas das vítimas servindo-se dos seus conhecimentos médicos, transformando a sua casa em hospital.
Obediente até às lágrimas
Homem santo, afirmamos, sem com isso querermos decidir nada quanto a Igreja não decida. Porém,
na sua vida, é manifesto fazer sempre a vontade de Deus. “Para mim Jesus é Tudo”, dirá. “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20a). Sofre muito com os novos tempos pós-conciliares. Aceita e conforma-se, obediente, mas lutando consigo mesmo como Jesus no Getsémani: faça-se “como Tu queres” (Mt 26, 39), e não a minha vontade. Escreve aos jesuítas recomendações várias como, a 19 de Outubro de 1977, a Carta sobre a disponibilidade, como que lembrando, direi, a Carta da obediência de Inácio. Sofrerá grande contestação, interna e externamente, enquanto superior geral da ordem que, à época, vinha precisamente e sobretudo da sua terra, de seus conterrâneos, da sua Espanha, quer da Companhia quer também de outras instituições da Igreja: “profeta desprezado na sua pátria” (Mc 6,4). Foi muito contestado na Congregação Geral 32, em 1974. Já então havia restauracionistas. Contavam-se anedotas dizendo que, desde Santo Inácio, passando por todos os outros superiores gerais jesuítas, sempre se congregou esta “milícia” para “unir as tropas”, mas Arrupe mandou “destroçar”! Achava graça a estas e outras brincadeiras, rindo-se, com humor, de si próprio. Em 1975 tinham saído, desde 1962, uns 6 mil jesuítas e numa entrevista à RAI afirma que ainda poderão sair mais, eram tempos de adaptação, acrescentava. E sempre com um sorriso e com um olhar profundo de esperança. Vale a pena ler os seus Apuntes dos Exercícios Espirituais de 1965. Também os escritos deixados pelo Irmão Bandera sobre este Don Pedro, citados por Lamet, quando o acompanhava na doença, comoventes e esclarecedores, mormente quando chora ao receber – uma das mais dolorosas dores da sua vida – a carta do Papa.
Homem do futuro
Xavier Melloni, em entrevista em “Ponto SJ” (20.5.2022) dirá: “[Pedro Arrupe] não tinha nostalgia pelo passado, mas do futuro. E, por isso, não sentia que tivesse nada que defender”. Lançou-se ao futuro, resolvendo a cada momento, no presente, em função do porvir. Mesmo nos momentos mais dolorosos continuou essa postura com esperança. Jean-Yves Calvez, seu Assistente em Roma, refere: “Perante a incompreensão, a aparente frieza de João Paulo II, o Padre Arrupe nunca se resignou, não deixava de fazer gestos, arriscando surpreender, para marcar a sua devoção, como… ir pôr-se à porta da casa generalícia dos jesuítas todas as vezes que por aí passava o cortejo do Papa para visitar, cada Domingo à tarde, paróquias romanas. Estava lá para saudar, mesmo quando isso não suscitava grande resposta. Com outros, guardei esta recordação…” (“Brotéria”, As escolhas do Padre Arrupe, Novembro 2007, 330). E o actual Papa Francisco em audiência aos directores de revistas europeias dos jesuítas, entre os quais estava o P. José Frazão Correia, diz: “… não eram nascidos, mas testemunhei, em 1974, o calvário do Geral P. Pedro Arrupe, na Congregação Geral 32. Nessa altura houve uma reacção conservadora para bloquear a voz profética de Arrupe. Hoje, para nós, esse Geral é um santo, mas teve de sofrer muitos ataques. Foi corajoso, porque ousou dar um passo em frente.” (“Brotéria”, As ideias discutem-se, a realidade discerne-se para agir… (Julho 2022, 16).
Santos do pé da porta
Tive a felicidade de conhecer, pessoalmente, Pedro Arrupe, sendo eu então jesuíta-estudante (“Escolástico”), em 17 de novembro de 1971, em Lisboa, guardando religiosamente uma foto sua comigo juntamente com outros 3 companheiros meus (Arsénio Castro Silva, Paulo Eufrásio, Sílvio Moreira, que serão missionários no Algarve e em Moçambique). Sílvio Alves Moreira foi mártir juntamente com João de Deus Kamtedza, os mártires de Chapotera, Moçambique, precisamente por defenderem o ideário dos jesuítas, ou seja, a promoção da fé e da justiça nessas terras de missão, ambos com causa introduzida. Vi e estive com santos. Tantas vezes passam, e nós distraídos. Este mesmo Geral, Arrupe, em 1980, em Lisboa, no Marquês de Pombal, parou para rezar, ajoelhado, o Geral jesuíta que reza junto de quem persegue, imagem icónica.
Pedido de perdão que se espera
Uma bela imagem junto à imponente estátua de Pombal. O grande Arrupe, o Geral que se adiantou ao seu tempo e que apresentará a sua renúncia em 1983, ajoelhado, reza. Imagem poderosa que pode recordar a um Portugal que expulsou os jesuítas influenciando o mundo até que Clemente XIV os extingue. Teremos uma ocasião única na JMJ – Jornada Mundial da Juventude – de 2023, se as circunstâncias o proporcionarem, na mesma Lisboa, frente a milhares de jovens que se esperam e que representam o futuro, para um pedido de desculpa, oficial e solene, na pessoa de um jesuíta também, o Papa Francisco. “Gente tão boa que foi tão mal tratada” (V. Lima, Cronologia dos Jesuítas em Portugal, Lisboa: ML, 2017, 346).
A devoção
Diz Francisco, primeiro jesuíta que chega a Papa, que: “o nome de Deus é Misericórdia”. Como sabemos, Margarida Maria Alacoque, no século XVII, em França, em pleno Jansenismo, vidente do Coração de Jesus, recebe a indicação de que o jesuíta La Colombiere será o propagador desta devoção no mundo, encargo em seguida assumido pela Companhia. E Arrupe, logo a 17 de Julho de 1965, 3 dias após ser eleito Geral, comunica a todos os superiores jesuítas as Litterae Pontificiae de Paulo VI e, numa época em que tal devoção era posta em causa, “melíflua” diziam alguns, reprova tal atitude e nega que se trate de devoção antiquada, fazendo a consagração da Companhia na senda de seus antecessores (“caminho do Coração”). “Nós renovamos a consagração da Companhia ao Coração de Jesus e prometemos-Te a maior fidelidade, pedindo a Tua graça para continuarmos a servir-Te” (Excerto da Oração do P. Pedro Arrupe). A Família Inaciana, nestre Ano Inaciano, jesuítas e leigos, celebraram, em festa e partilha, a 12 de Março de 2022 (400 anos da canonização de Inácio de Loiola e de Francisco Xavier), em Fátima, Cova da Iria, entregando-se a Cristo por Maria. O actual Geral Padre Sosa, em Loiola, preside à celebração do dia do encerramento do Ano Inaciano, dizendo que: “o nosso tempo é complexo como o de Inácio, e se aqui em Loiola começou para ele um novo itinerário de vida com a sua conversão, hoje, novamente em Loiola, cada um de nós recebe um convite para se comprometer com generosidade ao serviço dos outros, com rendição completa”. Tão semelhantes palavras com tantas outras de Arrupe ao longo do seu generalato, a mesma linha condutora. E procura-se, hoje, actualizar o AO (Apostolado da Oração), agora RMOP (Rede Mundial de Oração do Papa).
Ao estilo de Arrupe
No hodierno Ano Inaciano, que teve início a 20 de Maio de 2021 (“Ver novas todas as coisas em Cristo”, este é o lema), ano especial convocado pelo Superior Geral para celebrar os 500 anos da conversão do Fundador, e, a seu pedido, na sua conclusão, a 31 de Julho de 2022, Festa de Santo Inácio de Loiola, em todo o mundo, Padre Sosa pede que se faça a consagração ao Coração de Jesus com o texto do Padre Arrupe. Em Portugal, com a Família Inaciana (Província Portuguesa), celebrou-se este dia em todo o país, em particular Lisboa, Braga, Porto, Coimbra, Covilhã, Pragal, Évora, Portimão. Em Lisboa, como noutros lados, fez-se a consagração, aqui pela voz do Vice-Provincial António Sant’Ana, em substituição do Provincial Miguel Almeida por estar doente, na igreja de S. Roque, templo histórico jesuítico, onde está sepultado o primeiro provincial da Companhia, Simão Rodrigues, companheiro inicial de Inácio de Loiola, além de Gonçalves da Câmara, de Pedro da Fonseca e de outros jesuítas que foram aí residentes. Presente o Conselheiro da Nunciatura Mgr. Gian Luca Perici em representação do Núncio Apostólico em Portugal D. Ivo Scapolo. O coordenador do Ano Inaciano, que entre nós foi Miguel Pedro Melo (Missé) refere este Ano Inaciano: “uma janela aberta para a conversão contínua”. Nesse dia, uma igreja de S. Roque, em Lisboa, cheia (“Se Paris foi a cidade onde germinou a Companhia de Jesus e Roma a cidade onde foi fundada oficialmente, Lisboa foi o seu berço1, mesmo antes da aprovação papal” (V. António Lopes, Roteiro histórico dos jesuítas em Portugal, Porto/Braga; AI/AO, 1985, 7). Colaboradores SJ, amigos, benfeitores, leigas e leigos, religiosas, sacerdotes jesuítas, irmãos jesuítas, momento solene vivido com intensidade, comunidade activa e consciente, e o acompanhamento dos cânticos do grupo coral Magis. No final, um convívio animado e fraterno no adro da igreja de S. Roque e na Brotéria, continuou, fim da tarde e noite fora, em dia estival de alta temperatura (também espiritual), e todos tendo presente por certo este magno Geral Pedro Arrupe, que inspira hoje tal consagração e que nas suas últimas palavras nos diz: “Para o presente, Amen. Para o futuro, Aleluia”.
Nota: O autor escreve conforme as normas do Antigo Acordo Ortográfico, como aprendeu.
Bibliografia seleccionada:
Pedro Arrupe, Aqui me tienes, Señor. Apuntes de sus Ejercicios Espirituales (1965), int. transc. e notas de Ignacio Iglesias, Bilbao: Mensajero, 2006; Papa Francisco, As ideias discutem-se, a realidade discerne-se para agir, em conversa com os directores das revistas culturais europeias dos jesuítas, em Brotéria (Julho 2022, 10-18); Jean-Yves Calvez, As escolhas do Padre Arrupe, em “Brotéria” (Novembro 2007, 319-330); Gonçalo Miller Guerra, Padre Pedro Arrupe, um santo dos dias de hoje (Braga: AO, 2021); Pedro Miguel Lamet, Pedro Arrupe, Testenunha do Século XX, Profeta para o Século XXI, 4ª ed, trad. Fátima Ragageles, revis. António Coelho, consult. Francisco Pires Lopes (Coimbra/Braga: Tenacitas/AO, 2020).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.