Padres: da terra do nunca à terra de ninguém

Quantos padres também não sentirão o seu ministério como vulgar e vazio? Quantos padres não sentirão que os inúmeros quilómetros que fazem para não abandonar nenhuma das suas comunidades são feitos em vão?

Quantos padres também não sentirão o seu ministério como vulgar e vazio? Quantos padres não sentirão que os inúmeros quilómetros que fazem para não abandonar nenhuma das suas comunidades são feitos em vão?

A terra do nunca entrou no imaginário de um conjunto considerável de gerações: esse lugar de tempo suspenso, que nos deixa – também a nós – num imenso intervalo, onde permanecemos crianças. No entanto, temo que dessa terra sonhada, e hoje convertida em promessa publicitária e comunitária, possamos caminhar para que, no caso concreto daqueles que se entregam ao ministério presbiteral, para a dilatação de um outro território: a terra de ninguém, de que muitos clérigos se assumem habitantes, e a cujas paisagens se sentem entregues sem passaporte de volta. Explico-me! Mas antes dêmos um passo atrás.

0.   A ambiguidade

Todas as afirmações teológicas, ou pelo menos grande parte delas, comportam dentro de si uma zona de ambiguidade. Por exemplo, quando dizemos que Deus é Pai, afirmamos, por um lado, a paternidade divina, mas, ao mesmo tempo, estamos a recusar a compreensão deste horizonte enquanto assunção despótica ou freudiana de poder ou micro-poder. E a verdade é que a história da Igreja é eloquente ao indicar que sempre que tal não aconteceu, sempre que este terreno paradoxal não foi salvaguardado, algo de muito errado estaria para acontecer. Dos tempos das primeiras disputas teológicas, aos debates acerca da aceitabilidade ou não da teoria conciliarista, não é difícil encontrarmos inúmeros exemplos.

Em todos estes momentos retomar o dogma trinitário, segundo o qual existe uma união sem confusão nem separação como base da relação entre as três pessoas da Santíssima trindade, foi sempre o balanço necessário. (Numa forma de expressão rápida e popular: nem tanto ao mar, nem tanto à terra).

O facto é que este equilíbrio não parece estar presente numa demasiado divulgada releitura abusiva da justa e necessária denúncia do clericalismo por parte do Papa Francisco, de tal modo que não é claro que uma certa cruzada contra o clericalismo não irá acabar por favorecer atitudes, estilos e modos de ser mais perigosos. A isso iremos mais tarde.

1.   Impotência

Creio que não é ocasional o sucesso no meio eclesial do livro Senhor Bispo, o Pároco Fugiu ou a redescoberta do clássico Diário de um padre de aldeia, do escritor francês George Bernanos, pois aquele cenário inicial, inóspito e desabitado, é, não raras vezes, o lugar onde os ministros ordenados revêem as suas vidas. “A minha paróquia é uma paróquia como qualquer outra.” “O tédio consome-as [as paróquias] a olhos vistos, e nós sem nada podermos fazer”, confessa a voz diarística logo a abrir.

No entanto, ao sentimento de impotência e de esvaziamento galopante, de que os padres são as primeiras testemunhas, tem vindo a ser cada vez mais premente uma leitura quase punitiva do ministério ordenado: os padres colonizam a pastoral, são abusadores e pervertidos, são detratores do próprio Cristo. Fechados, complicados, impacientes e inacessíveis. Tem sido muitas vezes o tom da adjetivação recente que cai sobre o clero e que, sem medição de dados, acompanha a formação dos novos presbíteros que, sem darmos por isso, pode estar a redundar e a assumir mais a forma de uma praxis negativa, focando aquilo que não se pode fazer, em detrimento da prática da virtude, tão importante em autores como Aristóteles e Tomás de Aquino. Ao padre é exigido, por um lado, não seguir um sem par de modelos, e, por outro, ser cada vez mais e melhor. Mas entre esses dois espaços é que se tem vindo a erguer essa terra de ninguém.

[Pausa: quero, neste ponto deixar claro, a indubitável necessidade de denunciar, desmascarar, agir e criminalizar, se tal for o contexto, formas pervertidas de ser Igreja, mas o meu ponto, como já referi, é procurar ver de que uma forma de focar certos pontos, pode estar a criar um clima, não de resolução de conflitos, mas de agravamento sistemático]

A terra dos que nunca reclamam. A terra dos que, sem qualquer capricho, não se sentem identificados nem aceites na sua identidade mais profunda, ou sentem que têm que lutar continuamente contra esqueletos no armário ou fantasmas do passado.

2. A Terra de Ninguém

Mas, afinal, que terra é essa? E quem são os seus habitantes? Em realidade, essa terra de ninguém é o espaço entre a família que desaparece e as relações que não se constroem ou sedimentam. É o lugar que vai do centro distante da diocese à casa dos vizinhos que permanecem desconhecidos. É o terreno que, entre a necessidade de afeto e o medo que qualquer gesto sentimental seja mal interpretado, vai ficando vazio. É a terra daqueles que se sentem “atirados” e encurralados, sem retaguarda, numa comunidade em que são um alvo a abater. A terra daqueles que, mesmo vivendo em comunidade, nunca se sentiram tão sozinhos e desvalorizados. A terra daqueles cuja voz nunca conta, ora por serem mais velhos, ou demasiado novos. A terra daqueles que nunca se sentam na mesa dos adultos. A terra dos que nunca reclamam. A terra dos que, sem qualquer capricho, não se sentem identificados nem aceites na sua identidade mais profunda, ou sentem que têm que lutar continuamente contra esqueletos no armário ou fantasmas do passado. A terra, enfim, daqueles tantos que estão entre o homem de carreira e o funcionário, e que, diariamente, em silêncio e anonimato quase absoluto, vivem uma vida de fidelidade.

São estes, talvez para muitos surpreendentemente tantos, que vivem nesse lugar, porque a batalha por purificar os que restam despreveniu os flancos do pelotão, deixando-os sozinhos e expostos. O problema, como qualquer espectador amador de futebol compreenderá, é que fazer contínuos contra-ataques não balanceados e estruturados é e continuará a ser redundantemente perigoso. Se se quer ganhar o jogo não se pode “estacionar o autocarro” à frente da baliza, nem meter um conjunto de avançados “à mama”, como se diz na gíria, mas redimensionar a tática em todas as suas vertentes e fatores.

Na verdade, talvez nos falte um olhar verdadeiramente preocupado e interessando para várias destas vidas, levadas em grande anonimato.

3.  O que vale uma pergunta?

Num retiro que organizou em Ars com os sacerdotes da sua diocese, Carlos Maria Martini, começou as reflexões abordando as diversas tentativas de fugas que S. João Maria Vianey foi tentando levar por diante.

Quantos padres também não sentirão o seu ministério como vulgar e vazio? Quantos padres não sentirão que os inúmeros quilómetros que fazem para não abandonar nenhuma das suas comunidades são feitos em vão? Quantos padres não sentem que, tal como S. João Maria Vianey, não são suficientemente escutados?

Na verdade, talvez nos falte um olhar verdadeiramente preocupado e interessando para várias destas vidas, levadas em grande anonimato, e que vivem conscientes de estarem predestinados ao esquecimento, pois num tempo em que se denuncia a positividade tóxica:

  • Será que é possível, no atual contexto, a promoção de uma visão da afetividade que não associe o celibato a uma maldição, cujas ressonâncias são vividas tantas vezes em segredo e solidão? Será que é possível, dentro da vida de um clérigo, um equilíbrio saudável, sempre em aberto e em redescoberta, com o corpo que cada um também é? Estamos dispostos a aceitar que, devido a histórias pessoais tão diversas e, não raras vezes, marcadas por grandes feridas afetivas e desenvolvimentos precoces, alguns momentos de infidelidade objetiva podem ajudar a uma fidelidade de fundo a longo curso? E que, em certa medida, se tornam evidentes e naturais numa integração da afetividade?
  • Que imagem passamos, enquanto Igreja, da missão do padre quando ele é usando como pivô num imenso tabuleiro geopolítico, muitas vezes despersonalizado, sem rosto, nem identidade?
  • Quando chegará o tempo em que o padre poderá demonstrar a sua natural necessidade de aceitação, gratificação e hetero-compreensão, sem que isso seja rotulado como debilidade e ligeireza?
  • É o clericalismo o mais grave problema da Igreja, ou será este tópico uma saída rápida para não questionarmos realmente qual pode ser um estilo de vida presbiteral saudável e responsável? Ou, então, uma acusação que abre caminho à desresponsabilização?
  • Como podemos ajudar, sem condenar, os padres que desesperados pelo excesso de trabalho não conseguem sair do ativismo em que se sentem envolvidos?
  • Muitos dos chamados insucessos pastorais serão culpa dos pastores, do seu absentismo, da sua incapacidade, ou, serão resultado de uma exigência coletiva muito standarizada que não olha aos contextos em quem muitos deles trabalham? Noutra linha, será que eles se sentem legitimados se, depois de um discernimento, percebem que esse modelo não funciona, acabando por agir em conformidade?
  • Estaremos nós suficientemente atentos aos novos movimentos demográficos, ao surgimento de novos hábitos laborais e à deslocação da perceção social, refocando o radar da nossa ação, ou preferimos manter uma solução que, a longo prazo, sabemos impossível de concretizar, que devora os nossos recursos e energias, confiantes, de modo idolátrico, na longevidade e plasticidade da Igreja,  mobilizando, muitas vezes à imagem de bombistas suicidas, os mesmos soldados para o combate?
  • Num tempo de sinodalidade, quem se atreverá a fazer uma caminhada sinodal com o clero, com as suas preocupações e angústias? Fala-se muito de clericalismo neste processo, mas que padres é que foram escutados?
  • Será possível alguém realizar um serviço pastoral prolongado e fecundo num lugar cuja cosmovisão religiosa e social seja totalmente diferente daquela que vivenciou na sua formação inicial e familiar?

Quem já assistiu à série The Crown terá percebido que o pano de fundo não é, de todo, a história dos membros da família real britânica, mas, em realidade, as várias tentativas que cada um e cada uma faz para equilibrar o dever de serviço ao povo que lhe está “confiado” e a sua identidade pessoal profunda, sem que isso acabe por criar uma despersonalização ou destruição interior e exterior. Infelizmente muitas das personagens ou acabam por se comprometer com o sistema, ou se suicidam em direto. Poucos são os que sobrevivem, mesmo que ainda apareçam em público. E é a essa tensão e a esses riscos que é preciso prestar cada vez mais atenção.

Fotografia de Nazim Coskun – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.