Padre Cruz – o sonho de ser jesuíta

Biografia do Padre Cruz foi apresentada quarta feira, dia 17, na Brotéria. Conta a história do jesuíta que se encontra em processo de canonização na Santa Sé. Excerto aqui publicado descreve o sonho de entrar na Companhia de Jesus

Biografia do Padre Cruz foi apresentada quarta feira, dia 17, na Brotéria. Conta a história do jesuíta que se encontra em processo de canonização na Santa Sé. Excerto aqui publicado descreve o sonho de entrar na Companhia de Jesus

Padre Cruz – O Santo do Povo é o nome da nova biografia sobre o jesuíta português, da autoria das jornalistas Ana Catarina André e Sara Capelo, e editada pela Oficina do Livro. Foi apresentada na quarta feira, dia 17, na Brotéria, em Lisboa, e contou com a colaboração da Província Portuguesa da Companhia de Jesus e o Patriarcado de Lisboa.

O Ponto SJ publicou um excerto do livro, onde se fala do desejo, que sempre acompanhou a vida do Padre Cruz, de se tornar jesuíta. Desejo que só viria a concretizar no final da sua vida.

UM JESUÍTA ACLAMADO PELAS MULTIDÕES 

 

Quando o Padre Cruz completou 80 anos, a 29 de julho de 1939, encontrava-se no seminário dos Olivais, em Lisboa, a fazer exercícios espirituais, sob orientação do cardeal-patriarca, D. Manuel Cerejeira. Para assinalar a data, o prelado, uma das figuras mais marcantes da Igreja em Portugal no século xx, tomou uma decisão pouco comum para a época: a missa desse dia seria  presidida pelo aniversariante, e ele, bispo, seria seu acólito. Muitos dos 150 sacerdotes e outros tantos seminaristas presentes ficaram surpreendidos, alguns até emocionados (nota 1) com a «humildade e  beleza daquele gesto». (nota 2). Era notória a admiração de Cerejeira pelo Padre Cruz, a quem reconhecia «grandes virtudes», especialmente «no desapego de si mesmo», «no seu zelo pela salvação das almas» e «no amor à oração e culto eucarístico». (nota 3)

No final da celebração, em vez do habitual voto de obediência que lhe costumava ser feito, quando terminavam os exercícios espirituais, o patriarca pediu a todos que beijassem a mão ao padre Francisco Rodrigues da Cruz. E assim foi: sentado no cadeiral de honra, o sacerdote de Alcochete foi recebendo a homenagem dos restantes clérigos. O primeiro a ajoelhar-se diante dele foi Cerejeira, o bispo que esteve à frente do Patriarcado de Lisboa durante 42 anos e que disse na ocasião: «Se de entre todos os presentes for o Sr. Dr. Cruz o primeiro a comparecer diante de Deus, ou quando for, seja ele o intercessor do Patriarcado, de todas as suas obras e de todo o seu clero.» (nota 4)

Um momento que acabaria por ser relatado por vários jornais. O Novidades, por exemplo, afirmava que «a festa impressionante não foi de idolatria a um homem, mas de homenagem justíssima e eloquente ao valor moral e às virtudes desse padre a que o povo chama o santo padre Cruz (nota 5)». A atenção e o reconhecimento que lhe prestaram levariam o Padre Cruz a publicar no  Diário da Manhã (nota 6) uma carta de agradecimento, reconhecendo «a graça» de chegar aos 80 anos e o «modo tão comovente com que o Eminentíssimo Senhor Cardeal-Patriarca se dignou celebrar este aniversário». «Pelo mesmo motivo recebi muitos telegramas, cartas e bilhetes de felicitações e tudo isto me comoveu», referia no mesmo texto.

Manuel Gonçalves Cerejeira e Francisco Rodrigues da  Cruz tinham-se conhecido em Coimbra (nota 7), nos primeiros anos do  século xx. Na ordenação episcopal de Cerejeira, a 17 de junho de 1928, a Sé Nova da mesma cidade «encheu-se de amigos, admiradores e companheiros». (nota 8) «Lá estavam na capela-mor o Doutor Oliveira Salazar, já ministro das Finanças, o padre Mateo, apóstolo de Cristo-Rei, (…) o Padre Dr. Francisco Cruz, com ar sempre doce de bom samaritano, homem extraordinário em qualquer parte do mundo, o vigário-geral do Patriarcado, Dr. Manuel Anaquim, professores universitários…» No fundo, «o que Portugal contava de mais ilustre em todos os sectores da vida intelectual, social e religiosa», descreve o padre Moreira das Neves, que escreveu uma das mais célebres biografias de D. Manuel Cerejeira. Mais tarde, o patriarca de Lisboa contaria (nota 9) que chegou a pedir ajuda ao Padre Cruz para reconciliar com Deus um homem doente, que se encontrava em «circunstâncias difíceis». «Conseguiu com uma facilidade impressionante», relatou o prelado, que chegou também a confessar-se ao sacerdote. O cardeal-patriarca lembrava-se também de que, certa vez, o Padre Cruz deveria ter ido pregar a um lugar, mas ficou doente e não pôde viajar. Quando soube que afinal era uma emboscada, e que queriam fazer-lhe mal, atribuiu «a doença a uma graça especial de Deus». Na mesma semana em que fez 80 anos, o amigo Mesquita Guimarães acompanhou-o durante um dia inteiro, num périplo que fez por vários centros de poder, em Lisboa. A todos foi agradecer as manifestações pelo seu aniversário. De manhã, estiveram, em vários ministérios, como o do Interior e à tarde passaram pelo Governo Civil, onde o Padre Cruz «foi festivamente recebido» e, já sentado no carro, lhe beijaram a mão. Daí, partiram para a Rua da Palma, e assim que o veículo iniciou a viagem, o sacerdote começou a rezar o terço. Chegados ao destino, anunciou que tinham percorrido o equivalente a um terço. Mesquita Guimarães percebeu então que o velho sacerdote media as  distâncias pelo tempo que demora a rezar esta oração. (nota 10)

A entrada na Companhia de Jesus

O Padre Cruz manifestara, desde cedo, o desejo de entrar numa ordem ou congregação religiosa. Ao longo da vida, foi estando próximo de diversos carismas e espiritualidades eclesiais. Durante anos, teve como confessor um sacerdote franciscano (nota 11), e depois de ter estado em Braga, no Colégio dos Órfãos, pediu para se tornar salesiano. Ainda assim, foi com os Jesuítas que sentiu  maior afinidade. Foi próximo de vários padres da Companhia de Jesus e falava muitas vezes sobre os exercícios espirituais de Santo  Inácio de Loyola – sempre que podia recomendava-os a alguém.

Chegou mesmo a referir, numa carta publicada na imprensa, a vontade de se tornar um deles. «Há cerca de 50 anos tenho tido  sempre o desejo de ser um dos seus membros, só com o fim de trabalhar e sacrificar-me pela glória de Deus e salvação das almas;  não tenho podido satisfazer os meus desejos pela minha pouca saúde», escreveu no jornal O Século (nota 12). Noutro texto, enviado ao diretor do Diário da Noite, manifestava o seu desagrado com as críticas que a publicação fizera aos Jesuítas.

«Não gostei que escrevesse que o não ter entrado na Companhia de Jesus não foi por falta de saúde e que atribuísse à mesma  uma ambição de riquezas. Aquele meu amigo deputado democrático (…) também me falou dessa ambição e eu respondi com factos. No passado, os exemplos de São Francisco Xavier, que se fez pobre como Nosso Senhor (…); São João de Brito, que convidado para precetor dos príncipes, deixou as comodidades e riquezas do Paço para sofrer tantos trabalhos e o martírio na Índia, etc., etc. No presente, o padre Luís Gonzaga Cabral e outros que deixaram  a sua riqueza para fazerem o santo voto de pobreza voluntária.» (nota 13).

Ainda que tenha manifestado diretamente, e por diversas vezes, a mais do que um jesuíta, a vontade de se tornar um deles, e lhes tenha pedido que lhe permitissem fazer os votos, ao menos, à hora da morte, teve de esperar até aos 70 anos para concretizar  parte desse desejo. A 11 de março de 1929, o geral da Companhia (Superior Mundial dos Jesuítas), o padre Ledóchowski, apresentou o pedido ao Papa Pio XI (nota 14), dando-lhe conta da fama de santidade do sacerdote. Desta audiência privada, saiu a autorização para que o Padre Cruz pudesse ingressar na Companhia de Jesus à hora da morte. A notícia deixou-o tão feliz que passou a guardar esta licença na mesinha de cabeceira, mostrando-a a quem o visitava. Apesar de tudo, com o tempo, Francisco Rodrigues da Cruz foi percebendo que, de facto, o que queria mesmo era ser jesuíta em vida. Por isso, contactou o provincial, o padre Paulo Durão, que, em 1938, em Roma, transmitiu esse desejo a Ledóchowski. Como este lhe explicou que não tinha poderes para o dispensar do noviciado e lhe disse que achava que não era conveniente fazer o pedido à Congregação de Religiosos, o padre Durão incentivou o «Santo», como era conhecido, a recorrer diretamente ao Papa, aconselhando-o a pedir, para maior segurança, uma recomendação ao cardeal-patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que a concedeu a 14 de agosto de 1940.

Quando o Papa Pio XII foi informado do caso e leu a petição, por intermédio do diretor da revista dos Jesuítas La Civiltà Cattólica (Civilização Católica), exclamou: «É preciso não perder tempo. Demos essa consolação ao santo velhinho.» (nota 15). E imediatamente, naquele dia 2 de setembro de 1940, assinou a autorização que lhe abriu definitivamente as portas da Companhia de Jesus,  dispensando-o do noviciado.

O Padre Cruz estava em casa doente quando o então provincial, o padre Júlio Marinho, lhe levou a novidade. De tal modo  comovido, fez questão de se ajoelhar enquanto o ouvia ler a notícia. Aos 81 anos, tornar-se-ia finalmente jesuíta. Conhecida a sua  devoção por São Francisco Xavier, escolheu o dia da festa deste santo para fazer os votos. Preparou-se como uma confissão geral (nota 16), como quem começa de novo. E assim, diante do provincial, a 3 de dezembro de 1940, fez votos de pobreza, castidade e obediência, no Seminário da Costa, na Casa do Noviciado, em Guimarães. «Realizou-se o ardente desejo que tinha há cerca de 60 anos e não tinha conseguido por falta de saúde» (nota 17), afirmou então.

Fazia agora oficialmente parte dos seguidores de Inácio de Loyola, uma alegria que não escondeu, no fim da missa, quando, com as mãos sobre o peito, segurando as vestes, disse: «Ó meus irmãos, agarremo-nos bem a esta batina.» Foi um dia de festa aquele. No Seminário da Costa, houve poesia e música – para assinalar a data, os noviços fizeram questão de lhe enfeitar a zona junto ao quarto com um tapete de flores. (nota 18).

Atendendo à sua idade e ao percurso, o padre geral dispensou-o de morar nas casas da Companhia, dando-lhe permissão para continuar a sua vida de apostolado, como até então. Poderia naturalmente visitar outros jesuítas, e passar alguns dias com eles, o que fazia com frequência. Também os acompanhava em festas e datas celebrativas importantes. Lucinda Cruz Alves (nota 19), uma das suas sobrinhas, conta que o Padre Cruz nunca ficava em Alcochete a 31 de julho, dia de Santo Inácio de Loyola, porque queria estar com os irmãos jesuítas.

Manteve-se sempre próximo. Certa vez, quando o provincial o foi visitar e lhe perguntou se andava a rezar pelos Jesuítas, o Padre Cruz não hesitou e respondeu: «É a minha missão.» (nota 20). A sua fama de santidade levou o padre geral a escrever-lhe em 1942, para lhe pedir que rezasse por uma intenção particular. Meses depois, o mesmo solicitou que o seu nome fosse incluído no Catálogo da Província, onde constavam os nomes de todos os  jesuítas, porque ele era «um verdadeiro religioso». (nota 21)

Notas:

1. Entrevista a Bernardo Xavier Félix, padre. Em 1939, Bernardo Xavier Félix  era seminarista.
2. Baltazar 1948, 30.
3. Arquivo da Causa: Depoimento do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel  Gonçalves Cerejeira.
4. Novidades, «Completa hoje 80 anos o Rev. Dr. Cruz», 29 de julho de 1939.
5. Novidades, «Os 80 anos do Padre Cruz», 30 de julho de 1939.
6. Diário da Manhã, «Uma Carta de Agradecimento», 1939.
7. Arquivo da Causa: Depoimento do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel  Gonçalves Cerejeira.
8. Moreira das Neves 1939, 190.
9. Arquivo da Causa: Depoimento do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel  Gonçalves Cerejeira.
10. Arquivo Pessoal: Testemunho de Correia de Mesquita Guimarães para a  Causa do Padre Cruz, 1953, 4.
11. Cruz 1949, 50.
12. Cruz 1949, 54-55.
13. Cruz 1949, 58.
14. Arquivo da Causa: Carta do P. Geral Ledóchowski ao Provincial P. Cân dido Mendes, Roma, 12 de março de 1929.
15. Arquivo da Causa: Petição do padre Francisco da Cruz ao Papa Pio XII, 1940.
16. Arquivo da Causa: Depoimento do padre Júlio Marinho S. J.
17. Barros 1954, 201.
18. Leal 1959, 457-458.
19. Arquivo da Causa: Depoimento de Lucinda Cruz Alves.
20. Cruz 1949, 53.
21. Arquivo da Causa: Depoimento do padre Júlio Marinho S. J.  22 Diário de Lisboa, «O Padre Cruz embarcou hoje para o Funchal», 10 de  abril de 1942.

 

Padre Cruz o Santo do Povo é uma obra editada pela Oficina do Livro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.