O Padre Alberto Neto (1931-1987) é uma figura incontornável do catolicismo e da sociedade portuguesa na transição política que originou a implantação de uma democracia parlamentar em Portugal após a Revolução de 25 de abril de 1974.[1] Dez anos depois chegaria a vez de ser nomeado pároco de Rio de Mouro, cargo que exerceu até à data da sua morte em 1987.
Antes de começar por falar do padre Alberto Neto, nascido a 11 de fevereiro de 1931 em Souto da Casa, Fundão, gostaria de evocar um outro Beirão, o Padre Manuel Antunes, nascido na Sertã em 1918, jesuíta e ilustre professor no curso de Filologia clássica entre 1957 e 1983, apelidado como o «Pedagogo da democracia». Estas duas figuras podem ser dialeticamente consideradas, embora em campos distintos, no contexto dos desenvolvimentos dos acontecimentos de abril de 1974 e da sua atualidade. Manuel Antunes saiu incólume dos tempos conturbados do pós-25 de abril, muito devido à sua postura de humanista integral, uma postura que conjuga a tensão, a abertura ao diferente, a capacidade de diálogo e busca do universal e do uno.[2]
Voltemos, agora ao Padre Alberto Neto. Depois de ter sido ordenado padre em 1957 e de um tempo de estágio pastoral em Belém com o P. Felicidade Alves (1957-1959), Alberto Neto rapidamente passa a assessorar a Juventude estudantil católica (JEC), tornando-se seu assistente diocesano em 1965. A capela de Nossa Senhora da Bonança foi-se tornando o espaço de encontro dos jovens estudantes, tornando-se primeiro conhecida por «Capela da JEC» e, mais tarde, como «Capela do Rato». Este lugar tornara-se um autêntico centro juvenil, muito em virtude do carisma de Alberto Neto, da sua abertura ao novo ar que se respirava na Igreja em virtude da realização do Concílio Vaticano II (1062-1965) e das críticas que dirigia a determinadas opções políticas promovidas pelo Estado Português. A sua ação exerceu-se, sobretudo, ao nível da formação das consciências relacionada com uma preocupação por questões sociais e políticas, nomeadamente com a denúncia da guerra em África e com a necessidade de ser garantida a paz e a liberdade a esses povos. Por ocasião das cheias de Lisboa em 1967, Alberto Neto mobiliza um número considerável de jovens estudantes para auxiliar as populações atingidas. Esta ação trouxe tal notoriedade a este grupo que, a partir de então, o sacerdote passa a ser vigiado pela Polícia Política.
O episódio mais polémico da vida de Alberto Neto não foi protagonizado por ele. Não tendo sido o seu promotor, nem organizador, pode ser considerado, contudo, o seu autor moral. Antes do Natal desse ano, tinham sido organizadas na Capela do Rato, as Conferências de Advento, sobre o tema escolhido por Paulo VI para o Dia Mundial da Paz: «A paz é possível». Depois das celebrações do Natal, o padre Alberto contrairia uma pneumonia, encontrando-se em casa. Na vigília do Dia Mundial da Paz, a 30 de dezembro de 1972, um grupo de cristãos, sem dar conhecimento ao padre Alberto, decide fazer uma vigília de oração e jejum com um debate contínuo sobre o tema da paz. Esta ação, conhecida como o «Caso da Capela do Rato», atraiu a atenção da comunidade internacional, causando grandes constrangimentos ao regime político português. Depois de um processo judicial atribulado, o Padre Alberto viria a abandonar a capela do Rato a 6 de outubro de 1973.
A sua proximidade ao mundo da educação e dos jovens manteve-se durante toda a sua vida, sobretudo através da aula de Religião e Moral que lecionou em diferentes escolas até à década de 1980.
Como sustenta o sociólogo António Barreto, a Revolução foi, sobretudo, um fenómeno militar. Os grupos que então se formaram «não estavam interessados num regime democrático parlamentar, de tradição europeia, preferindo qualquer forma de regime autoritário».[3] As forças democráticas fizeram tudo o que esteve ao seu alcance para impedir o poder autoritário. A democracia triunfa sobre uma nova ditadura com as eleições (primeiro as constituintes em abril de 1975, depois as legislativas em abril de 1976 e a seguir as autárquicas em finais de 1976).
Alberto Neto conta-se entre o grupo de padres católicos que antes e depois de abril de 74, ajudou a levar por diante o sonho da democracia. De entre os pilares que sustentam esse sonho, destacam-se nos textos de Alberto Neto os seguintes: a paz, a liberdade e a educação.
Alberto Neto conta-se entre o grupo de padres católicos que antes e depois de abril de 74, ajudou a levar por diante o sonho da democracia. De entre os pilares que sustentam esse sonho, destacam-se nos textos de Alberto Neto os seguintes: a paz, a liberdade e a educação.
Paz
Os acontecimentos referentes às diversas frentes de guerra no Ultramar português evidenciavam não só que Portugal não tinha meios para vencer a guerra, como eram acompanhados por vozes críticas face ao prosseguimento da guerra que clamavam pela necessidade de se construir a paz. Na homilia de 06 de maio de 1973, o Padre Alberto Neto, associando a figura do apóstolo São Tomé aos que têm sede da libertação, escreve:
Revelaram-lhes um Deus que fez uma aliança de paz com os homens. Cristo, em nome de Deus, foi chamado Príncipe da Paz. E que veem eles? Uma guerra contínua e devastadora que aniquila diariamente irmãos; e uma vasta multidão tentando justificá-la, como se alguma vez alguma guerra pudesse ser chamada santa ou ter justificação à luz do Evangelho. Guerra para a qual são invocados legítimos direitos, não deixando transparecer nem discutir os inconfessados interesses económicos que a provocam, a mantêm e a defendem. (Homilia na Capela do Rato, 06.05.1973)
Liberdade
Para o Padre Alberto Neto, a liberdade é mais que uma condição externa. Ele reclama a necessidade de uma liberdade interior das consciências que não age por conveniência ou rotina, mas é marcada por um sentido de justiça e de responsabilidade pelo outro. Face à hipocrisia religiosa, pergunta-se:
Não teremos andado iludidos em entretenimentos espirituais, em tertúlias religiosas, em afadigar-nos completamente em distribuição de sacramentos, que valem, mas que não tocam a liberdade interior das pessoas, e que são como água que cai sobre plástico, não apanhando interiormente o gérmen da liberdade do homem e da sua responsabilidade? (Homilia na Capela do Rato, 09.10.1971)
Educação
Foi no campo da educação que mais se destacou a ação do Padre Alberto Neto, sobretudo pelo modo como se relacionava com os alunos e os procurava envolver na consciência de serem obreiros da democracia em génese. O testemunho de um aluno dá conta da mestria do professor de Religião e Moral.
Foi numa aula de Religião e Moral (!), de que era professor o Padre Alberto Neto. Agnóstico, eu nunca gostara dessas aulas de religião, mas nesse meu 6.º ano foi bem diferente. Todas elas eram bem interessantes. Recordo essa, na qual o Padre Alberto referiu haver dois grandes cantores portugueses – Amália Rodrigues e José Afonso -, tocando depois músicas deles […] Foi uma agradável revelação para mim, a sua voz. Comprei logo discos dele e não mais o deixei de ouvir. Recordo também uma outra aula, na qual o Padre Alberto (como o conhecíamos) defendeu o Papa Paulo VI, então muito atacado pelo governo de Salazar (e pelos jornais do regime – quase todos…) por ter visitado a Índia, então país inimigo pela ainda recente conquista de Goa. (Manuel Arons Carvalho, in Público 23/04/2020)
A paz à qual se associa a justiça, a liberdade à qual se junta o respeito pela diferença, e a educação à qual se associa a formação da consciência pessoal e coletiva na prossecução dos bens comuns, constituem três pilares essenciais da democracia, dos quais o Padre Alberto Neto, enquanto inconformado mestre da juventude, propôs ao longo da sua ação. Talvez o seu inconformismo tenha ditado em grande medida o seu destino trágico. A 50 anos do 25 de abril de 74, precisamos de continuar a merecer a democracia e a encontrar formas criativas de a promover. Na sociedade complexa e pluralizada que vivemos reclamam-se mestres inconformados da juventude e pedagogos da democracia que nos inspirem a construir um futuro de esperança.
[1] Bibliografia sobre o Padre Alberto Neto e, mais concretamente sobre o caso da Capela do Rato: Trabalhadores Revolucionários, ed., Greve da fome contra a guerra colonial (Lisboa: TR, 1972); António de Aráujo, «A dinâmica da Capela do Rato», Povos e Culturas, n.o Especial (2014): 33–43; António de Aráujo, «“A paz é possível”: algumas notas sobre o caso da capela do Rato», Lusitania sacra 2, n.o 16 (1004): 431–63; António Carlos Candeias de Araújo e Manuel Braga da Cruz, «A oposição católica no Marcelismo: o caso da Capela do Rato» (Lisboa, s.n., 2011); António Janela, «O padre Alberto e a capela do Rato», Povos e Culturas, n.o Especial (2014): 275–80, https://doi.org/10.34632/povoseculturas.2014.8972; António Soares Moreira, O caso da Capela do Rato e bombas, bombas e mais bombas (Porto: Ed. do Autor, 1973); Peter Stilwell, Padre Alberto: testemunhos de uma voz incómoda, Capela do Rato (68.73), 2.a ed. (Lisboa: Texto Editora, 1989); Peter Stilwell, Terra da alegria e da justiça: a voz do Pe. Alberto Neto (capela do Rato 1968-1973) (Prior Velho: Paulinas, 2022).
[2] Luís Filipe Barreto considera o Humanismo Dialogal como característica mais relevante da ação de Manuel Antunes, que define da seguinte forma: «Humanismo dialogal em busca do Universal e do Uno, o mesmo é dizer, ao encontro do Humano. Marcha constante e eterna à procura das raízes que pretendem compreender e respeitar, isto é, alcançar, o segredo de Ser Homem, essa totalização de racional e irracional (M. A.) Humanismo e diálogo que são o centro de um projecto compreensivo». Luís Filipe Barreto, «Manuel Antunes (1918-1985): um Humanismo Dialogal», Jornal de Letras, 22 de janeiro de 1985, 133 edição.
[3] António Barreto, «50 anos, o 25 de Abril e nós», Brotéria, abril de 2024, 338.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.