Os olhos de Orson Welles

Esboços e pinturas feitos por Orson Welles deram origem a um documentário narrado como se fosse uma carta. Carlos Capucho sugere o filme de Mark Coursins que nos revela as complexidades de Orson Welles sem se transformar numa hagiografia.

Esboços e pinturas feitos por Orson Welles deram origem a um documentário narrado como se fosse uma carta. Carlos Capucho sugere o filme de Mark Coursins que nos revela as complexidades de Orson Welles sem se transformar numa hagiografia.

Breve Sinopse: A partir de esboços, esquiços e pinturas produzidas pelo realizador Orson Welles (1915-1985), ao longo de toda a vida, Mark Cousins constrói uma narrativa epistolar redescobrindo o complexo universo daquele importante realizador norte-americano.

Nota Crítica: Situe-se, antes de mais, o perfil do ensaísta e historiador do cinema Mark Cousins, nascido em 1965 na Irlanda do Norte. Os cinéfilos esclarecidos e os estudantes de cinema conhecem-no certamente através de duas obras fundamentais, de sua autoria: primeiro o livro Story of Film (Pavillon Films, 2004, com edição portuguesa Biografia do Filme, Plátano, 2005). Trata-se de uma história do cinema, brilhante, nada convencional, original no método de construção. Depois, esta proposta teve complementaridade e desenvolvimento em 2011, no Reino Unido, na monumental série televisiva de 15 episódios de uma hora,  A História do Cinema: Uma Odisseia, em boa hora divulgada comercialmente entre nós em caixa de cinco DVD’s, pela editora Midas. Uma investigação de fôlego, plenamente elogiada pela crítica especializada. Para além de professor em áreas do cinema, Cousins é também autor de documentários e curtas metragens. Em 2018 apresentou o filme que agora nos ocupa, premiado no Festival de Cannes, em secção específica.

O que deu origem ao empreendimento que se traduziu num filme, com este sugestivo nome, Os Olhos de Orson Welles? Cousins encontrou-se, nos Estados Unidos, com Beatrice, a filha do terceiro casamento que Welles mantivera com a actriz e aristocrata Paola Mori. Por morte da mãe, Beatrice é detentora de um espólio importante e único: centenas de desenhos, esboços e pinturas feitos pelo pai, desde muito novo e até ao fim da vida, em 1985, com 70 anos,. Sabia-se que o realizador era um desenhador de qualidade. Muitos dos seus filmes o atestavam ao apresentarem extraordinários cenários de sua autoria. Porém outra coisa é o que se encontra à guarda de Beatrice Welles, um acervo abundante da produção quotidiana de seu pai, a propósito de quase tudo, incluindo uma multitude de cartões de Natal originais. Deslumbrado com o que lhe era mostrado, Cousins logo pressentiu que aquele material poderia dar um filme. E, uma vez concretizado, que extraordinário filme aí está. Um filme, que na sua constituição é mais uma particular revelação do realizador Welles, tão estudado, com ampla literatura a investigar a sua obra e a sua personalidade. Contudo, a bordagem de Cousins (que teve Beatrice Welles como consultora técnica) é singular e vem acrescentar mais valia ao conhecimento de um realizador, que sabemos ter revolucionado, de várias formas,  o cinema, em 1941 – com 26 anos –, ao oferecer ao mundo Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés). E, a sua posterior produção, veio a confirmar um lugar-charneira no desenvolvimento da linguagem cinematográfica.

Como escrevi acima o investigador irlandês (cuja voz se ouve, narrando, ao longo de todo o filme) assume o texto como uma carta que dirige ao seu ‘caro Orson’, carta que se vai desenvolvendo ao longo de quase duas horas, em diversos capítulos com títulos como peão, cavaleiro, rei, bobo…, para referir apenas os mais complexos.

Um dado que valoriza o documentário é, como já referi, o carácter epistolar do texto. Permite não só uma perspectiva original (anulando a espectável e banal narrativa descritiva, tão presente no meio televisivo), mas também estimula no espectador uma constante e singular presença (viva) de Welles.

Perante um tal material pictórico há uma pergunta que Cousins coloca acertadamente no início e que um espectador informado também colocaria caso não existisse: “Será que os teus esboços, caro Orson, revelam o teu inconsciente?”. Por outro lado, sabe-se que Welles era, na fase de rodagem dos seus filmes, um repentista. Era apoderado repentinamente por uma ideia –  não prevista no argumento – e logo ela se concretizava numa torrente de elementos formais de iluminação, adereços, pontos de vista da câmara, profundidade de campo e outras percepções que se materializariam, depois, de forma incandescente,  na sala de montagem.

Ora, a desenhar, Orson era também um repentista e um obreiro rápido: nos motivos, no suporte, nos materiais e na rapidez do traço. Cousins refere-o no filme, sublinhando numa entrevista concedida a Helen Barlow (Público, reservada a assinantes)  e remetendo a Freud, que obras pictóricas “feitas rapidamente  e antes que o nosso cérebro entre em acção [denotam que] a velocidade das linhas está associada à nossa mente inconsciente”. Por isso olhar atentamente estes desenhos, com a ajuda e a interpretação de Cousins, torna-se revelador de uma personalidade fascinante e altamente complexa. E uma fonte suplementar de compreensão dos seus filmes. Filmes de que, para essa leitura, são mostrados e ‘lidos’ abundantes extratos, agora vistos à luz desses desenhos, tal como são rememoradas várias entrevistas de Orson Welles. E, por discutíveis que possam ser as interpretações de Cousins (outras traves interpretativas poderão existir), a importância de uma tal empresa não é de somenos importância e leva o espectador, fascinado, a não dar conta da passagem do tempo.

Há que acrescentar que Cousins (que ama visceralmente Welles) não constrói, no entanto, uma hagiografia do realizador. Bem pelo contrário, mesmo que o enalteça. Resulta por isso o apontar não só das complexidades pessoais e artísticas, mas também das contradições, a par das atitudes coerentes e de princípio, enquanto cidadão e enquanto artista. Um dos capítulos aborda mesmo a arrogância patrícia deste homem, a par da sua facilidade de construir amizades com mulheres e com homens. Mas, como todo o Artista que se considere, Welles era um interventor político crítico, em movimentos, em causas e na postura que assumia em entrevistas. Veja-se a resposta que dá, num debate, ao lhe ser perguntado porque alterara no seu filme O Processo (1963), para uma situação mais contundente, o final criado no romance, por Kafka, em 1914, ele afirma que depois de historicamente ter acontecido o terrível Holocausto, o final não poderia ficar da mesma forma porque, depois do pesadelo, da existência do mal absoluto, o mundo necessariamente era diferente.

Por outro lado, o filme de Cousins, sublinha a importância da presença física de Orson Welles. Aqueles que conhecem o opus cinematográfico em que Welles é protagonista sabem o que é referido: a imponente estatura, a envergadura de um corpo que a idade vai acrescentando, a extraordinária voz grave. Mesmo quando não surge num filme seu (como acontece em The Magnificent Ambersons [1942, O Quarto Mandamento]), a sua portentosa voz e dicção tornam aquela voz off num paradigma do que é esse delicado dispositivo, evidenciando, por outro lado, a qualidade do mister de alguém que fora presença forte na rádio e era superlativo no teatro, tal como evidenciava em permanência (e em tudo) uma energia esfusiante, elementos que Cousins não deixa de apontar.

Um dado que valoriza o documentário é, como já referi, o carácter epistolar do texto. Permite não só uma perspectiva original (anulando a espectável e banal narrativa descritiva, tão presente no meio televisivo), mas também estimula no espectador uma constante e singular presença (viva) de Welles. E essa presença desemboca no tour de force final quando – através de uma actor de voz grave, aproximada à de Welles – o realizador responde a propostas de ‘leitura’, e ‘invectivas’ semeadas por Mark Cousins.

“Será que os teus esboços, Caro Orson, revelam o teu inconsciente?”. A certeza com que o espectador sai da sala de projecção é que a resposta é positiva. As duas horas do documentário dão-nos linhas sólidas para acolher essa certeza. E, também, que aquela “figura granítica” também acolhia algo de uma criança. Se nos é legítimo perceber o cidadão Kane (no filme com o mesmo nome) como um parcial alter ego de Welles, a infância de Kane, que é o mote para o formidável flash back que constitui todo o filme, evidencia essa realidade de forma particular. Interessante que na entrevista a Barlow (que acima se refere) Cousins cite o poeta francês Jean Cocteau a propósito de Orson Welles: “um gigante com cara de menino”.

Em suma: um documentário de qualidade que só podemos desejar que a Midas, como tem acontecido com outras obras projectadas no cinema Ideal, venha a distribuir comercialmente a edição em DVD. Cinéfilos, investigadores e estudantes, agradecerão.

Uma última palavra para sublinhar a importância da exibição, em sala, de documentários. Este tipo de filmes, com os seus temas e linguagem específica, constitui um género nobre no cinema (desde os seus primórdios), como informação e como expressão artística ou, até, como manifestação científica. Os estudos fílmicos encaram o documentário muito seriamente na investigação que produzem. Porém, a televisão – sobremaneira desde a distribuição por cabo – banalizou este género cinematográfico. Tanto no cinema como na TV encontramos bons documentários,  mas também muita fancaria. Mas o documentário , no cinema, tem um importante lugar, para além da televisão. Muitos festivais o reconhecem. Em Portugal, nos anos mais recentes, o documentário – em versão curta, média ou longa – tem vindo a encontrar interesse por parte de alguns exibidores. No momento em que escrevo três documentários estão em exibição em  Lisboa: o português Terra (média, 2018), o americano/inglês Pavarotti (longa, 2019) e o de Cousins, sobre o qual esta crónica se debruça.

 

Foto de capa: © Carl van Vechten – Esta imagem está disponível na Divisão de Gravuras e Fotografias da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos com o número de identificação digital van.5a52776.

 


Título original: The Eyes Of Orson Welles, Reino Unido 2018 I Documentário/Ensaio I 1h55 I M/12

Realização e Argumeto: Mark Cousins

Fotografia a cores: Mark Cousins

Montagem: Timo Langer

Actores: Orson Welles (filmes e imagens de arquivo), Mark Cousins e Beatrice Welles

Em exibição: 
Lisboa:
Cinema Ideal
Morada: Rua do Loreto 15, 1200-086 Lisboa (Mapa Google)
Telefone:
210998295
Sessões:
5ª 21h10 6ª Sáb Dom 2ª 3ª 4ª 17h10, 21h10

Leiria:
Teatro Miguel Franco
Morada: Rua Dr. Correia Mateus 40, 2400-137 Leiria (Mapa Google)
Telefone: 244 839 680
Sessões:
16 de julho, 18h30 e 21h30

Viana do Castelo:
Cinema Verde Viana
Telefone:258 821 619
Morada: Centro Comercial 1º de Maio 4900-534 Viana do Castelo (Mapa Google)
Sessões:
Segunda-feira, 8 de Julho, às 21h45

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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