A propósito da festa litúrgica do Sagrado Coração de Jesus e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque, partilhamos este último texto como parte de uma proposta mais alargada para redescobrir aspetos centrais da espiritualidade do Coração de Jesus — um verdadeiro tesouro para toda a Igreja.
O porquê da rosa — e outros limites da razão explicativa
No livro Noite, de Elie Wiesel, o primeiro personagem apresentado é Moishe. Pouco antes de serem deportados para um campo de concentração, Moishe pergunta a Wiesel: “Por que rezas?” A pergunta parece absurda: ele reza como respira — é rotina vital para um judeu devoto. Mas Moishe responde: “Rezo para que Deus me dê força para Lhe fazer as perguntas certas.”
Com o tempo, aprendemos que há perguntas que não existem para serem resolvidas, mas para permanecerem vivas. Durante demasiado tempo, imaginámos que a força da fé vinha das respostas, e que perguntar sem saber responder era próprio de coisas indignas de fé, porque não exatas ou supersticiosas. Mas talvez a verdadeira fé comece quando a razão, sem perder o seu justo e necessário lugar, deixa de querer controlar o mistério e permanece generosa e atentamente à sombra da pergunta.
O poeta Angelus Silesius escreveu: “A rosa não tem porquê. Floresce porque floresce.” Também o amor do Coração de Jesus não tem porquê. Ama porque Deus é amor. Aberto à questão, aberto à procura, o coração humano encontra-se em casa quando fragua as suas questões mais íntimas com outro coração. Um cor ad cor loquitur (diálogo de coração a coração) que na fé se traduz como oração. A oração é precisamente isso: abrir o nosso coração diante daquele Coração que nos ama. E, nesse encontro, deixar que a nossa experiência do mundo fale e dialogue com o Cristo que Se revelou nos gestos e palavras narrados nas Escrituras. Mas para onde nos conduzirá esse diálogo?
Olhemos para o Sagrado Coração que é o símbolo do amor de Cristo pela humanidade. Devemos amar como Cristo amou, a ponto de dar a vida pelos nossos irmãos. Esse é o mandamento novo. Amar até ao ponto de dar a vida, morrendo para nós mesmos. Aceitar o último lugar sem pedir nada para nós. Servir, dar a vida sem nada pedir. Esse é o estranho caminho do Evangelho que inverte todas as nossas lógicas.
Obras que nascem da oração
“Para isto serve a oração — dizia Santa Teresa de Jesus — para que nasçam obras, obras, obras”. Também Inácio de Loyola legou à Igreja uma espiritualidade da ação: Deus é quem, com os seus sentimentos-gestos-palavras, trabalha pela redenção do mundo e nos convida a colaborar com Ele, com tudo o que somos e temos. Somos salvos pelas obras de Deus, que nos transformam em atores do drama da redenção e nos envolvem na sua trama.
Dorothy Day, mística e ativista norte-americana, dizia o mesmo com palavras suas. Encontrar no desejo de ter os mesmos sentimentos do Coração de Jesus, a ponte mais eficaz e verdadeira entre oração e atividade no mundo — esta é, para Dorothy Day, a chave da espiritualidade do Coração de Jesus. Assim o expressa com as suas palavras:
Olhemos para o Sagrado Coração que é o símbolo do amor de Cristo pela humanidade. Devemos amar como Cristo amou, a ponto de dar a vida pelos nossos irmãos. Esse é o mandamento novo. Amar até ao ponto de dar a vida, morrendo para nós mesmos. Aceitar o último lugar sem pedir nada para nós. Servir, dar a vida sem nada pedir. Esse é o estranho caminho do Evangelho que inverte todas as nossas lógicas.
Conheci uma vez um padre, uma alma muito amável e um verdadeiro louco por Cristo. Muitos dos seus colegas sacerdotes riam-se dele dizendo: “Ele acolhe os loucos e batiza-os. É uma pessoa sem critério!” Costumava visitar o hospital de negros em Saint Louis e, dia e noite, ali se encontrava vagando pelas enfermarias. Um velho negro um dia disse-me: “Sempre que abro os olhos, lá está o padre!” Ele estava sempre a pairar sobre os seus filhos a fim de dispensar os sacramentos. Era tudo o que ele tinha para dar. Ele não podia mudar o velho hospital precário, não podia fornecer-lhes moradias decentes, não via que eles tinham melhores empregos. Ele nem parecia fazer muito para fazê-los desistir de bebidas, mulheres e jogos da sorte – mas podia amá-los a todos e a todos ele amava. Dava-lhes tudo o que tinha: Cristo. (…)
Lembro-me tantas vezes deste velho padre de St. Louis… Quando visito prisões e hospitais para discapacitados, lembro-me desse velho jesuíta. É difícil visitar os capelães e pedir a sua ajuda. Eles têm milhares de assuntos entre mãos, e nalguns casos consideram que a preocupação com algumas situações já “não adianta”. “Qual é a utilidade de ir para essa ala – ou para a prisão? Eles não a vão ouvir”. Se alguém ama o suficiente, se é inoportuno por Cristo, repete-se o amor como se repete uma Avé-Maria no rosário.
Uma oração que transforma, uma fé que responsabiliza
A oração cristã nunca é apenas intimista. A experiência do Coração de Jesus não nos isola: responsabiliza-nos, move-nos sempre a uma missão de compaixão pelo mundo. Servindo-nos da linguagem de Santo Agostinho, a Confissão da fé nunca está separada do nascimento da Cidade de Deus.
Recordemos, nas palavras do Papa Francisco, o convite profundo e provocador a redescobrir no coração de Cristo a nossa missão de compaixão: “A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos. Que culto seria o de Cristo se nos contentássemos com uma relação individual desinteressada em ajudar os outros a sofrer menos e a viver melhor? Poderá agradar ao Coração que tanto amou se nos mantivermos numa experiência religiosa íntima, sem consequências fraternas e sociais? Sejamos honestos e leiamos a Palavra de Deus na sua inteireza. Não se trata sequer de uma promoção social desprovida de significado religioso, que no fundo seria querer para o ser humano menos do que aquilo que Deus lhe quer dar”. (Dilexit nos, 208)
Por isso, as perguntas e dores que brotam do nosso coração diante do Coração de Jesus não são apenas os “meus problemas”. Em diálogo com o Tu de Deus dado a conhecer pelos Evangelhos, tornam-se itinerários de comunhão, caminhos de responsabilidade fecunda. A oração, portanto, não nos retira do mundo — mergulha-nos nele com compaixão. Assim como Jesus, que rezou no horto e, em seguida, deu a vida por todos. Se rezamos, não são os braços que se cruzam mas os destinos. O amor que se recebe de Cristo, torna-se missão de compaixão que leveda o mundo, pois é no coração de Cristo que aprendemos a compaixão pelo mundo.
Terminemos, neste sentido, com uma oração do Papa Leão XIV ao Sagrado Coração de Jesus (Cf. Papa Leão XIV, Video do Papa, Junho de 2025).
“Senhor, venho hoje ao Teu coração terno,
a Ti que tens palavras que inflamam o meu coração,
a Ti que derramas compaixão sobre os pequeninos e os pobres,
sobre os que sofrem e sobre todas as misérias humanas.
Desejo conhecer-Te mais, contemplar-Te no Evangelho,
estar contigo e aprender de Ti
e da caridade com que Te deixaste
tocar por todas as formas de pobreza.
Tu nos revelaste o amor do Pai, amando-nos sem medida
com o Teu coração divino e humano.
Concede a todos os Teus filhos a graça de Te encontrar.
Muda, molda e transforma os nossos planos,
para que Te busquemos somente a Ti em cada circunstância:
na oração, no trabalho, nos encontros e na rotina diária.
A partir deste encontro, envia-nos em missão,
uma missão de compaixão pelo mundo,
na qual Tu és a fonte de onde jorra toda a consolação.
Amén.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.