A 25 de dezembro de 1961, o Papa João XXIII convocava, através da Constituição Apostólica Humanae Salutis, o Concílio do Vaticano II, sem dúvida um dos eventos mais significativos da vida eclesial – e não só – do séc. XX. Volvidos 60 anos, este pequeno texto convoca-nos, por seu turno, a uma breve revisitação.
É claro que todo o texto possui o seu contexto, a vários níveis, e este não é exceção. Mas também qualquer leitura é devedora de um contexto, como será o presente caso. A finalidade deste meu pequeno contributo é, em certa medida, tornar claros alguns aspetos dos contextos de um e de outra.
Antes de tudo, como aparece claro nas próprias palavras do Papa, esta convocatória era muito esperada, essencialmente pelas igrejas. A necessidade de um Concílio tinha sido confirmada, devido ao imenso impacto da modernidade sobre os cristãos e sobre a instituição eclesial. A decisão de o realizar também já tinha sido anunciada, tendo provocado grande “júbilo”. Entretanto, muitos trabalhos preparatórios, nomeadamente os de consulta à igrejas locais e de reflexão teológica, tinham sido feitos. O contexto do texto é, por isso, de grande maturidade e expectativa relativamente a tão significativo evento.
O contexto mais remoto é, sem dúvida, o conjunto de transformações sociais e de mentalidade que se tinham produzido ao longo do que denominamos simplesmente modernidade. Essas transformações são resumidas, no início do texto, através de uma leitura crítica (“averiguações dolorosas”) e de uma leitura dialogante (“motivos de confiança”). É claro que a história do século anterior à convocatória do Concílio foi palco de posições extremadas, quer como condenação em bloco das “dolorosas” transformações trazidas pelos tempos modernos, quer como “confiança” entusiasta nas conquistas desses tempos – confiança que tinha sido descartada, muitas vezes, como modernista.
Uma nova visão – por sinal muito antiga – recupera uma noção de Igreja como povo, peregrina no mundo, que é a sua casa e com o qual partilha alegrias e tristezas (afirmação emblemática do início da Gaudium et Spes).
Um longo e profundo trabalho teológico (muitas vezes colocado sob suspeita) tinha permitido o amadurecimento de uma posição equilibrada, por parte da Igreja, que foi sendo assumida progressivamente pela sua estrutura, até chegar à conclusão de que só um Concílio Ecuménico poderia fazer frente a tão grande e controverso desafio. Daí a expectativa reinante e daí o impacto simbólico que terá tido o texto que, finalmente, convoca o evento que muitos esperavam: uns, na expectativa da reafirmação forte da posição mais tradicional, para mais uma vez condenar os tempos modernos; outros, esperando que finalmente se iriam abandonar muitas formulações e sobretudo muitas práticas, que mantinham a Igreja encerrada nos seus muros; outros, talvez nem uma coisa nem outra, mas esperavam que a comunidade eclesial pudesse discernir de forma equilibrada o seu caminho e a sua missão em tempos diferentes. Como sabemos, o resultado correspondeu mais à expectativa destes últimos, mesmo que, na receção e aplicação posteriores, se afirmassem ainda muitos grupos extremistas.
Como sabemos, depois de promulgadas a Lumen Gentium e a Gaudium et Spes (talvez os documentos mais importantes do Concílio), um dos seus grandes contributos foi a superação de uma conceção exclusivamente hierárquica (clerical) da igreja, concebida como sociedade completa, perante um mundo tendencialmente adverso, que havia que vencer e salvar – muito mais quando a referência desse mundo a Deus se tornara menos evidente. Uma nova visão – por sinal muito antiga – recupera uma noção de Igreja como povo, peregrina no mundo, que é a sua casa e com o qual partilha alegrias e tristezas (afirmação emblemática do início da Gaudium et Spes).
É claro que o texto da convocatória foi escrito antes do concílio e revela uma conceção de Igreja e de mundo ainda muito centrada na estrutura clerical e na contraposição ao seu exterior. Ainda se afirma muito que “a esposa de Cristo se mostra em todo o seu esplendor de mestra da verdade e ministradora de salvação”, estando pronta a fazer “advertências” ao humanos, que parecem agora mais disponíveis para as acolher, porque o orgulho que marcou o inicio dos tempos modernos parece ter conduzido “os seres humanos a se tornarem mais ponderados, mais conscientes dos próprios limites, mais desejosos de paz, atentos à importância dos valores do espírito; acelerou o processo de mais estreita colaboração e mútua integração entre os indivíduos, classes e nações, à qual, embora entre mil incertezas, parece já encaminhada a família humana”. Um mundo à deriva, portanto, mas aberto; e uma igreja mãe e mestra, segura de si e pronta a orientar os humanos perdidos.
Mas a Igreja está agora menos segura de si. Porque a crise, que antes só víamos fora dela – num mundo à deriva – vemo-la agora bem evidente no seu interior, revelando a sua intrínseca fragilidade.
Como o contexto é tão diferente, no momento em que fazemos esta leitura! Estamos nas vésperas de um Sínodo que pretende impulsionar o dinamismo sinodal na vida da Igreja, com grande envolvimento do laicado – como, em parte, aconteceu nos anos anteriores à convocação do Concílio, apesar das muitas diferenças. Mas a Igreja está agora menos segura de si. Porque a crise, que antes só víamos fora dela – num mundo à deriva – vemo-la agora bem evidente no seu interior, revelando a sua intrínseca fragilidade. Se ainda é mãe e mestra, sê-lo-á de forma extremamente humilde, como serva; e sê-lo-á também na capacidade de aprender do mundo, porque também os outros podem ser mestres e também uma mãe aprende com os seus filhos.
Com isto, a Igreja não nega aquilo que é nem recusa o valor da verdade que a habita. Mas assume-se mais humana. Porque se aceita mais vulnerável, como todos os humanos com quem partilha o caminho; e porque assume, sem medos nem falsas desculpas, a sua insubstituível missão na construção de uma humanidade comum, eventualmente mais humana, ou mesmo mais terrena.
É claro que, tal como nas vésperas do Concílio, também agora se extremam posições. Embora em contextos históricos bastante distintos, talvez o caminho mais maduro seja de novo o caminho do equilíbrio, em que o excesso é apenas o excesso da caridade – pois é assim o Evangelho de Jesus, Humanae salutis.
A partir de janeiro o Ponto SJ publica um podcast dedicato ao tema do Concílio Vaticano II.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.