O sonho da floresta amazónica e a insónia da floresta curial

Papa Francisco entre profecia e vigilância na “Querida Amazónia”. A opinião do teólogo italiano Andrea Grillo.

Papa Francisco entre profecia e vigilância na “Querida Amazónia”. A opinião do teólogo italiano Andrea Grillo.

Texto originalmente publicado em italiano no blog do autor Come se non: aqui

O texto da Exortação Apostólica “Querida Amazónia” (QA), publicada no dia 12 de fevereiro de 2020, é caracterizado por um primeiro traço original. A saber, a sua “posição” em relação ao texto final do Sínodo extraordinário, ou seja, Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral (ANC). De facto, a decisão de promover diretamente o texto final do Sínodo, na sua articulação, como um “documento de referência” – como é explicitamente declarado nos ns. 2-3 de QA – cria uma espécie de envio explícito – quase uma disposição concertada – da Exortação em relação ao Sínodo na sua integralidade. A forte escolha de nunca citar o texto final, mas de o assumir como revestido de autoridade na sua totalidade, é até assim expressa: “Não pretendo substituí-lo, nem repeti-lo” (QA 2).

Parece-me que esta premissa é decisiva para a leitura correta do texto e, como tal, indubitavelmente o qualifica, em analogia com o que Francisco fez na Amoris Laetitia. Neste caso, ainda mais explicitamente do que há 4 anos, é deixada ao texto sinodal uma “reserva de autoridade”. Francisco, de seu, traduz os nós daquele texto em quatro sonhos: um sonho social, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial. A Amazónia faz-nos sonhar. E também faz Roma sonhar. Mas Roma também sofre de insónia. E até mesmo o Papa que “dorme bem”, e que sabe reconfigurar o sonho eclesial de maneira tão eficaz, às vezes pode encontrar-se a sofrer de insónia, quase como se permanecesse com os olhos arregalados. Procuremos ver como e porquê.

Uma Igreja capaz de se indignar e fazer ouvir em coro a sua voz profética assume um estilo de escuta e diálogo, em que os últimos se possam tornar protagonistas e o bem viver ser verdadeiramente acessível a todos.

O grande sonho possível

Um grande sonho que está destinado a realizar-se. Esta parece-me ser a boa notícia que nos apresenta a QA, com a força de uma prosa frequentemente elevada, inspirada, forte. Não gostaria que se subestimasse a chave “onírica” com a qual o texto foi escrito. Não é apenas retórica. Ou melhor, é alta retórica magisterial. Fazer da “tradição eclesial” um lugar para a elaboração de sonhos, ou seja, de representação dos desejos de homens e mulheres e dos misteriosos desígnios do Deus de Jesus Cristo, isso parece-me ser um belo exercício do magistério, do qual a Igreja tem urgente necessidade. Assim, a releitura de ANC que Francisco propõe na QA é estruturada como “articulação de 4 sonhos”. Esses sonhos afetam quatro níveis da vida da Amazónia, dos quais a Igreja pode e deve cuidar. Essa perspectiva é formulada, em estilo pujante, em QA 6-7:

“Deve encarnar-se a pregação, deve encarnar-se a espiritualidade, devem encarnar-se as estruturas da Igreja. Por isso, nesta breve Exortação, ouso humildemente formular quatro grandes sonhos que a Amazónia me inspira.
Sonho com uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.
Sonho com uma Amazónia que preserve a riqueza cultural que a carateriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho com uma Amazónia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazónia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazónicos.”

Cada um desses “sonhos” estrutura um capítulo do texto, cujo conteúdo esboço brevemente:

a) Um sonho social (8-27)

A promoção da justiça social de um “bem viver” na Amazónia é uma tarefa primária, em que “cuidado com a criação” e “atenção aos últimos” estão profundamente entrelaçados. Uma Igreja capaz de se indignar e fazer ouvir em coro a sua voz profética assume um estilo de escuta e diálogo, em que os últimos se possam tornar protagonistas e o bem viver ser verdadeiramente acessível a todos.

b) Um sonho cultural (28-40)

A Amazónia é um “tesouro de culturas” que devem ser valorizadas. Nesta parte do texto cruzam-se os poemas. Leiamos um, no n. 31:

«Do rio, fazes o teu sangue (…).
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem».

A proteção das raízes, o encontro intercultural, o cuidado pelo diálogo e pelas identidades tornam-se um estilo de relacionamento em que a Igreja pode descobrir e reler ainda melhor o mistério que a constitui. Isto requer que se assuma a perspectiva dos “direitos dos povos e culturas”, numa relação muito delicada com as condições do ambiente em que essas culturas se desenvolveram e podem ser protegidas.

c) Um sonho ecológico (41-60)

O registo do “sonho ecológico” também é profecia e poesia. Eis um dos textos propostos no n. 47:

«Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se.
O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)
O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores.
Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar.
Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue».

A abordagem da “proteção da casa comum” é nutrida por uma tradição espiritual e relacional que deve recuperar um olhar contemplativo e extático em relação à natureza e à criação. Assume como próprio o clamor dos povos pela degradação do meio ambiente e relança-o profeticamente, envolvendo nele toda a Igreja.

d) Um sonho eclesial (61-110)

O último nível do sonho é o mais diretamente destinado às comunidades cristãs. E também é o mais complexo. É um sonho que, poderíamos dizer, surge em parte “de um sono inquieto”. De facto, este quarto sonho é dividido em duas partes. A primeira (61-84) é dedicada ao tema da inculturação, enquanto a segunda (85-110) trata da ministerialidade, da Eucaristia, do ecumenismo. Na primeira, ainda se consegue sonhar em sentido próprio. Na segunda, a vigília por vezes impõe-se inexoravelmente e dificulta o sonho. Na primeira parte, de facto, sobre o tema da inculturação, lemos palavras fortes, proféticas, de grande coragem. O trabalho de inculturação pode assim reconhecer que “é possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem continuar a considerá-lo um extravio pagão” (QA 79). E ainda: “Isto permite-nos receber na liturgia muitos elementos próprios da experiência dos indígenas no seu contacto íntimo com a natureza e estimular expressões autóctones em cantos, danças, ritos, gestos e símbolos. O Concílio Vaticano II solicitara este esforço de inculturação da liturgia nos povos indígenas, mas passaram-se já mais de cinquenta anos e pouco avançamos nesta linha” (QA 82). Este impulso, profético e poético, atinge um limiar, que no texto é o n. 85, com o qual começa a secção intitulada “A inculturação do ministério”. Nesse ponto, encontramos o último lampejo daquele impulso que atravessou 3/4 do texto. Aí se lê:

“A inculturação deve desenvolver-se e espelhar-se também numa forma encarnada de realizar a organização eclesial e o ministério. Se se incultura a espiritualidade, se se incultura a santidade, se se incultura o próprio Evangelho, será possível evitar de pensar numa inculturação do modo como se estruturam e vivem os ministérios eclesiais? A pastoral da Igreja tem uma presença precária na Amazónia, devido em parte à imensa extensão territorial, com muitos lugares de difícil acesso, grande diversidade cultural, graves problemas sociais e a própria opção de alguns povos se isolarem. Isto não pode deixar-nos indiferentes, exigindo uma resposta específica e corajosa da Igreja” (QA 85).

Mas aqui “al pensier mancò la possa” [faltou pujança ao pensamento]: a poesia dá lugar à mera descrição normativa, e a profecia abre espaço a uma vigilância preocupada. Em termos concretos, o discurso sobre as comunidades “privadas da Eucaristia” só consegue imaginar respostas mediadas pela linguagem elaborada na Europa do século XVI. Não se consegue sonhar. O ponto mais distante do tom e da liberdade do sonho é a falta de imaginação com a qual se fala das mulheres (99-105): como dizendo: de mulieribus ne somnium quidem!

Nesta passagem final do texto, a floresta curial parece prevalecer sobre a floresta amazónica, a qual aparece reduzida a uma variável secundária, quase irrelevante.

O pequeno sonho impossível

O registo verbal, como tentei mostrar, mostra a diferença entre a maneira de refletir sobre os três primeiros “sonhos” e a linguagem mais rígida que aparece na maneira de pensar sobre a estrutura ministerial e sacramental da Igreja. Sem poesia, poucas imagens, pouco impulso. Aqui, o texto evidencia com clareza a dificuldade de conceber um sonho neste âmbito. De facto, parece quase estar marcado por um traço de insónia, por uma impossibilidade de sair das representações mais clássicas e mais usuais, que se impõem numa “vigília da qual não se pode escapar”. Onde está a inquietação, onde está a incompletude, onde está a imaginação? Parece ser capaz de reconhecer, mesmo na Amazónia, apenas o padre in nigris, fruto do Seminário tridentino, destinado a “fazer a Eucaristia” e a “absolver do pecado”. Um “Cura d’Ars” com bilhete para Manaus. Mera factualidade do passado adquirido: um habitante da floresta curial, um estranho na floresta amazónica. Assim, nesta passagem final do texto, a floresta curial parece prevalecer sobre a floresta amazónica, a qual aparece reduzida a uma variável secundária, quase irrelevante.

Mas aqui, julgo eu, existem razões mais profundas. Porque é a falta de desejo que impede de sonhar. E o desejo não pode ser criado “ex officio”. Quando falta o desejo, torna-se então fácil ler todas as novidades apenas “em negativo”. Sem desejo de algo mais, mantemos o que já existe. Se as comunidades desejam a Eucaristia, não é porque neguem ter de ser presididas, mas porque pensam que a presidência pode ser concebida e sonhada com esquemas diferentes do Concílio Lateranense IV ou do Concílio de Trento. Se as mulheres desejam aceder ao ministério ordenado, não é para seguir modas, ou buscar o poder, mas porque sonham que seja objetivamente reconhecida aquela bela autoridade que já amplamente demonstraram. Sem que por isso se possa pensar que “aceder à ordem sagrada” seja sinónimo – sabe-se lá porquê apenas para elas – de “cedência ao clericalismo”. Quando um novo uso do sacramento é imediatamente identificado com abuso, é porque o desejo não é cultivado, o sonho tornou-se impossível e o Espírito já não consegue tomar a palavra.

Numa floresta, como a da Amazónia, é permitido sonhar. Numa outra floresta, a Cúria Romana, parece ser proibido. Um homem que tem a arte do sono, como Francisco, também pode sonhar em Roma. Mas, por vezes, o seu sono é perturbado. A honestidade do pastor e do homem sabe disso muito bem e é assim que o diz: “quero apresentar de maneira oficial o citado Documento [ANC], que nos oferece as conclusões do Sínodo e no qual colaboraram muitas pessoas que conhecem melhor do que eu e do que a Cúria Romana a problemática da Amazónia, porque vivem lá, por ela sofrem e a amam apaixonadamente. Nesta Exortação, preferi não citar o Documento, convidando a lê-lo integralmente” (QA 3).

Para sonhar sobre estas questões institucionais, com base no que é exposto profética e poeticamente nos primeiros três sonhos e meio, é absolutamente necessário fazer referência àqueles que vivem, sofrem e amam com paixão na Amazónia. Eles sabem sonhar também sobre esses assuntos. Porque o seu desejo está vivo, sabe discernir a Palavra e, assim, sabe alimentar o sonho. Com toda a poesia e a profecia necessária.

Breves conclusões

Entre as duas florestas, o caminho de Francisco é, por conseguinte, decididamente orientado, mas cauteloso. Permanece clara, no seu texto, a indicação de que o “sonho eclesial” precisa de se estender à totalidade da experiência. A força do desejo, iluminado pela Palavra, torna-se sonho e exprime-se com uma intensidade nunca ouvida nos primeiros 85 números. Mas a cada geração é dado sonhar, e reelaborar, apenas uma parte do que vive. Assim, o grande sonho da sociedade, da cultura e da ecologia, quando cruza o limiar institucional, corre o risco de se extinguir. E parece experimentar, em vez do sonho, uma insónia agitada e uma incerteza preocupada.

O grande sonho da sociedade, da cultura e da ecologia, quando cruza o limiar institucional, corre o risco de se extinguir. E parece experimentar, em vez do sonho, uma insónia agitada e uma incerteza preocupada.

Talvez a um filho do Concílio, e um filho de uma primeira geração, como Francisco, não se possa pedir mais. Ainda que parcial, o sonho profético dos primeiros três capítulos e meio sabe resgatar a insónia vigilante que nas últimas páginas esgota o texto. A síntese sobre o “sonho social”, o “sonho cultural”, o “sonho ecológico”, mas também aquela sobre o “sonho eclesial da inculturação”, permanece como um texto precioso, com muitas aberturas de grande valor, que podem produzir frutos grandes e preciosos. A falta de “capacidade onírica” ​​no que diz respeito à estrutura ministerial da instituição é um sinal de uma resistência objetiva, eu diria que corporal antes de ser mental. O corpo não sonha porque falta o desejo. Por isso, o texto da QA sobre o padre e sobre a mulher parece não ter um desejo, que queira exprimir-se num sonho, e parece que o próprio Deus, a este respeito, não tenha nada mais a dizer e não envie sonhos aos homens. Mas o texto final de ANC, que não é substituído, mas valorizado na sua totalidade pela QA, permite-nos, ou melhor, exige-nos, que sonhemos novamente, também em relação a essas questões. E não é de modo algum dito que os sonhos, com a força do desejo a ser reavivada e com o mistério da Palavra de Deus a ser ouvido e discernido, não sejam exatamente aquilo de que mais precisamos, mesmo hoje, especialmente hoje.

Tradução de Mário Almeida

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.