Texto originalmente publicado no Blog do autor, Come se non.
Uma minha tia-avó, idosa mas não indiscutivelmente sábia, costumava dizer que a primeira coisa que fazia ao Domingo, uma vez regressada da missa, era lavar as mãos, já que tinha tocado as mãos de vários desconhecidos no momento do abraço da paz. Cada vez que oiço repetir as “normas de confinamento sanitário” – que, desde os primeiros dias de Março, são repetidas em todos os canais de comunicação social – recordo esta tia-avó e a sua profecia da desconfiança. Não só na grande Igreja, mas também nas nossas pequenas igrejas domésticas, temos inoxidáveis profetas de desgraça que desde sempre têm feito da distância, da higienização e da máscara um “sacramento”.
Por que motivo começo com a tia-avó “higienista”? Recordá-la, assim como às suas “obsessões”, é-nos útil para considerar a discórdia em que todos caímos com o “distanciamento imposto” e a “proibição de ajuntamento” que as autoridades sanitárias e públicas dispuseram a nível nacional. Tal divergência toca intimamente o “culto cristão”, precisamente porque o deforma, o emudece, o marginaliza, o silencia, o avilta. É-nos útil parar, por instantes, numa reflexão que gostaria de propor, em três momentos. Após uma passagem preliminar de exame desta realidade que nos investiu, tentarei distinguir as questões “formais” das questões “essenciais”. Porque uma coisa é “garantir a liberdade”, outra coisa é saber “o que fazer com a liberdade garantida”.
1. As condições do “confinamento social”
Dado que a doença mortal se transmite “por contacto” e uma vez que vemos os efeitos devastadores que causa em irmãos e irmãs nossos, todas as formas de relação publicamente relevantes ficaram alteradas: nenhuma verdadeira proximidade [é possível], a mão deve estar protegida pela luva e sempre “desinfectada”, o rosto deve estar tapado pela máscara. A proxémica do espaço, o tacto da mão e o olhar do rosto ficaram bloqueados, censurados, impedidos. Este aspecto do contacto tem efeitos sobre qualquer lugar que não seja a “casa particular”. A “clausura” define de modo muito mais claro do que o habitual a distinção entre “âmbito público” – regido por uma lei não negociável – e o âmbito “privado” que, do lado de dentro da porta de casa, continua a gerir proximidades, intimidades, tacto, abraços, beijos: pode reconhecer-se o rosto de outros e, de forma “despudoradamente” nua, pode mostrar-se o próprio rosto. O facto culturalmente mais relevante, pelo menos para gerir correctamente o problema eclesial, é que este “estado de excepção” aprofunda radicalmente a diferença entre público/privado, quase que anulando totalmente os “espaços intermédios”, aqueles em que se cultiva o “não privado” que, porém, permanece “não público”. São os lugares da “gratuidade social” que, hoje, são todos sugados pelo estado de emergência pública. Por outras palavras, tudo o que não é privado torna-se público “ex lege” [“por lei”]. E a Igreja, todas as igrejas, caem neste processo de redução e são sugadas para este vórtice do anonimato.
Através de um longo percurso de reflexão e de experiência, começado nos primeiros anos do século XX, a tradição eclesial iniciou a recuperar a “dimensão comunitária” do culto.
2. A forma: liberdade de culto como direito
Não deixa de ser notável o facto de que, pelo menos num primeiro momento, uma parte da Igreja tenha respondido a este desafio permanecendo rigorosamente no mesmo plano. Se, de facto, contrapomos à lógica da emergência, lógica que elimina a mediação comunitária entre privado e público, o “meu direito de liberdade de culto”, então, estou a aceitar permanecer no plano formal. Levanto a questão que diz respeito a “sujeitos individuais”, cujos direitos seriam (eventualmente) violados: o meu direito por ser padre e por não poder exercitar o “direito de dizer missa”; o meu direito por não ser padre e por não poder exercitar o direito de “ir à missa”. Este tipo de resposta põe “privados” diante da “lei pública”. […] Fica o facto de que a resposta em termos de “liberdade de culto” – por quanto possa ser justificada – implica uma consideração meramente formal do próprio culto. Além disso, arrisca-se a reduzir a questão à possibilidade de reservar ao sujeito individual – ministro ou simples fiel – o exercício de um “direito” que diz respeito ao próprio sujeito. Estamos a defender a fé privatizando-a e publicitando-a, à custa, porém, de descurarmos o perfil comunitário, sem o qual a fé não vive.
3. A substância: o culto cristão é acção comum
A verdadeira questão diz respeito não apenas à forma, mas à substância do culto cristão. Se aceitamos reduzir a questão do culto aos direitos dos sujeitos que o realizam ou que usufruem dele, permanecemos imediatamente subjugados por uma má teologia: a consideração meramente “formal” – jurídica e administrativa – do culto cristão cai no risco de o falsear irremediavelmente. Tento examinar melhor este aspecto através de uma série de pontos:
a) Se a missa é reconhecida como “acção da comunidade sacerdotal” – composta por todos os baptizados que se reúnem sob a presidência do presbítero/pároco –, tem constitutivamente um carácter comunitário, o que a deixa dentro do âmbito das normativas comuns para todos os espaços públicos. Só se a pensarmos como “acto do padre”, ao qual “assistem” – oportunamente distanciados, isolados e protegidos – um número máximo de fiéis, é que ficamos “justificados” para realizar actos que inevitavelmente contradizem o que se faz. Se o Estado tem todo o direito em considerar a missa uma “cerimónia pública”, já a comunidade cristã deveria salvaguardar a qualidade comunitária daquele ajuntamento.
b) A missa é lugar de contacto, de reconhecimento, de proximidade. Por isso, as mãos com luvas, o rosto coberto e a distância “de segurança” são formas corpóreas de contratestemunho simbólico, precisamente porque falam de desconfiança, não de confiança. Poderão ser suportadas, mesmo se a custo, apenas em “ritos de passagem”, não em “ritos de estruturação comunitária”. Não por acaso os funerais ou, eventualmente, os casamentos, podem suportar as limitações formais, porque estão inseridos em percursos vitais irreversíveis e tendencialmente não adiáveis. Uma coisa são as exéquias, outra coisa é a celebração eucarística: a diferença clara entre um rito necessário em vista de um outro (como o funeral) e um rito gratuito, que é fim a si mesmo, como é a missa, deveria ajudar, não só a compreender, mas também a assegurar as soluções mais equilibradas.
c) A Igreja católica sabe que encontra no culto, ao mesmo tempo, o cume e a fonte de toda a sua acção. Através de um longo percurso de reflexão e de experiência, começado nos primeiros anos do século XX, a tradição eclesial iniciou a recuperar a “dimensão comunitária” do culto. Este facto também é fruto de traumas que as duas guerras mundiais trouxeram a muitas vidas. Mas tudo aconteceu muito lentamente, contra dois “inimigos”, que permanecem sempre à espreita: a recaída privada e a recaída pública do culto. Se reduzimos o culto a devoção privada ou a “função institucional” caímos em contradição com a nossa história de mais de 100 anos. E devemos afirmar: há 100 anos começávamos a compreender melhor o que nos cabe salvaguardar hoje! O culto antecede quer a sua versão privada, quer a sua versão pública. Vive da comunhão comunitária, da intimidade do contacto, do reconhecimento do olhar, do contacto directo – de palavras e de refeição – da Igreja com o seu Senhor.
d) As nossas linguagens são velhas e o seu atraso emerge “in extremis”. Logo que chegou a “pandemia”, a comunicação eclesial como que enlouqueceu. Comunicámos “oficialmente” que o papa “celebraria de forma privada”: que melhor contradição de termos se poderia excogitar? Sublinhámos a auto-suficiência do padre em relação à missa; fizemos normativas “sobre o culto” que só dizem respeito aos ministros, não ao povo. Descobrimos, assim, que temos no coração das nossas instituições o que nos imuniza de uma leitura verdadeira e comunitária do culto. Por um lado, é fácil pensar, ainda hoje, que a natureza da liturgia seja simplesmente um “ofício eclesiástico”. Por outro, pode ler-se no final do Código de Direito Canónico que toda a estrutura jurídica tem como “lex suprema”[lei suprema] a “salus animarum” [salvação das almas]. É exactamente aqui, neste “salto mortal” entre público e privado que está o curto-circuito que estamos a viver de modo traumático. O sujeito da salvação – como já disse Guardini em 1918 – não é a alma, mas o homem. Pelo menos no culto não podemos resolver a questão “saltando” do público para o privado, da cerimónia para a alma. Ou elaboramos uma estratégia “de comunidade” ou não superaremos deste estado de coisas.
Quando a Igreja se reúne para celebrar a própria intimidade com o Senhor, só o poderá fazer sob determinadas condições.
e) É assim que a liturgia com numerus clausus permanece uma contradição nos termos: pode suportar-se apenas se um “rito de passagem” tem fora de si próprio a sua razão. Mas quando a Igreja se reúne para celebrar a própria intimidade com o Senhor, só o poderá fazer sob determinadas condições. Se as condições não estão reunidas, a Igreja deve falar e fazer experiência apenas naqueles lugares em que ainda seja possível a intimidade e a gratuidade da experiência e da sua expressão: isto é, nas casas, as quais, com os seus limites “privados”, ainda que satisfaçam apenas algumas condições da vida da Igreja, pelo menos, não as contradizem.
f) Acrescento, por fim, uma última questão delicada, que diz respeito à vida “celibatária” dos ministros ordenados. A clausura civil traz à luz um aspecto desta vida que, hoje, se tornou muito relevante. A vida celibatária é uma vida “sem casa”. É uma vida que faz da comunidade cristã a sua casa. Mas as condições da pandemia violentam profundamente esta vocação: transformam a comunidade num espaço público, subtraindo aos padres a sua casa. Isto justifica, pelo menos em parte, algumas reacções “afectivas” projectadas sobre a vida “confinada”. Obviamente, este aspecto é diferente para aqueles padres que, numa lógica nova, aceitaram “viver em comum”. Para eles, também existe a casa da comunidade presbiteral. Também nestas casas se tem a possibilidade que o jejum eucarístico da Igreja corresponda a uma escolha dos próprios ministros; que possam ser consolados pela palavra proclamada e pela palavra rezada; que sejam lugar de presença e lugar de salus animarum et corporum [salvação das almas e dos corpos], sobre o qual a comunidade pode florir. Por agora, a comunidade poderá fazê-lo nas “casas”, para voltar, logo que possível, à “casa do Senhor”, com um novo e mais explícito desejo de palavra e de refeição, para que o coração arda e os olhos reconheçam, e o corpo ressuscitado do Senhor se torne visível na comunidade daqueles que fazem do amor a sua lei.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.