O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.
Se convidássemos o Sr. Currículo para um almoço entrevista, desses que custam pouco e estão na moda, e lhe perguntássemos, em pleno verão, na gula desenfreada em que ele anda, se preferiria uma combinação de sabores equilibrada ou uma bela feijoada à transmontana, o que pensa que o Papão do Currículo responderia? Certamente que, sendo coerente com a multitude de seres que o habita, qual Fernando Pessoa dos tempos modernos, na multidão dispersa de conteúdos e disciplinas (permitam-me uma pequena nota, um aluno do 2.º CEB, com 10 anos, tem pelo menos 10 disciplinas obrigatórias, uma por cada ano de idade), como bom Papão, escolheria a feijoada, porque é tipicamente portuguesa, e porque tem muitas bocas para alimentar. Pobre e triste Papão que, na sua tremenda solidão, nos confessa, entre feijão e chouriço, que a criação de novas disciplinas o ajuda, nos momentos de frustração, a encontrar sentido para a sua espartilhada vida.
Como professor, gosto de sentir que a sociedade civil se preocupa com a escola, com a sua segurança e com as suas disciplinas. E fico lisonjeado com os múltiplos artigos escritos sobre o recomeço das atividades presenciais e com o amplo debate sobre a disciplina obrigatória de Cidadania e Desenvolvimento. Contudo, como cidadão português, gostaria de ver este debate centrar-se no aluno, na pessoa que estamos a educar, no cidadão que o Papão Currículo está a determinar. Por isso, entre conteúdos, ideologias e educação para a saúde, a partir do Decreto-Lei coperniciano 55/2018 e da flexibilização curricular, permitam-me que intrometa o nariz do Projeto Educativo e da liberdade de ensino. Porque temos necessidade de introduzir uma disciplina obrigatória para educar para a Cidadania? Não deveria tal exercício de liberdade emergir de uma articulação do currículo em função do Projeto Educativo, no desenvolvimento integral de competências sociais e comunitárias? As Ciências Socias e Naturais não terão nada a dizer sobre o que é a cidadania e como a devo exercer num Estado Democrático de Direito?
Parece-me que o que se trata neste, como em tantos outros assuntos da educação, é de inovação e mudança: uma escola que em vez de impor uma ideologia auxilia o ser-humano-aluno a desenvolver uma utopia, isto é, um projeto de vida, um conjunto de competências que lhe permitam lidar com a complexidade da existência e construir o bem comum.
Parece-me que o que se trata neste, como em tantos outros assuntos da educação, é de inovação e mudança: uma escola que em vez de impor uma ideologia auxilia o ser-humano-aluno a desenvolver uma utopia, isto é, um projeto de vida, um conjunto de competências que lhe permitam lidar com a complexidade da existência e construir o bem comum. A distinção é de Paul Ricouer: a ideologia mata sentidos, a utopia cria possibilidades. Ou melhor, a ideologia faz com que o Papão Currículo despeje conteúdos de forma acrítica para cumprir o programa; a utopia faz com que o Sr. Currículo se repense, se reorganize e se reestruture, não em função de si próprio, mas da pessoa/cidadão que queremos educar.
Desde o início, que a tradição pedagógica jesuítica, através do binómio virtudes e letras, sustem que a educação tem que estar ao serviço da formação da pessoa e não apenas do aluno sabichão. Mais recentemente, a vasta rede mundial de escolas jesuítas tem vindo a refletir sobre a educação para a Cidadania Global e o desenvolvimento do cidadão do futuro. Como sociedade portuguesa e mundial, deparamo-nos, hoje, com questões que não têm resposta nos resumos da Europa-América e que requerem uma reflexão aprofundada, por isso, toda a educação para a cidadania, mais do que resolver problemas imediatos ou dar respostas superficiais, alimentando ideologias, deveria ter como objetivo a promoção das competências necessárias ao exercício da liberdade e da justiça, à promoção da cultura e de um bem comum universal. O futuro não pede apenas cidadãos informados ou formatados, mas pessoas capazes de exercer, de forma consciente, compassiva, competente e comprometida as suas liberdades, com espírito crítico, respeitando a diferença e valorizando a opinião democrática do outro.
Por isso, Sr. Currículo, deixe-me que lhe dê um pequeno conselho outonal: faça uma boa dieta, liberte-se de um conjunto de gorduras que o impedem de ser mais flexivo, respire fundo e não tenha medo de gerar verdadeiras utopias. Coma mais saladas gregas, dessas que vêm nas ementas filosóficas, com sementes de sésamo, ideias democráticas e liberdade de ensino. E, por favor, deixe a Escola cumprir a sua missão e o Estado a Constituição.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.