O Papa escreveu-me

Quero ser escravo, mas tenho medo. É a vertigem da confiança que me pede o bom Deus: abraçar o que temo para alcançar o que desejo.

Quero ser escravo, mas tenho medo. É a vertigem da confiança que me pede o bom Deus: abraçar o que temo para alcançar o que desejo.

O Papa escreveu-me.

Com a mão firme e o olhar terno de um bom pai, quis preparar-me para viver a Páscoa, a passagem da escravidão à liberdade, da escuridão à luz. Para me encher desta, devo desfazer-me do que a cobre, de toda a sombra que esconde de mim a luz de Deus.

Quero viver, na quaresma, quarenta dias de escravidão. Assim, sem suavizar a palavra: quarenta dias escravo. Não tenho outro resgate que o da entrega livre, de coração e vontade, como Cristo na cruz, na maior doação de que um homem foi capaz: a do amor que liberta.

Escravo do coração dulcíssimo do meu Senhor, querendo só o que Ele quer, sem a segurança das coisa já vistas. Para esse deserto não levo nada: nem dinheiro, nem projetos, nem ideias, nem objetivos… Porque o deserto só é lugar do primeiro amor se for o único.

Escravo do meu próximo, do grito dos irmãos oprimidos, tantas vezes à minha porta, que ainda não me comove. Nas suas mãos coloco o desejo de poder tudo, de ser louvado por todos e sobre todos levar a melhor. Porque só nesse esvaziamento pessoal encontro espaço onde acolher os meus irmãos.

Escravo da missão no mundo que Deus me confiou e que eu percorro à pressa. Por ela largo o meu tempo, agenda e velocidade. Porque só ao passo de Deus, ao ritmo da contemplação, o meu contributo pode ser perfume de liberdade para um mundo melhor, mais Seu.

Quero ser escravo porque é violento, como o são as correntes do que agora me escraviza: a minha imagem, o meu conforto, o meu espelho, o meu perfil, a minha maneira, a minha opinião.

Quero ser escravo para não ter nada e perceber, chegando ao deserto, que afinal tudo tenho. Como Maria, em quem se formou Jesus, num despojamento completo: eis a escrava do Senhor. Quem é escravo do próprio Deus, por Ele mesmo é resgatado.

Quero ser escravo, mas tenho medo. É a vertigem da confiança que me pede o bom Deus: abraçar o que temo para alcançar o que desejo.

Quero ser escravo, mas Deus quer ser Pai. E eu, demasiado pequeno para missão tão grande, prefiro afinal ser filho.

O escravo deu-se uma vez, perdendo o domínio sobre a vontade. O filho quer converter-se cada dia, atualizar hoje aquele primeiro amor pelo que deu tudo, a um pai que espera, na soleira da porta, o seu regresso.

Assim posso arriscar. Assim tenho a esperança: de encontrar luz, de que o mundo encontre Deus, de que os homens se encontrem. De que Deus, vendo um filho no deserto, se comova e me liberte.

Não quero, nesta quaresma, fazer muito, mas tudo largar.

Quero, não quero… Queira Deus! Será bom, pela Sua mão, um só passo no caminho.

O Papa escreveu-me. Lê-o também com esperança, sem a nostalgia da antiga escravidão, para saber o que te diz a ti.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.