O Natal de Nicodemos de Ben Gurion

Nesta noite de Natal, um conto escrito pelo P. Paulo Teia que nos fala do encontro com o Senhor que está para nascer.

Nesta noite de Natal, um conto escrito pelo P. Paulo Teia que nos fala do encontro com o Senhor que está para nascer.

Não terá sido fácil, sair a meio da noite encoberto pela penumbra de uma cidade adormecida, para ir ao encontro desse homem que trouxe alvoroço à cidade – Jesus, o Galileu. A dificuldade não estava na distância, estava na atitude e no risco de uma decisão a de ir ao seu encontro. Nicodemos era um homem de prestígio, sobejamente conhecido de todos, “príncipe dos Judeus”. Uma referência que sustentava muitas referências. Fariseu, homem do Templo.

O encontro só poderia ser de noite porque a luz nem sempre é favorável a homens de vida dupla. Vai e encontra Jesus entre os seus companheiros. A sorte é que todos dormem profundamente à exceção daquele que vela. Uma primeira saudação de Nicodemos, cordial, afetuosa, elogio da Sua fama e das obras que realiza: “Rabi, sabemos que vens de Deus pois ninguém pode fazer as obras que fazes sem o dedo de Deus”. O Senhor olha-o. E no olhar diz tudo: “quero conversar contigo Nicodemos! Não tenho outro desejo senão esse, conversar contigo. E o que posso dizer-te, digo-o em poucas palavras. Quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus”. Nicodemos acolhe esta enigmática resposta e não perde tempo em argumentar sobre a impossibilidade de um homem do seu tamanho voltar ao seio de sua mãe: “Pode um homem renascer sendo velho?”. O Senhor vai responder-lhe falando-lhe apenas do vento e da obediência à vontade de Outrem. Aponta-lhe apenas um caminho (será essa no fundo a sua grande especialidade): “O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito.” Nicodemos retira-se, inquieto. Na saída incomoda-o uma leve brisa que começa a soprar e que o obriga a apertar a samarra. Aonde o levaria? Teme cair num rodopio de promessas, dessas em que caem muitas folhas distraídas nos becos sem saída da vida… Prefere recuar, dar tempo, não se comprometer. Em sua casa estará mais seguro. A velhice pede segurança. A dele, ainda mais.

Mais tarde, Nicodemos partilhará comigo um sonho que teve nessa mesma noite do encontro com o Senhor. Sonhou que se encontrava lá para os lados de Belém, uma povoação próxima a Jerusalém, terra de David. Era igualmente noite e ele continuava a caminhar. A mesma brisa do encontro empurrava-o agora pelas costas, sem o forçar, por entre o casario alvoroçado de uma cidade em pleno tempo de recenseamento. Misteriosamente, os seus passos conduziram-no à periferia, a uma casa pobre. Uma mulher tira água do poço e leva-a para dentro. Saúda-o: “Boa noite, senhor. Acabou de nascer, é um menino. Um pouco frágil, mas com olhos grandes. Sorri muito. Venha, entre! Venha conhecê-lo!” A mulher deixa-o. É um pequeno estábulo da casa senhorial que não deixa de ser pobre.

Mais tarde, Nicodemos partilhará comigo um sonho que teve nessa mesma noite do encontro com o Senhor. Sonhou que se encontrava lá para os lados de Belém, uma povoação próxima a Jerusalém, terra de David. Era igualmente noite e ele continuava a caminhar.

Um casal jovem está deitado nas palhas, a mãe acolhe junto dos seus seios a Criança que mama. José recebe-o. Nicodemos aproxima-se curioso de ver os olhos do menino, os mesmos olhos que impressionaram a serva. Antes de o ver, o Menino vê-o primeiro! Acolhe-o plenamente. Parece que já estava à sua espera há muito tempo, queria dizer-lhe alguma coisa. Mas Nicodemos ainda está demasiado longe. Aproxima-se um pouco mais, ele que é alto, demasiado alto. Finalmente rente aos seios descobertos de Maria vê a luz desses olhos que não se esquecem, olhos que falam e que tudo dizem. E por um instante, por um verdadeiro milagre, Nicodemos consegue ouvir pela primeira vez o sentido de um balbuciar messiânico que o fere e rasga por dentro em suave convite… “Nicodemos…. meu querido amigo, nasce comigo!”

O nosso Cristianismo envelhecido está cheio de cristãos envelhecidos. As rotinas do que celebramos há muito perderam o sabor e a frescura do que anunciam. Por isso, na nossa velhice, arrastamos mais o deus que criamos, que o deus Criador. Neste Natal voltaremos a celebrar o verniz de um manancial escondido, uma fé feita de barro cozido e vendido com pinheiros de estimação. Celebraremos a família, a nossa família e ouviremos as palavras do Papa e do cómico de serviço, alegria paga para ocupar uma noite de exageros. Tudo à nossa medida e à imagem e semelhança de quem escolhemos para nascer nas palhinhas. Ficaremos iguais depois deste Natal, como em muitos outros, e infelizmente mais vazios. Porque como diz o ditado antigo, “a corrupção do ótimo é o péssimo”. Apenas daremos por seguro que estivemos juntos, comprámos juntos, comemos juntos, divertimo-nos juntos, como qualquer outra família de carne neste mundo, como a família de Noé a entrar na arca e as que ficaram de fora e desapareceram no dilúvio. Algum dia teremos a coragem de dizer basta. Cansados de embrulhos e de estar embrulhados escolheremos que este seja O Natal. Esse natal, último e primeiro, de nascer com Aquele que nasce! Nascer com o Menino que nasce! O meu verdadeiro nascimento Nele. E diremos que por Ele, com Ele e Nele, passaremos a viver desse Natal, Natal primeiro e último que antecederá o Natal definitivo que nos toca a todos depois da morte. “Nasce comigo! Deixa que o Natal seja o teu natal em Mim!”

 

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Ilustração de David Gomes

Os pastores e o descanso do Menino

Algo mais teria Aquele menino a dizer que não se esgotara no primeiro encontro com Nicodemos. Algo mais e igualmente urgente. Talvez uma promessa que acompanhasse o convite a nascer com Ele e que não tivesse sido compreendida nem retida por Nicodemos. Por isso, no dia seguinte, resolveu voltar de noite, no seu sonho, a Belém. Levava-me desta vez consigo. No caminho conversávamos sobre as conquistas e sobre os projetos agendados. Muita responsabilidade, muito que fazer. Uma reunião do Sinédrio esta semana e outra com o Governador na semana seguinte. Há que transformar o mundo e não ficar a perder nada.

Quase a chegar ao local, a noite trouxe consigo vindo dos campos um enorme rebanho de ovelhas e cabritos que nos obrigou a abrandar o passo. Os pastores, descalços e parcamente vestidos, celebravam a vida alegremente. Dirigiam desta feita as ovelhas por um caminho que até para elas era desconhecido e novidade. Que as traria aqui a estas horas da noite? Só uma razão maior justificaria tamanha aventura. Perguntámos ao pastor mais novo, aquele que trazia uma flauta pendurada ao pescoço: – “Amigo, a estas horas por aqui?”. O jovem olhou-nos com a mesma curiosidade sobre nós, mas mais silencioso, talvez por reverência e respeito, tirou apenas o chapéu. – “Senhores, na verdade voltamos a casa por outro caminho, não é nosso hábito chegar tão tarde e por estas veredas. Sabe, tivemos um encontro perto da nascente onde habitualmente levamos o gado a beber. Uma luz, um homem, um anjo? Eu que sei?! Alguém que nos convidava, com grandes olhos, a ver o Messias, o Deus Altíssimo que acabava de nascer! Nós pouco sabemos disso, e pouco entendemos, mas a sua alegria contagiou-nos. Viemos ao lugar que nos indicou. É ali mesmo à frente!”

Algo mais teria Aquele menino a dizer que não se esgotara no primeiro encontro com Nicodemos. Algo mais e igualmente urgente. Talvez uma promessa que acompanhasse o convite a nascer com Ele e que não tivesse sido compreendida nem retida por Nicodemos.

Não foi preciso dizer nada, olhei Nicodemos e ele olhou-me. Tomou a iniciativa de ser o porta-voz: “também nós viemos ver essa criança de novo! Também nós amigo pastor, sem nada compreender, sem nada entender! Apenas alegres, como tu, por reencontrar esses tão grandes olhos. Apenas alegres por sermos parte dos convidados, daqueles que entram e nascem de novo!”

A composição que encontramos é bela, digna de um pintor renascentista. Um espaço pequeno, acolhedor, uma tenda de barrotes de antigas madeiras. A luz trémula de dois candeeiros a óleo. Um rebanho de ovelhas e seus pastores, uma vaca e um boi cego de um olho, dois homens de capa preta e um casal com um menino nos braços.

“É Aquele menino! Só pode ser Ele” – disse um dos pastores. “Sim, conforme o que o anjo nos disse: encontrareis a Criança repousada no seio de sua mãe”. Sinal grandiloquente esse que testemunha a promessa de descanso para o ser humano, esse descanso tão ansiado e desejado por todos, desde o inicio dos tempos, desde os nossos primeiros pais, Adão e Eva.

No seio de Sua mãe, o Menino descansa e anuncia um novo descanso, qual príncipe da Paz. Com Ele também sua mãe repousa adormecida, embalada nessa indelével certeza de ser mãe e rainha num novo céu.

No mundo onde todos arrastamos um tremendo cansaço que conquistamos com o que sabemos e escolhemos, alguém que nos fale de descanso, é blasfemo! Merece a morte! Por isso, o Menino, a quem não damos ouvidos, vem nos dizer que o nosso cansaço, o nosso bruto cansaço, só Nele pode encontrar descanso. Ainda mais, diz-nos o Menino, que somos Sua Imagem e semelhança, fomos criados por Ele para ser como Ele, menino do sétimo dia, filhos Nele do eterno descanso do Pai. Sem tentar compreender muito, acolho Aquele menino como um sinal para mim.

As Suas palavras: “Eu Sou o descanso, aquele que me acolher pode descansar, viver descansado” mal-entendidas por mim ecoam no meu espirito como refrão de um imenso convite a uma nova vida. Como testemunhas dessa tão grande promessa apenas a confirmação serena e firme de um olhar maternal e paternal,

Maria e José

 

Nicodemos e eu saímos da “gruta de Platão”, assim era conhecido o estábulo pelos locais, com uma certeza inabalável, de o que nos faltava ver e ouvir permanecia agora entranhado na nossa pele, como um unguento ou como um odor de ovelha e de cordeiro que se agarrou para sempre à nossa carne. Saímos dali com a certeza de que se há descanso neste mundo, ele terá de ser semelhante ou imagem daquele que ali encontrámos.

Os reis e uma nova forma de reinar

Nicodemos tomou estes dois acontecimentos, vividos sabe-se lá como, se em sonhos ou de olhos abertos, como o princípio de uma vida nova. Ele sabia que não podia ser o mesmo e que seria totalmente outro em resposta a tão grande desafio. Não voltaria a ser um vivente ordinário, nas hostes do Templo, mas tornar-se-ia num crente apaixonado e errante que ansiava por encontrar águas vivas e refrescantes para descansar. No meio de tantos animais que conhecia escolheu um como brasão do seu novo caminho – o alce. Um daqueles alces que a Escritura anunciava ansiando por verdes prados e por águas refrescantes.

No regresso ao Templo vinha agradecendo por tanto bem recebido. Sentia nesse agradecimento o eco e a melodia de todos os salmos que anteriormente cantava sem os viver, ele que já era velho e quase cego.

Nicodemos tomou estes dois acontecimentos, vividos sabe-se lá como, se em sonhos ou de olhos abertos, como o princípio de uma vida nova. Ele sabia que não podia ser o mesmo e que seria totalmente outro em resposta a tão grande desafio.

À sua chegada, debaixo dos pórticos e das arcadas do pátio dos Judeus, os homens falavam e sussurravam, como habitualmente. Desta vez o tema da conversa denunciava uma certa gravidade. Comentavam entre eles a passagem de um grupo de reis ou magos, ou ambas as coisas pelas ruas de Jerusalém. Teriam chegado do Oriente há dias e acabado por partir escandalosamente sem se despedirem de Herodes, o rei. Que na vinda tinham sido cordiais ninguém punha em causa. Inclusive, demoraram-se longamente no palácio do rei e ali permaneceram uma das noites. A seu pedido, o rei mandou consultar os magos e os homens de saber, para tentar responder e matar a curiosidade que neles havia sobre o nascimento de um novo e último rei. Lá fora tinham estacionado uma enorme estrela, de um brilho nunca visto, seria espelho de um grande olhar, mas que só a eles dizia respeito. O Rei Herodes escutou-os muito entusiasmado e receoso. Reinou como pôde sobre o assunto e acabou por os deixar continuar a sua demanda sem que os importunasse. Preferia ter a certeza de não afugentar a identidade daquele que lhe tinha sido oculto. Voltariam certamente para o informar sobre o local e aí sim, mostraria a todos quem manda neste mundo. Os reis retiraram-se mais pobres, mas infinitamente mais ricos. Foi o único comentário que deixaram a quem os interpelou pelo caminho.

Ao ouvir os homens nessa tarde, junto do pórtico de Salomão, Nicodemos compreendeu que era necessário “dar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus”. Que se ele queria chegar ao descanso teria de aprender a reinar de outra maneira, à maneira Daquele rei que ia agora crescendo na sua vida. Cada gesto e cada palavra do Infante teriam de ser assim guardados no seu coração mesmo que não os compreendesse totalmente. Entraria numa nova forma de reinar olhando ao modo como o Menino ia reinando, sempre cheio de beleza, verdade, graça e sabedoria.

Se aspiramos a nascer com Jesus para alcançar o descanso que Ele nos promete, é necessário segui-Lo desde o berço, porque o seu reinar começa aí. Todos os momentos que a Escritura nos revela Dele são salvação ao nosso cansaço. Nada se perde tudo se transforma em nós. Seguindo o menino – Messias dispomo-nos a entrar no Reino, a entrar numa nova forma de reinar. Na forma de reinar desse Rei dos Judeus descubro um novo mundo de relações possíveis entre nós, anuncio vertiginosamente uma nova lógica de fraternidade onde ninguém fica excluído e onde a palavra chave é o amor-perdão.

À nossa volta escutamos, continuamente, nas redes sociais e nos meios de Comunicação, uma dor lancinante. Ela é eco do ódio de Herodes, o Grande, quando perdeu a oportunidade de matar aquele que o destronaria. É a consequência de todas as formas de reinar centradas no interesse próprio de quem as promove. É o grito das mulheres e das crianças inocentes que a morte ceifará pela violência de velho tirano e infernalmente só.

“Raquel chora os seus filhos e não quer ser consolada porque eles já não existem.” Jer 31, 15

Seguir o Senhor não é fácil. Pode um velho renascer de novo? Quantas vezes Nicodemos se lembrou da pergunta que poderia ser obstáculo à conquista de tão grande Bem.

Seguimento à maneira de Paulo, coxeando com um espinho na carne

Seguir o Senhor não é fácil. Pode um velho renascer de novo? Quantas vezes Nicodemos se lembrou da pergunta que poderia ser obstáculo à conquista de tão grande Bem. E, provavelmente, esse foi o seu espinho até o final da vida. Nascia com o Senhor, num espírito cada vez mais jovial, sem nunca ter deixado de ser um corpo velho. Ele descobrira, talvez tarde, o que um jovem deve descobrir cedo. Mas o Espírito tinha-o transformado, era agora um homem mais leve, aerodinâmico, diríamos hoje, tinha-o libertado da escravidão da Lei e das amarras aos absolutos que são filhas da mentira. Por isso, já muito mais tarde, depois de ter andado pelo mundo e de já estar certo que o crucificado era o ressuscitado e por isso verdadeiro Deus, Nicodemos partilhou que nunca abandonou duas coisas: a primeira, um pequeno frasco de nardo puro com que se ungia regularmente para celebrar a sua própria morte e ressurreição no Filho, e outra, uma cópia escrita à pressa da carta de um seu irmão na Fé e no caminho do Senhor, também ele antigo fariseu e autoridade nas Escrituras. A carta de Paulo, onde lhe recordava os acontecimentos que poderiam ser os seus. A sua queda diante da luz do olhar do Messias e da estrela dos reis e como ele se tornou ave de grandes voos arrebatado pela mesma alegria dos pastores, e como reinou o resto da sua vida despojando-se, incansavelmente, até à morte, pela vida das suas ovelhas. A parte de que ele mais gostava da carta era quando ele dizia que em tudo isto levava consigo algo mais que um sagrado unguento ou um belo texto, um aguilhão na carne que o não deixava ser soberbo, que ele tinha pedido sete vezes por entre lágrimas que desaparecesse, mas que, finalmente, permitiu que Deus fosse sempre Deus na sua vida e ele criatura ferida, amada – a realização suprema da vida de qualquer judeu.

No nosso tempo de tão grandes fragilidades e escândalos, o escândalo do tipo de cristãos que somos acompanha o escândalo de todos os padres e seres humanos que caminham com espinhos na carne. O modo e a sabedoria como Nicodemos e Paulo viveram os seus espinhos são ainda hoje insigne ensinamento para onde queremos ir e o modo de lá chegar combatendo o bom combate. A nossa fragilidade confiada ao Menino que tudo transforma e eleva pode levar-nos ao verdadeiro descanso. Pois sabemos que Ele faz da cana rachada uma flauta de pastor e da mecha que se apaga um clarão de luz redentora para todos que a acolhem.

 

Ilustração: David Gomes

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.