1. Como mel para a boca
No filme Double Zéro, com Eric e Ramzy, Edouard Baer veste a pela do “Macho”, uma espécie de vilão absoluto… Ele pretende aniquilar a capacidade procriadora da humanidade a fim de ser o único homem no mundo capaz de ter crianças. E, como o “Macho” faz parte dos maus, é particularmente feio…
2. Um texto bíblico
Então Herodes, ao ver que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado e mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o seu território, da idade de dois anos para baixo, conforme o tempo que, diligentemente, tinha inquirido dos magos. Cumpriu-se, então, o que o profeta Jeremias dissera:
Ouviu-se uma voz em Ramá,
uma lamentação e um grande pranto:
É Raquel que chora os seus filhos
e não quer ser consolada,
porque já não existem.
Mateus 2, 16-18
3. O esclarecimento
Herodes quer matar todas as crianças de Belém para ter a certeza de matar também Jesus. Este massacre coloca uma questão difícil aos crentes: como é que é possível que o nascimento de Jesus, Deus feito homem, possa ter sido acompanhado de uma tal matança de inocentes? Como é que Aquele que é Todo-poderoso pôde tolerar tal coisa?
Este grito de indignação diante do sofrimento de crianças inocentes nasce das entranhas da humanidade. Fiódor Dostoiévski coloca-o nos lábios de Ivan Karamazov:
«Os carrascos sofrerão no inferno, dirás tu? Mas, de que servirá esse castigo, uma vez que também as crianças viveram um inferno? Além disso, de que vale essa harmonia, se inclui um tal inferno? Eu quero o perdão, o abraço universal, o fim de todo o sofrimento. E, se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, digo-te já que essa verdade não vale tal preço. Não quero que a mãe perdoe o carrasco; ela não tem esse direito. Que lhe perdoe o seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu o seu filho despedaçado pelos cães. E mesmo que o seu filho lhe perdoasse, ela não teria esse direito.
(…)
É por amor pela humanidade que eu não quero essa harmonia. Prefiro conservar os meus sofrimentos não redimidos e a minha indignação irredutível, mesmo que esteja enganado! Aliás, sobrevalorizaram essa harmonia; o preço da entrada é demasiado caro. Prefiro devolver o meu bilhete de entrada. Em homem de bem, tenho mesmo a obrigação de o devolver o mais cedo possível. É o que faço. Não me recuso a reconhecer Deus, mas, respeitosamente, devolvo-lho o meu bilhete.»
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (1877)
Na conferência intitulada «O mal, um desafio para a filosofia e para a teologia», proferida em Lausanne (Suíça) em 1985, Paul Ricoeur analisa o problema. Na sua opinião, a dificuldade maior consiste no facto de não ser possível afirmar em uníssono, seguindo as regras da lógica, as três proposições seguintes:
1. Deus é todo-poderoso;
2. Deus é bom;
3. O mal existe.
De facto, se Deus é todo-poderoso e infinitamente bom, porque é que permite que o mal se manifeste no mundo? E como pode tolerar que inocentes, sobretudo crianças, sofram?
Este paradoxo provoca uma inconsistência lógica difícil de aceitar. O espírito do homem grita, por isso, a sua desesperação diante das questões sem resposta, diante da ausência de soluções capazes, não apenas de satisfazer a inteligência, mas também de apaziguar o coração.
Num primeiro momento, é honesto reconhecer, com outro filósofo (Gabriel Marcel), «que não existe propriamente um problema do mal, para o qual se pode encontrar um solução, mas um mistério do mal.»
Gabriel Marcel citado por Jacques Blanchet, Le mal, Archambault, Paris, 2017
4. E ainda uma palavra final…
O mal não é só um «problema» a ser resolvido teoricamente. É uma realidade com a qual nos cruzamos: podemos, por isso, tentar responder-lhe com a nossa própria existência.
«Diante do mal, muitas vezes acusamos, mas não agimos. Se tentamos justificá-lo ou se simplesmente desesperamos, ele multiplica-se; se procuramos continuar a viver, apesar dele, sem o justificar nem desesperar, ele recua.»
Bertrand Vergely, O silêncio de Deus diante das desgraças do mundo (2006)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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