O meu avô chamava-se Joaquim. Era de baixa estatura e já o conheci sem cabelo, sempre de óculos. Nascido numa aldeia, cresceu ao ritmo das estações do ano, no trabalho do campo. Ao contrário dos irmãos, conseguiu estudar. Caminhava descalço para a escola, mas nunca desistiu, nunca vacilou. Era assim, um rapazinho esperto e determinado.
Apaixonou-se por uma das meninas lindas da terra e foi obrigado a partir para África, à procura do sustento que lhe permitisse concretizar o sonho da família que queria ter. Voltou passado algum tempo. O que trazia era todo o seu tesouro, poupado em dias e dias de trabalho, a vacinar crianças, a curar feridas, a atravessar rios e a sobreviver ao calor húmido de África. Casaram, felizes. A menina linda e o seu eterno apaixonado.
Nasceram os filhos, vieram os netos. Pela sua história de vida, o meu avô era claro nas suas exigências, homem de poucos sorrisos, mas capaz de dar tudo o que tinha. Os estudos estavam em primeiro lugar. A honestidade, a fidelidade, a austeridade, não eram condição para nada, eram ponto de partida e de chegada. Lembro-me de o ver chegar, numa pequena mota, único transporte que lhe conheci. E eu, pequena, pendurada no portão, sorria só de pensar que, com as minhas mãos tão pequenas, ia conseguir sentir aquele acelerar ruidoso, com que se subia o pequeno degrau do passeio. Abria então o portão e repetia-se a cena em fins de tarde, de verões distantes. Avô e neta, encostavam a mota ao fundo do quintal e vínhamos de mãos dadas para dentro de casa.
Mas de todos estes mimos, o que me marcou mais profundamente foi aquele amor imenso, fiel, discreto nas palavras, evidente nos gestos, que pressentia na forma como se vivia naquela casa.
Na cozinha, a minha avó já tratava do jantar. Naquela cozinha era tudo imaculadamente limpo, os panos da loiça bordados, a toalha sem vincos. Até hoje consigo sentir o gosto do pão branco, barrado com manteiga e salpicado com açúcar. E o cheiro do café, acabado de fazer, mas que não podíamos beber. E dos pastéis de bacalhau estaladiços. Mas de todos estes mimos, o que me marcou mais profundamente foi aquele amor imenso, fiel, discreto nas palavras, evidente nos gestos, que pressentia na forma como se vivia naquela casa.
Aprendi tanta coisa com o meu avô. O valor do trabalho, que exige esforço e obriga a opções. O valor do amor, que pede sacrifícios e coragem. O valor da família, que não precisa de muitas coisas, mas não vive sem partilha, sem confiança, sem risos e lágrimas. Já muito doente, passei semanas sem coragem de o visitar. Não conseguia vê-lo preso numa cama, sem aquele olhar inteligente que sempre me tinha encantado. Mas nunca deixa de chegar aquele dia em que temos de fazer o que tem de ser feito. E dei-lhe a mão e contei-lhe a vida que corria lá fora. E disse-lhe o quanto gostava dele. Já cá fora, encostada a uma parede vazia, chorei perdida todas as lágrimas contidas no esforço que a sua dignidade me merecia. Morreu nessa noite.
Nunca consegui deixar de pensar que me tinha esperado. Como eu o esperei, ao fim da tarde. Avós e netos. Agora, que já conheço o estremecimento de ter um neto no colo, agora que já saio a correr de onde estou, só para o ir buscar. Agora que lhe abro os braços para a corrida feliz dos seus pequenos passos, agora que sou avó, percebo de forma nova, este amor que se multiplica, que não descansa. Este amor que se inquieta e se alegra. Este amor que desconhece o dar em troca e se refaz em cada encontro.
Nunca saberemos o que vamos deixar no coração dos nossos netos. Mas sabemos o que sentimos nos nossos, quando recordamos um avô, uma avó. E as histórias vão passando, numa linha que se cruza e se afasta das nossas vidas, mas que permanece, contínua, porque tecida no amor. Esta é uma história feliz. Bem sei que muitas outras serão diferentes, tristes, até quebradas. Mas a vida também se faz de histórias belas, de momentos felizes. E quando me lembro de São Joaquim e de Santa Ana, avós do Menino, gosto de pensar que, também graças a eles, podemos contar a história mais bela de todas as histórias, aquela que nos conta como foi possível acontecer a Salvação do mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.