Quaresma é tempo de conversão, 40 dias que vão da 4ª feira de cinzas ao Domingo de Ramos. Tem, portanto um carácter preparatório, essencial, como caminho de preparação para a Páscoa. Por outro lado, a conversão, a viragem em direção a Deus, tem de concretizar-se, tem de passar por “exercícios” práticos e concretos, sob pena de se esfumar em nevoeiro piedoso… Daí que tradicionalmente e seguindo à letra as práticas judaicas e os ensinamentos do próprio Jesus (Cap. Mt 6,16-18) se apontem três caminhos de conversão:
A oração, referida à relação a Deus; a esmola, referida à relação no próximo, e, finalmente, o jejum, relacionado com a relação a si próprio. Deixemos de lado a oração e a esmola e concentramo-nos no jejum.
S. Inácio de Loyola e o jejum
Logo em Loyola, depois da derrota de Pamplona, no início da sua mudança, Inácio, que até aí viveu “sem lei nem freio”, começa a sua experiência de jejum, e como em todas outras áreas, sem critério, sem discernimento, por impulso espontâneo e caindo muitas vezes no exagero. Pouco a pouco a sua conduta vai-se equilibrando, o seu regime torna-se saudável e ele compreende que o “problema da alimentação” é importante e merece ser refletido. E assim, entre muitos outros “grupos de regras” – “para sentir com a Igreja” – para discernir os espíritos – para distribuir esmolas, etc. – S. Inácio incluiu no seu famoso livro dos Exercícios Espirituais “as regras para ordenar-se no comer” (EE 210-217). Fruto da sua experiência e da sua meditação, são um pequeno “tratado” de precioso conteúdo: equilibrado, sem exageros, aconselhando cada um a fazer experiências até encontrar a medida certa, convidando a elevar o espírito acima do ato animal da ingestão de alimentos, etc.
Algumas notas finais poderão ajudar:
-A virtude da temperança (aplicada à ingestão de alimentos) é diferente do jejum, que é uma privação livre e portanto um ato de penitência.
– Na prática eclesial (sobretudo no passado…) havia uma compreensão muito “legalista”: à sexta-feira não se podia comer frango mas podia-se comer lagosta (que é considerada peixe)…
– Do exercício de jejuar estavam e estão excluídos, é óbvio, os doentes, os idosos e as crianças.
– Tradicionalmente, juntava-se a quantidade (jejum) e a qualidade, abstinência (de carne). Hoje, essa classificação está (quase) desaparecida: o que importa não é ser carne ou peixe, mas sim um alimento mais pobre ou mais rude. E quanto à quantidade, aconselha-se, na prática do jejum, a ingerir metade do que é habitual…
Mas, qual é o sentido último do jejum, bem entendido?
-Antes de mais, crescer no domínio próprio, não viver impelido apenas pelo apetite…
-Partilhar com os carenciados aquilo que sobra pelo nosso jejum… Partilhar os bens e a experiência deles…
– Participar, embora remotamente, na paixão redentora de Jesus Cristo.
Uma última advertência: as coisas e os alimento não são maus em si mesmos; são bons; o jejum cristão pretende podar a árvore para que tenha mais vida e dê mais fruto.
Boa Quaresma!
Bom jejum!
Fotografia de Benjamin Wong – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.