O episódio mais horroroso da Bíblia

Bob Dylan e Leonardo da Vinci vêm connosco ao encontro de um dos textos mais terríveis do Antigo Testamento. E isto a propósito de Belém... Há estômago para tanto?

Bob Dylan e Leonardo da Vinci vêm connosco ao encontro de um dos textos mais terríveis do Antigo Testamento. E isto a propósito de Belém... Há estômago para tanto?

1. Como mel para a boca

Tal como na música de Bob Dylan, o texto bíblico de hoje está relacionado com a famosa história do sacrifício de Isaac. Já se vai perceber porquê… Mas antes, atenção à letra no início de Highway 61 Revisited.

https://www.youtube.com/watch?v=r1zyl1XtlNc


2. Um texto bíblico

Um homem foi à procura da sua mulher que se tinha refugiado em casa de seu pai, em Belém. No caminho de regresso a casa, decidiram pernoitar na aldeia de Guibeá.

Ele entrou e sentou-se na praça da cidade; ninguém os acolheu em sua casa para passarem a noite. Eis que, ao anoitecer, um velho veio do seu trabalho no campo. O homem era da montanha de Efraim; era viajante em Guibeá; os habitantes do local eram filhos de Benjamim. Erguendo os olhos viu aquele forasteiro sentado na praça da cidade e disse o velho:

– Para onde vais e de onde vens?

Ele respondeu-lhe:

– Partindo de Belém de Judá, viajamos em direcção ao extremo da montanha de Efraim. Eu sou de lá. Fui a Belém de Judá e agora volto para a casa do Senhor; não há ninguém que me acolha em sua casa. Há palha e há feno para os nossos jumentos e há pão e vinho para mim, para a tua serva e para o jovem que acompanha o teu servo; não estamos a precisar de nada!

O velho respondeu:

– A paz esteja contigo; tudo o que precisares é comigo! Não passes a noite na praça!

Fê-lo entrar em sua casa e deu forragem aos jumentos; lavaram os pés, comeram e beberam. Enquanto restauraram as forças, eis que os homens da cidade, homens perversos, cercaram a casa, bateram com violência e disseram ao velho, dono da casa:

– Manda cá para fora o homem que entrou para a tua casa, a fim de o conhecermos.

O dono da casa saiu a ter com eles e disse-lhes:

– Não, meus irmãos! Eu vo-lo peço, por favor; não pratiqueis semelhante mal! Agora que este homem entrou em minha casa, não pratiqueis tal desonra! Eis a minha filha que está virgem e a concubina dele; vou fazê-las sair; abusai delas; fazei-lhes o que vos agradar! A este homem, porém, não lhe façais uma infâmia desta natureza!

Os homens, porém, não quiseram ouvi-lo; então o homem, o levita, tomou a sua mulher e levou-lha lá para fora; eles conheceram-na e satisfizeram com ela a sua luxúria durante toda a noite, até ao amanhecer; deixaram-na livre só de manhãzinha.

Ao raiar da aurora a mulher caiu por terra à porta da casa do homem onde estava o seu marido, até vir o dia. O seu marido levantou-se de manhã cedo; abriu as portas de casa e saiu para seguir o seu caminho. Eis que a mulher, sua concubina, jazia prostrada à porta de casa de mãos estendidas sobre a soleira. Disse-lhe então:

– Levanta-te e vamos!

Mas ela não respondeu. O homem colocou-a então sobre a sua montada; e partiu em direcção a sua casa. Tendo chegado lá, pegou num cutelo e, agarrando na sua concubina, esquartejou-a membro a membro em doze pedaços, enviando-os depois a todas as tribos de Israel. Quem via isto exclamava:

– Nunca aconteceu nem se viu tal coisa, desde o dia em que os filhos de Israel subiram da terra do Egipto até este dia. Pensai bem nisto! Consultai-vos sobre isto e pronunciai-vos!

Juízes 19,15b-30


3. O esclarecimento

Esta passagem é simplesmente abominável. No entanto, se aprofundarmos o seu significado, percebemos que há nela mais do que o absurdo da violência. O leitor atento encontrará aqui várias pistas que ligam este texto a outros episódios importantes da história bíblica:

  • A vítima inocente de Juízes 19, a concubina do levita, vem de Belém de Judá; diz-se explicitamente que é a casa de seu pai. Esse elemento lembra a origem de José, o pai adoptivo de Jesus, que era da casa de David, de Belém (Lucas 2,4).
  • Ela é entregue a uma morte terrível pelo seu marido, que, por acaso, é levita, pertencendo, por isso, no sentido lato, à classe sacerdotal (como todos os membros da tribo de Levi). Serão os membros da classe sacerdotal que entregarão Jesus a Pilatos e, por intermédio deste, à morte.
Gustave%20Dor%C3%A9%20(1832-1883)%2C%20O%20levita%20de%20Efraim%20carrega%20o%20corpo%20da%20sua%20mulher%2C%201886.
Gustave Doré (1832-1883), O levita de Efraim carrega o corpo da sua mulher, 1886.
  • O seu corpo é esquartejado em doze pedaços e cada um deles é enviado a cada um das doze tribos de Israel. Como sublinha o biblista dominicano Philippe Lefebvre, o texto desta passagem do Antigo Testamento parece prefigurar o que sucede na “Última Ceia”: antes da Paixão, Jesus “partilha o seu corpo e o seu sangue com os discípulos nas espécies do pão e do vinho. Doze pedaços para doze discípulos.”
Leonardo%20da%20Vinci%20(1452-1519)%2C%20A%20Ceia%20(1495)%2C%20Convento%20Santa%20Maria%20da%20Gra%C3%A7a%2C%20Mil%C3%A3o%2C%20It%C3%A1lia.
Leonardo da Vinci (1452-1519), A Ceia (1495), Convento Santa Maria da Graça, Milão, Itália.
  • A faca usada pelo levita para esquartejar a sua mulher é chamada em hebraico “ma’akelet” – ou seja, “a devoradora” . Este termo é usado apenas quatro vezes no Antigo Testamento, duas das quais para designar a faca com a qual Abraão se preparava para imolar o seu filho Isaac (Génesis 22). O uso desta palavra aproxima os dois textos e sugere um contexto de sacrifício diante de Deus.
Dominiquino%20(1581-1641)%2C%20O%20sacrif%C3%ADcio%20de%20Isaac%20(1627)%2C%20Museu%20do%20Prado%2C%20Madrid%2C%20Espanha.
Dominiquino (1581-1641), O sacrifício de Isaac (1627), Museu do Prado, Madrid, Espanha.

| EM RESUMO |

Esta história horrorosa, quando é lida à luz do Antigo e do Novo Testamento, parece abrir-se ao mistério de Jesus Cristo: a inocente de Belém é entregue por um sacerdote a homens que a maltratam a ponto de a matar. O seu corpo é, depois, esquartejado em doze pedaços com recurso a uma faca que evoca um contexto de sacrifício cultual.

O que a Bíblia enigmaticamente (ou “tipologicamente”) sugere é que somente a morte voluntária do inocente perfeito, Jesus, pode projectar um raio de luz nas trevas criminosas onde os homens são capazes de cair.


4. E ainda uma palavra final…

Perante esta história horrorosa, tal como perante o mistério do sofrimento, poderíamos tentar encontrar uma frase reconfortante, uma explicação razoável. Contudo, preferimos terminar com uma frase de Dom Pierre Veuillot, arcebispo de Paris entre 1966 e 1968, dita enquanto padecia de doença grave, no final da vida:

“Nós sabemos dizer frases bonitas sobre o sofrimento. Eu mesmo falei tantas vezes sobre o assunto, com ardor. Digam aos sacerdotes que se calem: nós não sabemos o que é o sofrimento. Eu apenas o chorei. “

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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