Quando e como conheceu o Papa Francisco?
Conheci-o primeiro por carta, em 1975. Eu vivia em Mendoza (Argentina), tinha 20 anos, e trabalhava num bairro pobre a dar catequese e tinha um diretor espiritual que era jesuíta. Um dia, ele mostrou-me o postal de Natal enviado pelo Padre Bergoglio e comentou comigo: “Olha que maravilha de provincial eu tenho!” No ano seguinte, fui fazer Exercícios Espirituais (um retiro) para saber se entrava na Companhia e conheci Bergoglio na Cúria, no centro de Buenos Aires. A primeira impressão com que fiquei foi a de um escritório muito senhorial, numa casa antiga, e fiquei a pensar que os jesuítas de Buenos Aires eram todos ricos (risos). Recebeu-me, conheci-o pessoalmente e, quando eu ia a sair, disse-me para esperar um bocado, que me levava à casa de formação, mas que tinha de ir buscar o casaco, porque estava frio. Subimos ao terraço e havia um quarto pequeno, onde se guardavam as vassouras, e ele vivia ali. Havia uma cama, um roupeiro, uma mesa e nada mais. Foi a primeira impressão com que fiquei: como provincial atendia as pessoas num escritório digno, mas depois vivia no quarto das vassouras. Depois dessa ocasião, mantive sempre um contacto estreito com ele.
Desse tempo, há algo que lhe tenha ficado da forma como vivia sendo jesuíta? Há algum aspeto que o tenha marcado mais?
Na verdade, tudo. Se tivesse de escolher, mencionaria o facto que ele é uma pessoa que te conhece imediatamente, que consegue conhecer rapidamente o coração, fazer uma espécie de “cardiodiagnóstico”, e, com isso, cria uma relação muito pessoal. As pessoas que o conhecem dizem que quando o visitam, ele se lembra sempre de algo pessoal. E isso impressiona. E naquela época impressionava que nos dedicasse tanto tempo, a nós que éramos apenas noviços (primeira etapa da formação de um jesuíta). Eu, por exemplo, tenho a Bíblia que me ofereceu nos primeiros dias de noviciado: tinha gestos especiais com cada um. Também soube que a minha avó estava doente e quando se deslocou a Mendoza foi visitá-la ao hospital. São pequenos gestos muito pessoais.
O que vemos então agora, como Papa, corresponde à sua personalidade?
Sim, sempre foi assim. Agora que estou a viver em Roma, pensei que o meu papel, agora que o Papa está à vista de todos, poderia passar por testemunhar que o Papa é igual, e que as coisas que ele faz agora, são as que fazia antes. Um jornalista dizia-me que estamos a assinalar os cinco anos de Francisco, e que tomara ainda tenhamos mais, porque ainda é pouco. Mas eu digo que o que estamos a assistir é a uma síntese de uma pessoa que fez o mesmo toda a vida e agora vêm-se os frutos. Por exemplo, este gesto de lavar os pés na quinta-feira santa, que tanto impressionou o mundo, já o tinha feito quando era pároco jesuíta. A primeira vez que o vimos a fazer isso foi na Paróquia de São José. Ele promoveu uma missão de evangelização no bairro e houve uma celebração para os idosos e ele lavou os pés a todos. Isso impressionou-nos tanto… Depois como bispo, e mais tarde cardeal, continuou a repetir este gesto com pessoas de bairros pobres. Isto nos anos 80 e depois nos anos 90. Quando, em 2013, o fez numa prisão, e inclusive a pessoas de outra religião, o gesto voltou a impressionar. Mas, isto é apenas testemunho de uma coerência de vida, de uma graça que ele sempre teve, e que agora como Papa se continua a manifestar, porventura com maiores repercussões.
Qual é a sua perceção da forma como o discernimento afetou a vida de Bergoglio ao longo dos anos? Ele próprio diz que teve de (re)aprender a discernir e acabou por mudar a forma de tomar decisões. Como vê essa evolução?
Houve um jesuíta da Província da Argentina, diretor de terceira provação (a última etapa da formação de um jesuíta), que despertou de novo a prática dos Exercícios Espirituais, tanto de fazê-los como de dá-los, entre aqueles que estavam em formação, como Bergoglio. Depois Bergoglio, quando se tornou provincial, estendeu esta prática a toda a província. Ele mesmo como provincial dava exercícios, algo que não é comum. O discernimento esteve, por isso, sempre presente. Da sua evolução pessoal, o que vi corresponde ao que ele diz. Quando o elegeram provincial, era ainda muito jovem e tomava as decisões de modo muito expedito e, para alguns, até autoritário. E isto não agradava a todos. Eu, pessoalmente, não me queixo, porque acho que tomava boas decisões (risos). Mas, penso que agora está muitíssimo mais paciente e dá mais tempo às coisas, deixa que vão e que voltem. Creio que cresceu em paciência: acompanha os processos de forma mais paciente.
Entre jesuítas fala-se muito de discernimento, mas, para muitas pessoas, esta pode ser uma palavra estranha. Consegue explicar de forma simples o que é?
Pensar é discernir. É algo que fazemos constantemente, discernir e decidir: queres café ou chá? Com ou sem açúcar? O discernimento espiritual é discernir com o Espírito Santo: pôr-se na presença do Espírito e ver o que agrada a Deus. A primeira coisa que é preciso dizer é que passamos a vida a discernir. E quando há uma lei que diz algo, isso também já é fruto de um discernimento, neste caso, no âmbito do Direito. No fundo, vivemos de um discernimento que foi feito por outro, e atualizamo-lo. O facto mesmo de seguir uma lei é um discernimento. O discernimento não é, por isso, algo estranho. Jesus diz: “o Espírito Santo vos ensinará, em cada situação, o que hão-de fazer e dizer” (cf. Lc 12,12). O discernimento é abrir-se a isto.
Olhando para o pontificado do Papa Francisco, em que pontos se sente essa atitude de discernimento mais presente?
Em todos. Por um lado, o discernimento é algo que estamos vivendo. Por outro lado, o Papa diz que não se discernem as ideias, as ideias discutem-se. Discernem-se as situações.
O Papa diz que não se discernem as ideias, as ideias discutem-se. Discernem-se as situações. Quando o Papa diz que é preciso discernir, não está a dizer para se ir contra as ideias, mas está a chamar-nos a discernir como é que essas ideias se podem viver na vida quotidiana.
As ideias estão sempre em movimento, dependem da cultura, da filosofia, do paradigma que se segue, ainda mais nesta época em que temos paradigmas misturados, confusos. Quando o Papa diz que é preciso discernir, não está a dizer para se ir contra as ideias, mas está a chamar-nos a discernir como é que essas ideias se podem viver na vida quotidiana. Nesse sentido, não há nenhuma diferença com o que fez o Senhor, por exemplo, quando disse à mulher adúltera: “se ninguém te condenou, também eu não vou fazê-lo”. Se nos colocamos apenas ao nível das ideias, é possível perguntar-se: mas ele estava a favor ou contra a lei? E se houvesse jornalistas talvez se tivesse escrito que Jesus tinha ignorado a lei que mandava apedrejar as mulheres adúlteras (risos). O que fez o Senhor foi suspender a discussão e deixar que a pessoa se reerguesse. Depois, a lei sempre voltou a reconstituir-se. No fundo, é como numa casa de família, a mãe sempre perdoa e deixa começar de novo. Se a mãe fosse implacável a aplicar a lei em sua casa, nenhum filho poderia resistir (risos). O processo de discernimento é, assim, com reta intenção, considerar que passo ou outro pode dar neste momento, confiando que se ele dá um passo ao encontro de Jesus, depois poderá voltar à lei e, eventualmente, até se tornar mais exigente consigo próprio.
Neste processo de discernimento, uma das críticas que se pode fazer é que podemos cair na tentação de um certo individualismo: cada um decide e faz o que quer.
Na espiritualidade inaciana, o discernimento inclui a confirmação, não termina com a eleição (decisão). Aliás, para Santo Inácio são necessárias três confirmações. Primeiro, a interior: depois de rezar, ver as moções a favor e contra, penso que o que mais agrada a Deus é isto e apresento-o a Deus para que Ele o confirme. A esta primeira confirmação sucedem outras duas: a da Igreja hierárquica, com o diretor espiritual e os superiores. E também a do povo de Deus, que se manifesta na colaboração. Ou seja, se um missionário abre uma obra social, precisa que o povo o confirme colaborando, com a sua alegria, etc. Na canonização dos santos, também há a confirmação do povo de Deus. O discernimento é, por isso, um acto eclesial, não é um acto individual. É preciso ter isso claro.
Uma Igreja que vive em discernimento é muito exigente. Seria mais simples aplicar a lei do mesmo modo, todos os dias, em toda a parte.
Mas o que se passa é que essa lei é cada vez menos cumprida. Por exemplo: com o Papa Francisco, as pessoas acabam por vir mais à confissão. Eu testemunho isso no Gesù (Igreja dos jesuítas em Roma). E algumas até dizem: “vim porque o Papa agora deixa”. O que acontecia é que as pessoas antes pensavam que havia um letreiro que dizia: “aqui não se admitem estes problemas”. E, por isso, nem sequer apareciam. Agora é mais exigente porque vêm pessoas que trazem mais e maiores problemas. Quando a aplicação da lei é tão clara que não admite nenhuma exceção, muita gente acaba por nem sequer se aproximar. Outro exemplo: havia pessoas que diziam: “estou divorciado, não vou mais à confissão porque estou divorciado”. E depois até se percebia que a pessoa estava sozinha, não estava recasada. Ou seja, não é que seja mais exigente. É tão exigente como antes, mas o que acontece é que agora a exigência está mais repartida. Antes havia problemas e deixávamo-los apenas com os casais, agora o padre também tem de participar, e por isso, também se engana. É uma tarefa mais eclesial, mas, não creio que tenha tornado tudo mais exigente.
Vemos movimentos críticos do Papa que dizem que não há normas claras, que as pessoas andam confusas, e que esta maneira de propor a doutrina não lhes dá a segurança que precisam para levar a sua vida. Como se pode responder a estas inquietações?
Segurança para levar a sua vida? Bom, o Evangelho de Jesus, às vezes, dá-nos pouca segurança… Dito isto, no que verdadeiramente conta, o Para não podia ser mais claro. Não há nada menos confuso do que dizer: “Deus não se cansa de perdoar”. Segurança maior não há: só conta a misericórdia! Além disso, retirou todo o peso que se tinha dado às normas intermédias que acabavam por negar a misericórdia. Por outro lado, ao insistir no processo de discernimento, o Papa está a convidar as pessoas a dar um passo mais, a ir mais longe. O discernimento não é tanto para ver o que é pecado e o que não é: isso está claro. É abrir-se à misericórdia de Deus, começar de novo, arriscar dar passos em frente. Com isto o Papa denuncia falsas seguranças, convidando a Igreja a tratar as pessoas como adultos.
Ao insistir no processo de discernimento, o Papa está a convidar as pessoas a dar um passo mais, a ir mais longe. O discernimento não é tanto para ver o que é pecado e o que não é: isso está claro. É abrir-se à misericórdia de Deus, começar de novo, arriscar dar passos em frente.
Em relação às acusações de confusão, costumo dizer às pessoas para aplicar o mesmo raciocínio no âmbito do dinheiro. Como se sentiriam se a Igreja decidisse definir, em números, com base no ordenado e no património, quanto é que cada cristão tinha de dar aos pobres. Se o pusesse em números, definindo tudo ao milímetro, como alguns gostariam que acontecesse em moral sexual, provavelmente muitos não gostariam, a começar pelos cardeais (risos)… É impossível reduzir os mandamentos de Jesus a um conjunto de leis de aplicação universal. Por isso, é preciso discernir sempre, e não só no âmbito da sexualidade.
Nas suas palavras, ressoa um apelo a sermos mais adultos como Igreja. De que forma se pode concretizar isso?
Como povo de Deus, podemos crescer para nos tornarmos adultos se nos abrirmos à missão. Há ainda tanta gente que não conhece o dom da misericórdia de Deus, o bom que é Jesus, a ajuda concreta que o Espírito Santo pode ser nas nossas vidas. Tornamo-nos adultos quando assumimos o dom tão grande recebido e nos voltamos para fora para o oferecer, renunciando às quezílias internas. Porque sair de casa nos obriga a ser adultos. É como com os filhos, que em casa não respeitam as regras, não obedecem. Basta que vão trabalhar, que saiam de casa e crescem logo, porque se dão conta que a exigência lá fora obriga a isso. Saindo resolvem-se os problemas internos. Quando há demasiadas discussões sobre se a missa tem de ser em latim ou em vernáculo, é sinal de que estamos a escolher ficar no ninho, confortáveis, com as nossas pequenas quezílias.
O passo para nos tornarmos uma Igreja mais adulta envolve sair em missão. Mas há gente que não quer sair, porque está acomodada.
Pelo contrário, o passo para nos tornarmos uma Igreja mais adulta envolve sair em missão. Mas há gente que não quer sair, porque está acomodada.
Nestes cinco anos de pontificado, o Papa tem insistido bastante no primado da consciência, algo que também é visível no texto da Amoris Laetitia. Que pensa sobre isso?
O discernimento dá-se no âmbito da consciência. Mas, quando se diz consciência, é preciso perceber do que se está a falar. Há uma definição de consciência que é, por assim dizer, cartesiana e tem como ponto de partida o indivíduo narcisista, moderno, autorreferencial, que se olha a si próprio. Há, contudo, outra definição de consciência que reconhece o carácter aberto, relacional do ser humano e vê a consciência como um âmbito onde há diálogo e luta, entre o eu e, nas palavras de Santo Inácio, o bom e o mau espírito, as boas e as más inclinações. O Papa tem-nos convidado a abrirmo-nos a essa experiência de diálogo e luta e, por isso, tem insistido com os jesuítas para que ajudem a Igreja a crescer em discernimento.
Uma última pergunta: como avalia estes 5 anos do seu amigo, o Papa Francisco?
Não se pode avaliar um Papa como se avalia um governo. Isto é, os cinco anos de Papa Francisco em separado. Os papas têm uma continuidade. Por exemplo, Francisco está a colher algumas sementes plantadas durante o Concílio Vaticano II (1962-1965). A ideia de que a Igreja deve ser pobre e para os pobres corresponde ao que os bispos pediram no Vaticano II. É, por isso, uma herança que ele agora formula de uma forma nova e extremamente persuasiva, quando diz, por exemplo: para dar a moeda, tens de tocar o pobre. Mas, não são ideias novas. O que, sim, é diferente é a forma como as diz, porventura mais incisiva. E isto é uma graça que sempre teve. Depois há as coisas que parecem, e provavelmente são, mais novas, como esta questão do discernimento. Ou o repto a sair sempre, a não ficar fechado. Que frutos e quando isto produzirá não é fácil adivinhar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.