O Desassossego de Francisco

Francisco desassossegou os jovens, que levantaram os braços, havia pressa no ar. Mas também a sociedade: os religiosos, os universitários, os crentes e os não crentes. Francisco desassossega-nos permanentemente com palavras e gestos.

Francisco desassossegou os jovens, que levantaram os braços, havia pressa no ar. Mas também a sociedade: os religiosos, os universitários, os crentes e os não crentes. Francisco desassossega-nos permanentemente com palavras e gestos.

Foram várias as figuras da cultura portuguesa que Francisco citou nas suas intervenções, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude. No encontro com representantes da sociedade civil e do corpo diplomático, no Centro Cultural de Belém, começou por recitar a letra de um dos fados de Amália para evocar «o cheiro de flores e de mar» que povoa as ruas da nossa capital. Algumas horas mais tarde, comparava os portugueses a pedras vivas de uma calçada “acolhedora e brilhante”. A ideia de que cada uma dessas pedras ocupa nos nossos passeios um lugar único e insubstituível ressoou nos Jerónimos, ao longo das vetustas naves de quatro séculos, ecoando como a mensagem mais repetida por Francisco naqueles dias impactantes – que a Igreja, edificada de pedras vivas, é lugar aberto a «todos, todos, todos».

Durante a sua visita ao nosso país, Francisco teve a preocupação de se exprimir como Papa de todos os Portugueses, aludindo a referências da nossa cultura. Não era a primeira vez que um Papa citava Camões – já João Paulo II, em 1991, recordara as novas rotas traçadas ao encontro de outros povos e culturas «por mares nunca dantes navegados». Bento XVI, duas décadas mais tarde, recordava a nossa capacidade de «novos mundos ao mundo ir mostrando». Na Jornada de 2023, Francisco citava novamente o relato épico de Camões, onde Portugal assume o protagonismo de um diálogo entre diferentes povos e civilizações. Convidava-nos, assim, a ampliar os nossos horizontes «aqui…onde a terra se acaba e o mar começa».

Francisco não se limitou, contudo, a evocar o vate da nossa epopeia quinhentista. Inusitadamente, citou também Pessoa, ícone consagrado da nossa mitologia cultural, destacando a ousadia da sua capacidade criadora: «Navegar é preciso; viver não é preciso (…): o que é necessário é criar». Foi ao criar uma obra de inexcedível versatilidade que o poeta dos heterónimos se multiplicou em vários e descentrou em outros, representando, melhor do que qualquer outra figura da nossa história, a diversidade, o pluralismo e o desprendimento.

Era já bem conhecido o desassossego de Francisco: o desassossego pelas periferias, o desassossego pelas desigualdades, o desassossego pelas alterações climáticas, o desassossego pelos conflitos armados, o desassossego pelo futuro. No entanto, foi a primeira vez que Francisco exprimiu o seu desassossego utilizando as nossas palavras, redigidas com a maestria da pena e aparo dos nossos escritores.

Fernando (Pessoa) deu voz ao desassossego de Francisco, o desassossego de trabalhar com criatividade para construir em conjunto. Era já bem conhecido o desassossego de Francisco: o desassossego pelas periferias, o desassossego pelas desigualdades, o desassossego pelas alterações climáticas, o desassossego pelos conflitos armados, o desassossego pelo futuro. No entanto, foi a primeira vez que Francisco exprimiu o seu desassossego utilizando as nossas palavras, redigidas com a maestria da pena e aparo dos nossos escritores.

Na Mensagem, Fernando Pessoa declara que o desígnio do mar português é unir, não separar, não obstante as lágrimas salgadas que nele convergem. Foi esse nosso mar que “ligou não apenas povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto”. Francisco acrescenta que a própria imensidão do mar nos comunica o desassossego que sentimos: “À vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo”. Só assim se explica que, enquanto Sophia escutava atentamente o «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim», se sentisse interpelada, ao mesmo tempo, pela «realização da justiça social, a diminuição das diferenças entre ricos e pobres».

O lema da JMJ era levantar-se e partir apressadamente e a pressa deve-se, habitualmente, ao desassossego de não conseguir chegar a tempo. Não chegar a tempo da partilha e do encontro, não chegar a tempo de salvar o planeta, não chegar a tempo de garantir a paz, não chegar a tempo de viver o presente, não chegar a tempo de um futuro promissor. Ainda antes de chegar a Portugal, Francisco desassossegou os políticos, com a dimensão do investimento que caberia a um evento sem medida. Desassossegou os artistas, que se apressaram a estender na escadaria do palco uma passadeira de papel-moeda que Francisco enjeita com o seu desapego. Já em Lisboa, Francisco desassossegou os jovens, que levantaram os braços, havia pressa no ar. Mas desassossegou também a sociedade: os religiosos, os universitários, os crentes e os não crentes. A verdade é que Francisco nos desassossega permanentemente com as suas palavras, os seus atos, a sua coragem, a sua simplicidade.

É no Livro do Desassossego que podemos encontrar a frase: «A minha pátria é a língua portuguesa». Acontece que nos dias da JMJ, foi relendo os autores da nossa pátria que Francisco exprimiu o seu desassossego. Entre todos os nomes pronunciados, não faltou – imagine-se – a improvável referência a José Saramago: «o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca». É sabido que Saramago, ateísta confesso, cultivava a prosa sermonária de Vieira (jesuíta como Francisco) ao ponto de António Lobo Antunes, em tom depreciativo, apelidar de pregador o Nobel da Literatura. Foi, contudo, no século XVII, esse grande imperador da língua portuguesa que era Vieira cartografou com eloquência inexcedível essa busca pessoana do porto sempre por achar: «para nascer, pequena terra; para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o mundo».

De igual modo, também Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, exprime o deslumbramento que sentia ao ler, em Vieira, «aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais, (…) aquela grande certeza sinfónica». São meditações filosóficas ou literárias como esta que colocam o autor do Livro do Desassossego ao nível de figuras como Agostinho, Rousseau ou Tolstoi. As confissões pessoanas, porém, são um conjunto de textos desconexos sem uma clara linha temática ou princípio orientador, além do desassossego experimentado pelo eu profundo. É a natureza fragmentária desta prosa que nos inquieta que a converte num expoente da nossa modernidade literária.

Almada Negreiros, contemporâneo de Pessoa, foi outro dos escritores pertencentes a essa modernidade literária cultivada pela Geração d’Orpheu. Ora, é com Almada Negreiros que Francisco partilha o sonho de «um país onde todos chegam a mestres». Na realidade, por inúmeras vezes ouvimos dizer que somos um país de doutores e diplomados, de licenciaturas e pós-graduações. Francisco referia-se, porém, a “mestres de humanidade”, competência que, lamentavelmente, não integra os planos curriculares, não se investiga em projetos científicos, não se aprende com a leitura de tratados. Afinal, os mestres acreditados pelas nossas instituições de ensino já escreveram «todas as frases que hão-de salvar a humanidade». Ainda assim, a humanidade continua por salvar e sempre que regressamos das promessas oníricas dos nossos ideais, acordamos, estremunhados, no desassossego da realidade concreta, imperfeita e desigual.

Entretanto, a jornada acabou, a festa acabou, o Papa partiu, a multidão dispersou. Enquanto na Mensagem, Pessoa concluía que «ser descontente é ser homem», a mensagem de Francisco em pessoa foi que “não devemos ter medo de nos sentir inquietos”, “com saudade do futuro”, uma vez que é “este caráter incompleto que define a nossa condição de indagadores e peregrinos”.

Entretanto, a jornada acabou, a festa acabou, o Papa partiu, a multidão dispersou. Enquanto na Mensagem, Pessoa concluía que «ser descontente é ser homem», a mensagem de Francisco em pessoa foi que “não devemos ter medo de nos sentir inquietos”, “com saudade do futuro”, uma vez que é “este caráter incompleto que define a nossa condição de indagadores e peregrinos”. Desse ponto de vista, as raízes do mundo vegetal têm outras lições a ensinar-nos além de «ter por vida a sepultura». Ao citar os nossos escritores, ao pronunciar as nossas palavras, Francisco recordou-nos que “Portugal afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.